Foi através de uma videochamada que Ana Paula agradeceu a ajuda e o apoio dizendo: “Vale a pena, a luta continua. Muita gratidão, não tenho palavras para vos agradecer”. Esta quinta-feira, dezenas de pessoas concentraram-se à porta da Maternidade Alfredo da Costa em solidariedade com ela e com “todas as mães em risco de perderem os filhos por não terem acesso a habitação”.
A ação foi convocada pela UMAR, Vida Justa, Rede 8 de Março e Habita!, exigindo que sejam ativadas respostas que permitam que Ana Paula possa pagar uma renda de acordo com o rendimento que aufere. Foi também mais um momento de recolha de bens para ajudar, parte de uma onda de solidariedade despoletada depois de ter sido conhecido o caso.
Ana Paula vivia com as suas três filhas numa casa auto-construída no bairro do Talude, em Loures, que foi demolida em setembro. Foi instalada pela Segurança Social numa pensão e, denunciou o movimento Vida Justa, foi depois ameaçada de que, se não encontrasse casa, acabaria por ser separada do filho que agora acabou de nascer.
Esta mãe acabou por ter alta da maternidade na quinta-feira de manhã, ainda antes desta concentração. Rita Silva, do Vida Justa, explica que “foi retirada da maternidade à velocidade da luz. Foi tudo feito à pressa, ela não tinha roupa, não tinha 'ovo' para transportar o bebé. Nós, do Vida Justa, íamos acompanhá-la na saída, mas não quiseram esperar e acabaram por arranjar-lhe um 'ovo' e roupa”. A organização reitera a acusação de houve pressão sobre ela e que sem o apoio das associações e “pressão da esfera pública já teria as filhas institucionalizadas e a família separada”. Ao Público, que registou estas declarações, o Instituto da Segurança Social desmente.
A ativista insiste na “denúncia e grito de indignação pelo caso de Ana Paula, mas também por todas as mulheres que enfrentam a mesma situação”. Diz ainda que “quando as famílias despejadas procuram ajuda junto das instituições, as assistentes sociais respondem que não têm solução, e que se as mães não arranjarem uma, a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens será acionada”, o que é “uma forma de afastar as mães de pedir ajuda porque recebem uma ameaça por parte das instituições de forma as afastar do sistema social de apoio”.
Ao mesmo órgão de comunicação social, Cheila Colaço Rodrigues, da rede 8 de Março, diz que o facto de Ana Paula ter voltado a ser albergada na pensão é uma “meia vitória”, tratando-se de “mínimos olímpicos”, sendo necessário “que se cumpra a lei”, “que se acionem os programas que já existem” porque “a habitação é um direito que está consagrado na Constituição”. Garante ainda que “não vamos largar a mão da Ana Paula nem de nenhuma mulher nesta situação, Ana Paula e todas estas mulheres vão ter casa”.
Uma situação “absolutamente absurda e incompreensível”, diz Marisa Matias
Na ação esteve também presente Marisa Matias que foi demonstrar “solidariedade” perante “uma situação absolutamente absurda e incompreensível”. Sobre o caso da Ana Paula, vinca que se trata de uma mulher “que madruga para ir trabalhar”, que “o Estado não fez nenhum tipo de intervenção quando a Ana Paula deixou de poder pagar a renda com o seu salário porque a renda aumentou tanto que era impossível de pagar”, que “não fez nada quando a retirou de uma barraca, mas não lhe ofereceu uma alternativa, a não ser um quarto, numa cidade que não é aquela onde as filhas vão para a escola, não é aquela onde ela vive e não tem acesso ao trabalho”. Mas agora quer agir em relação ao filho que acaba de nascer por considerar que “não tem condições de habitabilidade para ter esta criança”.
A deputada bloquista sabe que o problema de habitação de Ana Paula é o mesmo “de tantas mulheres trabalhadoras neste país, e em particular que afeta mais, devemos dizer, mulheres migrantes, que têm salários mais baixos ainda e que se deslocam muito, fazem quilómetros todos os dias para poderem limpar casas, para cuidar de pessoas”. Estas “não têm salários que permitam pagar os preços da habitação tal como estão neste momento” e o Estado “não intervém na ausência de um direito básico, como é o da habitação de uma mulher que tem filhos menores”.
Defende que “é preciso intervir e garantir que estas pessoas que trabalham tenham direito e tenham acesso a uma habitação digna”, sendo isso “o mínimo que se pode exigir”. Mas não esquece também que há um problema generalizado de acesso à habitação, cuja resolução passa pela regulação dos preços das casas porque “é inaceitável que se continue este negócio especulativo, que as pessoas se vejam nesta situação de ter um trabalho regular, de ter um salário ao fim do mês e não conseguir pagar” a renda de casa.
Vida Justa quer ação de Marcelo sobre “grave crise habitacional”
Face a esta situação, o Movimento Vida Justa anunciou que pediu uma reunião urgente com o Presidente da República “para tratar da grave crise habitacional que assola o país e a proliferação de bairros autoconstruídos, que têm sido alvo de demolições sem que sejam asseguradas alternativas habitacionais dignas”. Uma situação que, considera, está a ter “especial gravidade” em Loures, indicando-se neste concelho zonas como o Talude Militar, o Zambujal e Santa Iria da Azóia, e acrescentando-se Penajóia e Terras da Costa, em Almada, e Santa Marta, no Seixal, como exemplos.
Tem-se assistido nos últimos meses à “destruição de casas em diversos bairros autoconstruídos”, o que “tem gerado enorme preocupação e revolta social”. Estes despejos “estão a desalojar famílias inteiras, muitas com crianças, idosos e pessoas vulneráveis, sem qualquer garantia ou perspetiva de realojamento condigno”, afirma o movimento.
Assim, para “além de representar uma ameaça direta ao direito fundamental à habitação, estas demolições colocam em causa o direito das famílias de manterem os seus filhos sob o seu cuidado, uma vez que o desalojamento força muitas crianças a serem retiradas dos seus lares e, em alguns casos, do seio familiar”, uma referência que lembra o caso de Ana Paula.
O movimento considera “inaceitável que o Estado português e as suas autarquias promovam ou permitam demolições sem primeiro garantir alternativas habitacionais justas e dignas”, devendo existir “um plano nacional sério para erradicar os novos bairros de autoconstrução precária, garantindo que os atuais residentes possam ser realojados de forma digna e humana”.
Preços das casas continuam a aumentar
A crise na habitação em Portugal está a acentuar-se, tendo-se conhecido esta sexta-feira os últimos números do Índice de Preços da Habitação do Instituto Nacional de Estatística, que mostram que os preços das casas continuam a aumentar.
Em 2024, de acordo com estes dados, os preços das habitações existentes aumentou 9,7% e o das novas 7,5%. Em termos gerais, o Índice de Preços da Habitação aumentou 9,1%, o que corresponde a mais 0,9 pontos percentuais do que em 2023.
No último trimestre do ano, houve um aumento homólogo de 11,6%, uma taxa de 1,8 pontos percentuais superior ao trimestre anterior. Neste indicador o aumento de preços das habitações existentes foi de 12,4% e nas habitações novas de 9,6%.
O mesmo índice mostra que houve um aumento de 14,5% no número de casas transacionadas face a 2023 e que o valor transações foi de 33,8 mil milhões de euros, mais 20,8% que no ano anterior.
Número de crianças a viver sem condições dignas de habitação duplicou
Estes números conjugam-se com outros que foram conhecidos também esta sexta-feira. O Expresso analisou os dados dos menores em risco a viver em barracas, casas sem condições, quartos de pensão pagos pela Segurança Social ou outras situações precárias e que são alvo de medidas de proteção, concluindo que os números estão a aumentar.
Neste caso, trata-se de dados referentes a 2023, os últimos disponíveis da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens. Neste ano, houve 35 casos considerados em situação de sem-abrigo ou sem habitação quando em 2022 tinham sido 16. Os casos concentram-se no distrito de Lisboa, com 42% dos processos, Setúbal e Évora.