Serviço público é alternativa à monotonia das TV's

Quando se cumprem vinte anos sobre a abertura dos canais privados, as únicas exceções à monotonia do panorama televisivo dos canais de sinal aberto vêm dos canais públicos, RTP1 e RTP2. Privatizar um deles é um erro. Por Diana Andringa, do Conselho de Opinião da RTP.

28 de janeiro 2012 - 23:36
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Passado o deslumbramento inicial com a televisão privada, rapidamente se verificou que trazia, sobretudo, mais do mesmo. Foto PictureWendy/Flickr

Em vésperas da abertura da televisão portuguesa à atividade privada, uma entrevista do então ministro da Cultura francês, Jack Lang, alertava-nos para que a existência de um maior número de canais não implicava, forçosamente, um maior pluralismo, quer na informação quer na programação.

Passado o deslumbramento inicial com a televisão privada – e, nomeadamente, com o impacto que o jornalismo praticado pela SIC tivera na  informação da própria RTP – rapidamente se verificou que trazia, sobretudo, mais do mesmo. Nos canais nacionais degladiavam-se novelas, concursos e os chamados programas para a terceira idade – como se não bastassem já a esta o isolamento, a solidão, as doenças próprias do envelhecimento e a escassez das reformas e tivesse ainda de sofrer o enxovalho de só merecer  programas monotonamente iguais, dia após dia, mês após mês, ano após ano – enquanto que nos canais por cabo – essa outra garantia de “pluralismo” que, para além de paga, não chega a toda a população – se repetiam também as mesmas séries, em diferentes fases de emissão, permitindo-nos ver vivo num canal o protagonista morto noutro muitos meses antes. Falando de mortos, na televisão nacional tivemos mesmo, no último ano, o duvidoso privilégio de ver, nos dois canais privados, dois programas “mediúnicos” envolvendo o mesmo falecido protagonista. Há lá maior prova de pluralismo?

Quando se cumprem vinte anos sobre a abertura dos canais privados, as únicas exceções à monotonia do panorama televisivo dos canais de sinal aberto vêm dos canais públicos, RTP1 e RTP2: mesmo aqueles a quem o estilo do programa, demasiado próximo do “infotainment”, enerva, têm dificuldade em negar que o Prós e Contras trata questões de interesse público, como mesmo os que defendem a Monarquia mais não podem que lamentar que não tenha sido dedicada a esta a mesma atenção recentemente dada à República. Quanto à série “A Guerra”, unanimemente elogiada, em que outro canal poderíamos tê-la visto, se não existisse televisão pública?

E é nesta altura de aparecimento da TDT – que, depois de anunciada como a panaceia que iria permitir a todo o povo português deslumbrar-se perante o pluralismo da oferta televisiva,  não apenas não oferece mais do que o até agora existente, como não cobre todo o país e implica custos para se ter acesso ao que já se tinha  – que se anuncia a privatização de um dos canais de sinal aberto da RTP.

Parece difícil, dada a experiência, convencer alguém de que em termos televisivos reforçar o mercado reforce a qualidade e a variedade da oferta televisiva. Mais fácil é recordar o dinheiro gasto com a televisão pública, os salários (várias vezes superiores ao mínimo) das suas vedetas, a frota automóvel dos seus dirigentes: não apenas algumas dessas criticas são justas, como é uma demagogia que, sobretudo em tempo de crise, “vende” bem.

O que se esquece é que esses são desvios corrigíveis, com melhores gestores (de preferência que saibam alguma coisa de televisão), uma outra política salarial e um entendimento claro das missões de serviço público – que a TDT facilmente permitiria cumprir, pela multiplicação de canais, em relação aos diversos tipos de público. Pondo, por exemplo, ao dispor de todos uma RTP Memória que possa ser um meio de conhecimento da História do país e do Mundo, evitando que, de quando em vez, a própria televisão que contribui para a amnésia venha revelar, espantada, o grau de ignorância da população sobre essa mesma História...

Há duas conversas que nunca esqueço: uma, a de uma camponesa do Couço que reclamava por haver pouca música clássica na RTP. “Eu posso não saber se o Bolero é de Ravel ou de Beethoven, mas gosto de o ouvir”, justificou. Outra, a de um camponês dos arredores de Mafra que, depois de ver um documentário em DVD, teimava que, na televisão, aceleravam os filmes: “É que neste eu percebi tudo o que as pessoas diziam, mas na televisão falam tão depressa que não percebo nada!” (Claro que a questão não era a velocidade de projeção, mas um ritmo decidido pelos programadores – e pelo receio do zapping –  que não tem em conta tipos de público com maior dificuldade em apreender falas e temas que não domina.)

As duas refletem o mesmo problema: a forma como a televisão, os seus dirigentes e aqueles que os nomeiam desprezam o público a que se dirigem e é a sua razão de existir.

Um público que não quer só distrair-se e alienar-se, mas também aprender coisas novas, ser informado, sentir que pode ser parte da ágora onde se discutem questões que determinam a sua vida. Mas que precisa que lhe traduzam as imparidades, o “rating”, as “agências de notação”, aquele insulto de o considerarem lixo. Que lhe expliquem as razões do poder da chanceler Merkel e qual a diferença entre a troika e o cobrador do fraque. Que lhe digam quantos cantos têm os Lusíadas (e, já agora, o que são os Lusíadas) e qual é o motivo de riso da referência aos concertos para violino de Chopin (e, já agora, quem foi Chopin).

Este deveria ser o trabalho do Serviço Público de Televisão. Critica-se a RTP, mas critica-se porque, sendo pública, os cidadãos podem ser exigentes com ela. O facto de ser Serviço Público é, como escreveu, no seu Relatório de 2007 o primeiro Provedor da RTP, Professor-Doutor Paquete de Oliveira, “determinante para a exigência que manifestam para com a RTP”.

O Serviço Público de Televisão tem, todos o reconhecemos, grandes deficiências. Mas o seu trabalho é sistematicamente escrutinado, não só pela ERC, como as restantes televisões, mas pelo Provedor do telespectador, pelo Conselho de Opinião, pela própria Assembleia da República. Nada disto existirá no canal  privatizado.

Corrigir essas deficiências privatizando um canal do Serviço Público de Televisão – que, embora ainda não tenha sido designado, se pressupõe ser o Canal 1 –  é um erro muito maior do que ignorar o número de Cantos dos Lusíadas ou confundir Chopin com outro qualquer compositor. É ignorar a necessidade de uma televisão que eleve o espectador em vez de o alienar, que o veja como cidadão e não como consumidor. É ignorar a consciência que disso têm os telespectadores – mesmo os que fazem as audiências de programas de voyeurismo nos canais privados, mas não deixam, por isso, de ser exigentes com os canais públicos. É o que se chama, afinal, deitar  fora o bébé com a água do banho.

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