Em 2020, as receitas da Altice Portugal subiram para 2.121 milhões de euros, com o investimento a crescer 7%. "Apesar do contexto", explicava ufano Alexandre Fonseca, o inefável CEO da Altice Portugal, "houve um contínuo aumento da base de clientes e de serviços", "cresceram as vendas de equipamentos, principalmente telemóveis", houve "o retorno da receita de conteúdos 'premium' desportivos" e ainda um aumento "das receitas de 'roaming'". A operadora dona da Meo, fechou assim o último ano com mais receitas, mais lucros e mais clientes do que no ano anterior.
No final de maio deste ano, o CEO anunciou que, entre janeiro e março de 2021, as receitas da Altice Portugal tinham subido 5,1% para 549 milhões de euros. Expandiu-se a cobertura em fibra, aumentou o portfólio de serviços e a base de clientes, segundo o administrador. Pouco mais de um mês depois, a Altice torna público que pretende mandar para o olho da rua, por via de um despedimento coletivo, quase 300 trabalhadores. Numa empresa com lucros e em crescimento, que em 2020 recebeu cerca de 11 milhões de Euros de Fundos Comunitários por via de Fundação Altice e da Altice Labs, este anúncio foi um insulto ao país, uma declaração de guerra aos trabalhadores e uma ofensa à lei.
este anúncio foi um insulto ao país, uma declaração de guerra aos trabalhadores e uma ofensa à lei
No dia 5 de julho, houve um encontro entre o Bloco e cerca de 70 trabalhadores, à porta do edifício da PT/Altice, no Porto. Ouvimos os testemunhos de muitos que já então tinham recebido a ameaça do despedimento. Ouvir esses testemunhos pungentes foi profundamente revoltante.
Há trabalhadores que estão há mais de 20 anos na empresa e a quem comunicaram o despedimento de um dia para o outro, ao mesmo tempo que, estando ainda estas pessoas a trabalhar na empresa e com o seu contrato em pleno funcionamento, lhes desativaram o acesso aos computadores, barraram o seu acesso ao Portal da empresa, ao e-mail, ao telemóvel e ao parque de estacionamento, somando assim à violência da ameaça de despedimento a humilhação ilegal do súbito esvaziamento de tarefas e a tortura psicológica de ter que se completar diariamente um horário nestas condições.
Há trabalhadores que, em tribunal, ganharam contra a Altice o processo da transmissão de estabelecimento e a empresa, obrigada pela justiça a integrar os trabalhadores que quis ilegalmente despachar para outras empresas, teve agora a baixeza de os incluir na lista para o despedimento, numa forma velhaca de se vingar de quem mais não fez do que exigir o cumprimento da lei.
Várias trabalhadoras – foram as mulheres que tomaram a palavra – falaram-nos do tempo que dedicaram à empresa, do quanto deram à casa, dos compromissos que têm, da casa para pagar, dos filhos, do desespero que é não saberem o que será a sua vida dentro de semanas ou meses. Muitas explicaram o mesmo: as suas funções não acabaram. Aquilo que fazem continua a ser uma necessidade da empresa. Só que a Altice quer substituir trabalhadores com direitos, abrangidos pelo acordo de empresa, incluídos na contratação coletiva, integrados numa carreira, por um exército de precários em outsourcing, que aliás já recrutou para a Intelcia, para fazerem as mesmas funções, agora em modo externalizado e recorrendo a intermediários. Para preservar no seu longo cadastro de afronta e desconsideração de quem trabalha, a administração ainda colocou, nas semanas anteriores, estes trabalhadores, que agora quer enxotar da empresa, a fazer a formação aos precários externos que quer utilizar para os substituir nas mesmas funções.
O que está em causa neste processo de despedimento coletivo por parte da Altice é uma inaceitável manobra de enxugamento da empresa e de substituição de trabalhadores com direitos por trabalhadores precarizados e mal pagos
O que está em causa neste processo de despedimento coletivo por parte da Altice é, por isso, uma inaceitável manobra de enxugamento da empresa e de substituição de trabalhadores com direitos por trabalhadores precarizados e mal pagos. Pretende-se assim utilizar os despedimentos como mecanismo de pressão sobre todos os trabalhadores, numa empresa que tem lucros e que em plena pandemia comete a profunda irresponsabilidade de lançar um processo de despedimento coletivo.
Verdadeiramente, esta manobra só possível porque nas últimas décadas se transformou a antiga PT num joguete nas mãos de vários interesses políticos e económicos, num processo de canibalização da empresa que teve o seu apogeu na decisão da sua privatização total, em 2015 (com o governo PSD/CDS), e na entrega da PT à Altice, que ficou com a empresa por conta 7,4 mil milhões de euros.
E é uma manobra que beneficia sempre da passividade e da demora dos poderes públicos, nomeadamente no campo laboral, e que é facilitada pelas leis que temos. Seja as que tornaram os despedimentos muito mais baratos, com redução para menos de metade do valor da compensação, numa lei que vem da Troika e que o PS se recusa a alterar. Seja a norma legal que amordaça os trabalhadores e os impede de exercer um direito seu, que a lei lhes confere, de contestar um despedimento ilícito, a partir do momento em que recebem a compensação, com uma valor que em todo o caso lhe é devido, mesmo que perca a causa em tribunal.
O que acontece hoje na empresa vem numa longa sequência de práticas de assédio moral em larga escala, de despedimentos encapotados por transmissões, de desrespeito por quem trabalha e fez esta empresa estratégica para o país
O que acontece hoje na empresa - vale a pena lembrar - vem numa longa sequência de práticas de assédio moral em larga escala, de despedimentos encapotados por transmissões, de desrespeito por quem trabalha e fez esta empresa estratégica para o país. Em 2017, depois de colocar centenas de trabalhadores sem funções, depois de criar uma "Unidade de Suporte" para onde enviou cerca de 300 funcionários aos quais não eram atribuídas tarefas, depois de ver o pedido de estatuto de empresa em reestruturação recusado, a Altice ensaiou a fraude da manipulação da "transmissão de estabelecimento", uma figura jurídica feita para proteger os trabalhadores, e que a empresa quis utilizar para se desembaraçar sem custos de centenas de trabalhadores. Nessa altura, pela primeira vez, em mais de dez anos, houve uma greve geral na Meo/PT e desencadeou-se uma luta exemplar que forçou a atuação da ACT, do Governo, e conseguiu que a lei mudasse para impedir essa fraude.
Mais uma vez, hoje, com este despedimento, estamos não apenas perante uma manobra inaceitável, mas também perante mais um balão de ensaio. Se resultar, ele valerá para a Altice, mas será um sinal para todas as empresas que já preparam uma vaga de despedimento. Tal como em 2017, esta manobra e este balão de ensaio não podem passar.
Os trabalhadores já agendaram a sua resposta, e marcaram uma greve para dia 21 de julho. Mas o Governo não pode fingir que não vê o que se passa. Este despedimento não pode ser autorizado e tem de ser travado. É essa a exigência de um país que se respeite e que respeita quem trabalha.
Artigo de José Soeiro