A análise dos processos de construção identitária de um grupo de mulheres residentes no Norte do país revela que o estigma continua a ser um aspecto central da dificuldade em lidar com a experiência homo-erótica na primeira pessoa.
Por Ana Brandão, publicado na revista Vírus.
A investigação empírica em torno da temática da dissidência sexual em Portugal, a despeito da sua importância para a compreensão das próprias condutas sexuais normativamente aceites, é, ainda, extremamente incipiente. A este estado de coisas não é, certamente, alheio o desenvolvimento relativamente tardio do associativismo lésbico, gay, bissexual e transgénero (LGBT), mas também do feminismo, intimamente ligado ao processo de desenvolvimento da sociedade portuguesa e, em especial, ao carácter semiperiférico desta.
A despeito de algumas tímidas manifestações anteriores, é apenas a partir da década de noventa do século XX que o associativismo LGBT adquire, entre nós, projecção pública, começando a sua acção a pautar-se por uma certa continuidade e sistematização. Nas sociedades economicamente desenvolvidas – com destaque para os Estados Unidos, Grã-Bretanha e Alemanha –, cedo surgiram condições para a formação de comunidades e subculturas LGBT fortemente enraizadas e ligadas a uma apropriação do espaço urbano que contribuiu para a sua visibilidade e que funcionou como mecanismo de protecção daqueles que as procuravam. Nestes países, transformações estruturais nas condições e estilos de vida das populações, a que se juntou a acção do movimento de reforma sexual de finais do século XIX, permitiram a formação de enclaves urbanos que sustentaram a formação de uma identidade de grupo e a mobilização política daqueles que não se identificavam com o modelo normativo.
Em Portugal, uma industrialização tardia, o desinvestimento na escolarização da população (em geral, e da feminina, em particular) e condições de vida muitas vezes roçando o limiar de sobrevivência, a que se juntou um regime ditatorial duradouro com os seus mecanismos propagandísticos, de censura e repressivos contribuíram para a preservação de estilos de vida e visões tradicionais do género e da família com impactos consideráveis ao nível da vivência da sexualidade e da sua relação com os fenómenos identitários. A despeito da forte presença de uma matriz ideológica judaico-cristã e do peso considerável da Igreja Católica entre nós, estas não são, por si sós, suficientes para explicar por que razão, mais do que noutras realidades, o Estado português continua a insistir em associar o valor pessoal e moral dos seus cidadãos às suas preferências e/ ou práticas sexuais, e em consentir na – quando não promover a – sua discriminação se não formal, pelo menos de facto.
No caso particular da dissidência sexual feminina, aqui entendida em termos de experiências e vivências não conformes à heterossexualidade exclusiva, há uma segunda dimensão de análise fulcral: a persistência da dominação masculina. É sobejamente reconhecida a situação de subalternidade a que as mulheres, em geral, e as mulheres portuguesas, em particular, têm sido remetidas, consagrada durante séculos nos discursos religiosos, jurídico-legais e, mesmo, médicos e nas práticas individuais de homens e mulheres. E se as mudanças recentes têm vindo a proporcionar, uma (certa) independência, nomeadamente económica, a estas, a verdade é que as alterações no que diz respeito ao reconhecimento e à aceitação de uma agência sexual feminina ainda estão muito longe de lhes permitir usufruir, de forma efectivamente autónoma e livre, da sua sexualidade.
Esta dimensão da vida das mulheres parece continuar a articular-se privilegiadamente em torno de um conjunto de preceitos, dentro dos quais é aceite o seu direito ao prazer e à autodeterminação sexuais: ser exercida no âmbito de uma relação “séria” (assuma esta a forma do casamento, ou não) ligada ao cuidado com os outros (máxime, marido/ companheiro e filhos); e dotada de um carácter instrumental em que o prazer sexual não é valorizado em e por si só, mas subordinado a outros (o homem, a família, o amor). Estes são os traços essenciais do arquétipo da mulher “séria”, ao qual se contrapõem as imagens da mulher “poluída” – de entre as quais, a mulher com interesses homo-eróticos, mormente a lésbica –, todas elas definidas, justamente, pela saturação sexual.
Se a dominação masculina é um dos factores que contribuem para explicar por que razão têm sido sobretudo os homens a estar na linha da frente de formas diversas de mobilização política voltadas para a defesa pública do direito a uma sexualidade não confinada à heterossexualidade exclusiva – recordemos, de resto, que um dos elementos definidores do “prestígio” masculino tem sido, justamente, a sua agência sexual –, é necessário acrescentar a este quadro um movimento de mulheres que, em Portugal, se caracterizou sempre por uma fraca implantação, pela submissão ao poder masculino, pela intermitência das suas acções e pela efemeridade das suas organizações.
Ao passo que noutras realidades sociais e históricas o feminismo constituiu um contexto favorável à afirmação de uma agência sexual feminina e, muito frequentemente, ao desenvolvimento da dissidência sexual feminina – note-se que o lesbianismo chegou a ser considerado a sua quintessência por alguns sectores do feminismo –, em Portugal, estas questões parecem ter sido sempre rodeadas de inúmeros “cuidados” e silenciamentos, entre outras razões para que se não pusesse em causa a “respeitabilidade” das mulheres nele envolvidas – o que, é claro, não impediu que isso acontecesse com uma certa frequência…
É, portanto, no quadro deste jogo complexo de influências mútuas que é possível compreender por que razão, para muitas mulheres, continua a ser problemática a constatação de que, num certo momento das suas vidas, se sentem eroticamente atraídas por alguém do mesmo sexo. No caso específico do homo-erotismo feminino, a ausência do falo contribui, adicionalmente, para a sua raridade na designada “cultura popular” (mas também erudita), que oscila entre a sua negação (pela invisibilidade) e a sua menorização (pela redução a elemento de titilação masculina, máxime via pornografia), ou, embora mais raramente, pela sua consagração na imagem da depredadora sexual lésbica – figura que, sendo claramente mais aterradora, não deixa, todavia, de cumprir os mesmos propósitos de regulação social.
Assim, num contexto sociocultural de onde estão ausentes modelos alternativos ao casal heterossexual tradicional e onde se crê, ao contrário de toda a evidência empírica, que o desejo sexual é linear e se encontra permanentemente fixado num objecto de determinado sexo – geralmente, do “outro” sexo –, o homo-erotismo surge, antes de mais, como uma contravenção à ordem social. Mas assume, igualmente, a forma de uma infracção das fronteiras definidoras do género, visto que se presume que uma mulher “normal” se sentirá atraída por um homem, e vice-versa.
Num certo sentido, aliás, a ideologia dominante e a ideologia que subjaz ao movimento LGBT dominante são algo similares: porque assentam em idêntica crença na invariabilidade e predeterminação do desejo sexual; e porque confundem com frequência identidade de género com preferência sexual. Em ambos os casos, estas crenças sustentam, portanto, mecanismos que operam no sentido de garantir a conformidade às classificações e às normas definidoras do grupo. Isto é visível, no caso da subcultura LGBT, e apenas para referir alguns exemplos, na visão do desenvolvimento de uma identidade gay ou lésbica que procede por etapas mais ou menos lineares e com um desfecho previsível, consagrado, nomeadamente, nas histórias de “saída do armário”, um dos seus guiões fundamentais; na consequente dificuldade de aceitação de sexualidades e identidades não exclusivamente homo ou heterossexuais, no mais das vezes entendidas como transitórias, quando não como atitudes interessadas – e interesseiras – de ocultação; ou, ainda, na definição de modos de apresentação do Eu (vestuário, gestualidade, conduta) que passam pela recusa dos padrões convencionais do género a este nível.
Estes três exemplos actuam, aliás, no sentido de uma certa confirmação mútua e subjazem a um mecanismo idêntico de reificação de categorias social e culturalmente construídas e, portanto, relativas. Este parece ser, de resto, um dos dramas fundamentais do activismo gay e lésbico – é que, pretendendo combater as categorias pelas quais é socialmente (des)classificado, parece ter que partir da afirmação da sua “realidade” para garantir a mobilização política, reforçando, assim, de modo circular, os próprios sistemas de classificação que pretende combater… Mas é, também, um drama presente ao nível da experiência pessoal e privada porquanto os indivíduos são, muitas vezes, compelidos a ajustar-se a uma categoria – qualquer que ela seja – que sentem não corresponder nunca exactamente à totalidade do que são.
A tensão entre a identificação com o Outro, i.e., a procura da similaridade e da assimilação, e a necessidade de afirmação da originalidade individual, é um traço basilar dos fenómenos identitários. Mas, no caso particular da relação entre identidade e homo-erotismo, essa tensão torna-se particularmente presente pela estigmatização de que este ainda é alvo. A análise dos processos de construção identitária de um grupo de mulheres residentes no Norte do país revela, justamente, que o estigma continua a ser um aspecto central da dificuldade em lidar com a experiência homo-erótica na primeira pessoa. Daqui decorrem questões várias. A cautela extrema na eventual revelação do interesse homo-erótico a terceiros; a resistência/recusa em associar-se à exibição pública do atributo estigmatizado ou àqueles(as) que o fazem; e a não identificação face aos discursos, modelos e estilos de vida propostos pelas comunidades, subculturas e/ ou organizações LGBT inserem-se na tensão entre aquelas duas lógicas, agravada pela ameaça de descrédito pessoal, moral e social decorrente da ostentação do estigma. E é a consciência deste risco que está na base de um conjunto de acções destinadas a manipular os aspectos mais ínfimos da vida quotidiana e da relação com os outros, frequentemente com elevados custos psicológicos e sociais.
Porém, deve notar-se que antes mesmo de este tipo de considerações ser conscientemente equacionado, aquilo que surge como aspecto problemático para estas mulheres é a infracção das expectativas ligadas ao género. Isto torna-se particularmente evidente quando comparamos diferentes gerações. Se as mulheres mais jovens gozam já da possibilidade de aceder a modelos alternativos à heterossexualidade – ainda que escassos e exigindo um investimento na sua procura –, as mais velhas não a possuíam, sequer. Todavia, a percepção de que o homo-erotismo é uma experiência socialmente condenada está sempre presente, por um lado, pela própria omissão, e, por outro, pelo facto de claramente não fazer parte de uma trajectória de vida antecipada. Precisamente por estas razões, ele levanta uma série de questões que interferem directamente com o género, ligadas, nomeadamente, ao casamento e aos filhos, e ferindo sempre, de algum modo, o valor pessoal e social destas mulheres
enquanto mulheres.
Embora entre as gerações mais jovens haja alguns indícios de uma certa redução do sofrimento provocado, sobretudo, pelo isolamento e pela solidão, ou por sentimentos de raridade, quando não de “anormalidade”, dois outros factores parecem ser cruciais para explicar o modo como a dissidência sexual é, por um lado, vivida, e, por outro, integrada na identidade pessoal: a classe e a presença/ ausência de redes sociais de apoio. A primeira parece estar presente, desde logo, ao nível dos padrões de socialização do género que, apresentando-se mais ou menos dicotómicos, dificultam ou, inversamente, facilitam a inclusão do desejo e da experiência homo-eróticos no sentido do que se é, em geral, e do ser mulher, em particular. Por outro lado, está também ligada aos capitais económico, cultural e social que garantem o acesso aos recursos necessários quer à sua inclusão na identidade pessoal, quer a redes de sociabilidade onde a sua vivência pode ser mais ou menos aberta.
Genericamente, as mulheres de origem social mais favorecida gozam, em suma, de condições que tornam comparativamente menos problemático o desejo homo-erótico e a sua expressão. Aqueles dois factores conjuntamente explicam, provavelmente, por que razão são as outras mulheres a apresentar uma vivência mais centrada na comunidade LGBT, onde encontram, justamente, o apoio de que não gozam nos seus contextos de origem e quotidianos. Não se trata, todavia, de uma relação linear. Nela interferem outras variáveis, como sejam a pertença geracional ou a área de residência. Assim, também entre as mulheres mais velhas e entre aquelas que vivem afastadas dos grandes centros urbanos quando reconhecem, pela primeira vez, o seu homo-erotismo, a presença de uma comunidade gay e lésbica – muitas vezes resumida ao circuito de uns quantos espaços de encontro – tende a surgir como fonte de apoio e princípio de identificação fundamentais.
As mudanças sofridas pela sociedade portuguesa nas últimas décadas, e as experiências de vida do conjunto de mulheres que entrevistámos apontam no sentido de uma diminuição das desigualdades de género, nomeadamente no que respeita à autonomia pessoal e sexual das mulheres, e de uma tendência para uma maior aceitação do homo-erotismo como forma de expressão dos afectos e da sexualidade. Isto significa que é hoje comparativamente mais fácil – em grande parte, diga-se, graças à acção do activismo LGBT nacional e internacional – usufruir de uma sexualidade e de uma vida afectiva que não se confinem à heterossexualidade exclusiva. Mas, apesar disso, o facto de não ser um homem o alvo do desejo de uma mulher continua a ser pessoal e socialmente problemático…
ANA BRANDÃO | Socióloga - Docente na Universidade do Minho