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O que é que luta pela RTP tem a ver com a democracia? Tudo.

Abrir um canal televisivo em sinal aberto tem profundas implicações no funcionamento do sistema democrático; fazê-lo através da alienação de um canal de serviço público é perverter tanto o serviço público como as regras de licenciamento de novos serviços de programas.
Cortar no serviço público é diminuir a pluralidade informativa e o acesso à diversidade de opiniões. Foto rtppt/Flickr

A decisão do Governo de, neste momento, vender um canal da RTP é, do ponto de vista do interesse público, completamente incompreensível e contraria a prática em toda a Europa decorrente da transição da televisão analógica para a Televisão Digital Terrestre. Por toda a Europa a transição para o digital é acompanhada pelo aumento de canais sem acesso condicionado, incluindo de serviço público. Apenas na Albânia, Bulgária e Luxemburgo o serviço público disponível na TDT está limitado a um canal. No resto da Europa, a realidade é bem diferente: na Alemanha são 11 canais de serviço público, na Bélgica 8, no Chipre 3, na Dinamarca 15, em Espanha 6, em França 10, na Grécia 7, na Hungria 5, na Itália 14, na Macedónia 3, na Noruega 4, no Reino Unido 22, na Suécia 5. E o número de canais privados é também elevado.

Sabemos também que o número de canais não tem correspondência direta com os custos do serviço público; podemos gastar mais em menos canais ou menos em mais canais. Não é, portanto, um problema financeiro.

Então, o que justifica esta insistência em vender um canal da RTP? Bem , é muito simplesmente fazer entrar pela janela, o que não entra pela porta. Em Portugal está pendente um processo relativo ao licenciamento de um canal privado (o quinto canal) e não é possível, por isso mesmo, licenciar novos canais generalistas. Esta decisão de vender um canal da RTP é, portanto, uma forma de ultrapassar o que foi a decisão da Entidade Reguladora da Comunicação Social sobre a criação de um novo canal generalista privado em sinal aberto e mesmo a decisão judicial que ainda se aguarda sobre este processo.

O Governo, bem antes das eleições, terá assumido o compromisso –com um grupo económico, entenda-se (que os compromissos com os eleitores, já se sabe, não são para cumprir) -, de oferecer um canal de televisão. Um instrumento sempre muito apetecido pelo poder, político ou económico. E esta decisão, se não for contrariada, cria uma situação extraordinariamente perigosa para a democracia.

A relação do poder político com a comunicação social é sempre um assunto delicado, que levanta dificuldades e desafios ao próprio sistema democrático. Os problemas da concentração e transparência da propriedade da comunicação social, da missão e estratégia do serviço público de rádio e televisão, da regulação e da pluralidade exigem especiais cuidados. E é num Portugal em plena crise financeira, com um mercado publicitário em acelerada retração, com despedimentos coletivos sucessivos na comunicação social, e quando a discussão internacional se concentra no próprio futuro da imprensa, que o Governo decide entregar um canal de Serviço Público de Televisão a um privado.

Portugal vive uma situação particularmente perigosa. A independência política e a própria subsistência de vários títulos da imprensa escrita e da rádio, e mesmo da televisão, podem considerar-se em risco perante a iminência de mais um canal de televisão generalista privado, que irá acentuar a distorção e crise do mercado publicitário.  Portugal tem o mercado publicitário mais distorcido da Europa; em mais nenhum país europeu, como no nosso país, as empresas concentram mais de metade do seu investimento publicitário nos canais televisivos, e só não o fazem de uma forma mais intensa porque existem limitações legais que o impedem.

Mais um canal privado de televisão em sinal aberto vai reforçar essa tendência, com um aumento do espaço publicitário televisivo de 20 a 40% (porque os canais públicos têm por lei metade do tempo publicitário dos privados e dependendo de a RTP manter ou não publicidade), o que tornará ainda mais complicada a já debilitada situação financeira da maioria dos títulos da imprensa escrita.

Vender um canal do Serviço Público de Televisão é pura e simplesmente inaceitável: vai ao arrepio do crescimento do serviço público que a transição para o digital reclama, coloca em risco todo o setor da comunicação social em Portugal, e é uma tentativa ilegítima de licenciar um novo canal generalista privado de acesso não condicionado. Abrir um canal televisivo em sinal aberto tem profundas implicações no funcionamento do sistema democrático; fazê-lo através da alienação de um canal de serviço público é perverter tanto o serviço público como as regras de licenciamento de novos serviços de programas.

O serviço público de rádio e televisão é um instrumento de cidadania e desenvolvimento próprio dos países democráticos e que não ser desmembrado ou reduzido a nichos. O serviço público deve ser constituído por um conjunto de serviços coerentes, que pode e deve ser aperfeiçoado e mesmo objeto de reformulação a diversos níveis. Mas não é aceitável uma restruturação que menorize o serviço público e o torne incapaz de se constituir como referência de qualidade e de cumprir o interesse público que o justifica.

Uma comunicação social em processo de concentração, sem recursos e em permanente guerra para captar audiências e anunciantes não deveria interessar a ninguém, a começar pelos jornalistas. Conduz à degradação da informação. Ao fim do jornalismo de investigação. À diluição da autonomia dos seus profissionais. À tendência para, em nome das sinergias de grupo, criar verdadeiras redações únicas, diminuindo a pluralidade informativa e o acesso à diversidade de opiniões. À diminuição da independência face ao poder político e económico. À tabloidização de toda a imprensa, incluindo a de referência. Uma sociedade sem uma imprensa livre é uma sociedade adormecida, uma democracia sem o questionamento de uma imprensa independente é uma democracia fraca. E esse é um caminho perigoso e que estamos já a trilhar. Também por isso, a luta pela RTP é tão importante.

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda. Atriz.
Comentários (1)

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