"A venda de um canal da RTP está mal estudada"

Paquete de Oliveira foi o primeiro Provedor do Telespectador da RTP e conhece bem o serviço público de televisão que se faz em Portugal. Nesta entrevista ao esquerda.net, critica a intenção do Governo de vender um canal sem acautelar o interesse da população, do Estado e da própria empresa.

28 de janeiro 2012 - 23:37
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Veja o vídeo da entrevista a Paquete de Oliveira sobre o futuro do serviço público de televisão em Portugal.

O Governo anunciou a intenção de alienar um dos canais de televisão pública. Quais as consequências desta decisão para o serviço público de tv?



Esta é uma decisão política que fez parte do programa eleitoral de Passos Coelho, mas considero que o problema continua muito mal estudado. Espantou-me que no relatório do grupo de trabalho coordenado por João Duque - um economista - não apareça um único dado fundamentado. Se se quer manter o negócio de televisão, seja ou não o Estado o acionista maioritário, nada devia obstar a que o negócio fosse bem feito. E creio que um dos fatores indispensáveis é o da multiplicação de plataformas, reaproveitando os conteúdos que são produzidos e são muito caros.



Com esta intenção do Governo, há três prejudicados. Em primeiro lugar, o público em geral. Enquanto fui Provedor do telespectador da RTP, defendi que a programação e a informação podiam e deviam obedecer a outros parâmetros. Mas mesmo com todas as críticas que se possam fazer, a RTP ainda é aquele espaço mais pluralista e que vai mais ao encontro das necessidades do grande público. Obviamente, os outros têm outras obrigações: conseguir audiências e dar lucros.

Em segundo lugar, a própria RTP. Neste ramo de negócio, ela só teria a lucrar com a multiplicação de plataformas. Se for avante a ideia de privatizar o 1º canal, estará em discussão a forma de arrumar num só canal toda a programação da RTP - que tenha uma certa qualidade de serviço público - e ao mesmo tempo defender-se da concorrência. Do meu ponto de vista, não interessa nada ter uma televisão de serviço público para guetos. E aí põe-se o problema: o canal tem de fazer aqueles atos de serviço público. Mas se não tem público, como é que se está a servir o interesse da população?

O terceiro é um problema social gravíssimo. É que a RTP é uma casa que hoje em dia tem 2400 trabalhadores. E é preciso não esquecer que o canal que se quer alienar é a sustentabilidade das oito plataformas que a RTP tem. O que me parece é que não foram feitos estudos suficientes para saber, uma vez alienada para um privado, quanto é que vai custar uma RTP com produtos só específicos de serviço público mas que tenham capacidade de atrair público e audiências. Caso contrário - isto é capaz de ser uma posição radical - é melhor fechar e pensar noutra hipótese.



Se há canais de tv pública no topo das audiências na Europa, como se compreende esta medida, que vai no sentido contrário?



Esse é outro aspeto que está mal estudado nos documentos que até agora vi e mesmo no relatório que o presidente da RTP apresentou aos deputados. Penso que a própria RTP devia fundamentar mais a sua razão de ser nas diretivas que a União Europeia tem difundido sobre os media. Veja-se o caso do Euronews em português: ainda hoje vi um artigo de um deputado do CDS a dizer "Não acabem com o Euronews", exatamente porque é um veículo cada vez mais formidável da nossa língua, que é sempre a porta aberta para a nossa cultura.

É preciso ver o que se passa nos outros países, que também estão em dificuldades. Eu tenho visto vários argumentos para justificar a privatização. Um deles é muito defendido pelo Pacheco Pereira: em democracia, o Estado não deve ter media. Creio que é um argumento ideológico, porventura tão ideológico como o meu que acho que o Estado os deve ter. Tal como tem de colocar no espaço público vários serviços para as populações, também tem de colocar serviços de comunicação, de informação e até de entretenimento.

Outro argumento é o que diz que o Estado não pode fazer concorrência desleal aos operadores. Mas é curioso ver que são esses operadores que hoje esgrimem mais argumentos para que o Governo não venda um canal. Percebe-se que o que eles desejariam era que o serviço público não tivesse publicidade.

Há ainda o argumento de que o Estado, ao ter a televisão como um meio poderoso de exercer domínio sobre opinião pública, permite aos partidos do arco do poder infiltrarem-se e dominarem a informação e a programação. É evidente que existiu essa "deriva venenosa" dos governos em exercício montarem mecanismos que lhes permita exercer maior domínio do que outros partidos. Ou que os movimentos que existem na sociedade, que muitas vezes são mais importantes para esclarecer a opinião pública do que os partidos que estão no leque do poder.

E por fim, há o argumento dos custos. Eu tenho pena que só se venha discutir essa questão numa situação de crise. Concerteza que o Estado também gasta muito noutros investimentos para proporcionar condições no espaço público para os seus cidadãos e é obrigado a isso. O Estado tem a obrigação de proporcionar meios, através do mundo digital, para que os seus cidadãos tenham acessibilidade garantida em igualdade de circunstâncias, como a Constituição diz em relação aos media tradicionais.



Mesmo do ponto de vista da situação financeira da RTP, a alienação de um canal fará sentido?



O que se está a ver é um problema de aflição: não há dinheiro, corta-se em tudo. A RTP é um meio que consome muito investimento, mas funciona num sistema dual, com receitas a partir dos impostos e das receitas publicitárias - que foram cortada a metade, para 6 minutos por hora, embora os outros tenham o dobro o tempo. Mas sabemos que foi o último governo do PSD a impedir que a receita da publicidade fosse aplicada na programação, mas apenas no pagamento da dívida.



Para uma empresa com 2400 trabalhadores, o Estado tem aqui um problema que tem de ser considerado, tendo em conta que as saídas previstas no programa de reestruturação, pelo que se sabe até agora, rondam as 150. Não estou a ver que qualquer operador, seja ele de Angola, seja ele da China ou donde for, vá pegar na empresa como está. Podem comprar a televisão por um euro, enviando para o Estado todas as responsabilidades sobre a dívida que está adquirida, sendo que a dívida é que é o problema de manter ou não manter a televisão! Mas irão concerteza fazer uma estação com outros projetos e outros planos, sobretudo em relação ao lucro que têm de ter.

E aqui põe-se o problema da publicidade. Em Espanha, Zapatero tirou a publicidade na TVE, mas agora Rajoy já fala em restabelecê-la. E eu penso que a ideia de que nós não pagamos a publicidade é sofismática. Normalmente, as empresas fazem publicidade por causa do seu negócio e têm todo o direito a fazê-lo. Mas os cidadãos quando estão a consumir os produtos publicitados estão a pagar os custos da publicidade desses produtos. Creio que este argumento é de ter em conta. E também defendo que um cidadão ou uma qualquer empresa deva poder publicitar o seu produto na televisão ou no media que bem entenda.





Que efeitos pode ter a venda do 1º canal na estratégia comercial dos canais privados?



Os estudos económicos tendem a provar que isso será um desastre. Diz-se que o bolo publicitário está dividido por três, mas não nos esqueçamos dos canais de cabo, que até já ultrapassaram as audiências dos canais em aberto. Penso que será uma razia. Quando vier o novo operador, ele vai investir para ultrapassar os outros, senão não se metia neste negócio. E os outros vão sofrer as consequências. Num momento em que o discurso neoliberal está aí em força, quase me apetece dizer que são as regras do mercado e cada um vá ao seu. Mas julgo que o Estado não pode fugir ao seu papel de regulador e ver quais as consequências duma decisão dessas num espaço que já está tão dividido. Politicamente, a questão de haver um novo canal terá de ser melhor estudada.

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