Machosfera

Valor Sexual de Mercado e a privatização do amor em tempos neoliberais

21 de junho 2025 - 14:38

O “idiota da aldeia” tornou-se o cretino dos likes, o vendedor de cursos milagrosos para enriquecer ou curar doenças e os coachs (ou pastores do neoliberalismo) com pregações de adoração ao capitalismo. Nesse emaranhado de sujeitos esvaziados pelo capital, surgem movimentos masculinistas, que não buscam o amor, mas tratam as relações como ativos financeiros.

por

Hugo Dias

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cabeça de manequim com headphones
Foto Mic JohnsonLP/www.songsimian.com

O amor - sentimento que escraviza deuses e humanos, protagonista dos grandes romances, tinta das canetas dos poetas, força avassaladora que emerge das bocas apaixonadas - toma a nossa existência de forma abrupta e, como um furacão, no encontro com o outro, impõe aos indivíduos suas vicissitudes: alegria, calor, lágrimas, dor, sofrimento, paixão, êxtase, entre outras. São essas as condições das relações com o amor e o seu verbo, o amar.

No entanto, este texto não tratará do amor, mas de sua ausência - ou melhor, do processo de privatização das relações afetivas e das consequências da captura neoliberal do amor, transformando o desejo e o sentimento em meros investimentos económicos. Se pretende, portanto, analisar o fenómeno da produção de uma “masculinidade neoliberal”, visualizada socialmente por meio dos red pills, sujeitos desinteressados no amor devido ao insucesso de manter laços afetivos que não estejam em uma zona de produção funcional de seus interesses como homem que sofre o fracasso de se ver segregado por um mundo que ele não conquista mais o domínio de macho.

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O neoliberalismo, que permeia as ações humanas e as suas relações na contemporaneidade, age como um dispositivo de subjetivação, podendo ser compreendido como: “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes [...]” (Agamben, 2009, p. 40). Essa máquina de produção de subjetividades cria um sujeito governado pelos imperativos neoliberais e atua como promotora de uma vida moldada pela lógica empresarial e as dinâmicas do mercado. Há um novo poder no mundo neoliberal que, ao capturar o desejo do sujeito, impõe uma racionalização empresarial de seu desejo: “o desejo do sujeito é o desejo do Outro. Desde que o poder moderno se torne o Outro do sujeito” (Dardot; Laval, 2016, p. 327).

O homem neoliberal, moldado pelas regras do mercado, torna-se o empreendedor de si, investe a todo momento, seja no mercado financeiro, no corpo ou em suas relações, sempre priorizando a sua performance. A sua subjetividade é sequestrada pelo capital: “o mercado é um processo de formação de si” (Dardot, Laval, 2016, p. 145). Todas as atividades humanas, ao menos pelo próprio contexto criado pelo imaginário neoliberal, são compreendidas como produção, investimento e cálculo incessantes. A disciplina pessoal transforma-se em economia, fazendo da subjetividade um mecanismo de promoção do capital; as ações humanas e afetivas passam a ser vistas sob a ótica do desempenho, status e do sucesso:

Como sabemos, a generalização da forma-empresa no interior do corpo social abriu as portas para os indivíduos se autocompreenderem como “empresários de si mesmos” que definem a racionalidade de suas ações a partir da lógica de investimentos e retorno de “capitais” e que compreendem seus afetos como objetos de um trabalho sobre si tendo em vista a produção de “inteligência emocional” e otimização de suas competências afetivas. (Safatle, 2021, p. 30-31)

A empresa torna-se o modelo geral da vida humana, integrando as esferas pessoal e profissional. Não há mais barreiras: o sujeito precisa mostrar desempenho e eficácia plenos em todos os âmbitos da sua existência, administrando até mesmo as suas relações afetivas com métodos e técnicas de gestão, colocando o amor em gráficos e tabelas, almejando os “resultados esperados” do investimento - não mais libidinal - mas económico das relações. Este homem-empresa, típico da era neoliberal, sofre de uma quantofrenia: obsessão pela mensuração que o leva a quantificar a vida: “A doença da medida não é nova. Ela se desenvolve de modo recorrente nos meios que aplicam a qualquer coisa uma linguagem inspirada nas matemáticas. Ela repousa sobre a crença de que a objetividade consiste em traduzir a realidade em termos matemáticos.” (Gaulejac, 2007, p. 101).

O sujeito desenvolve o seu capital humano a partir de suas escolhas, estas, orientadas por um cálculo de custos e benefícios. As suas posições sociais e a distribuição de rendimento são consideradas como frutos exclusivos dos seus próprios investimentos, individualizando o sucesso e culpabilizando o fracasso: “Exige-se do novo sujeito que produza “sempre mais” e goze “sempre mais” e, desse modo, conecte-se diretamente com um “mais-de-gozar” que se tornou sistêmico. A própria vida, em todos os seus aspetos, torna-se objeto dos dispositivos de desempenho e gozo” (Dardot; Laval, 2016, p. 355–356). A este sujeito, resta calcular a vida e projetar no outro - não mais objeto de desejo, mas de investimento - o valor necessário para obter as vantagens prometidas pelo capitalismo. Como em qualquer investimento, quando o outro deixa de oferecer retorno, seja por variáveis de mercado ou pela obsolescência do amor líquido, ele é descartado, vendido, negociado, e inicia-se uma nova busca por um parceiro que atenda às necessidades do amor capitalizado e assim, possa contribuir para a competição e com seu posicionamento no mundo neoliberal:

Compromissos do tipo "até que a morte nos separe" se transformam em contratos do tipo "enquanto durar a satisfação", temporais e transitórios por definição, por projeto e por impacto pragmático - e assim passíveis de ruptura unilateral, sempre que um dos parceiros perceba melhores oportunidades e maior valor fora da parceria do que em tentar salvá-la a qualquer - incalculável - custo. (Bauman, 2001, p.170).

Vemos como o homem da masculinidade neoliberal, ao flertar com o conservadorismo e casar-se com a extrema-direita, diviniza o capitalismo e suas manifestações. Isso se evidencia nas ruas e no mundo virtual, como pode ser visto nos vídeos curtos que, a cada rolar de dedo, criam cortes que fragmentam nossa interpretação sobre a vida e amplificam todas as vozes, inclusive autoritárias e misóginas. Umberto Eco [1] já no alertou sobre os perigos dos “idiotas da aldeia”, que antes tinham as suas palavras proferidas após uma taça de vinho e não prejudicavam a coletividade, hoje estão verbalizando as suas bazófias em mesas de podcasts e influenciando uma sociedade que permite que a “legião de imbecis” tenha direito à fala e seja ouvida.

O “idiota da aldeia” tornou-se o cretino dos likes, o vendedor de cursos milagrosos para enriquecer ou curar doenças e os coachs (ou pastores do neoliberalismo) com pregações de adoração ao capitalismo. Nesse emaranhado de sujeitos esvaziados pelo capital, surgem movimentos masculinistas, que não buscam o amor, mas tratam as relações como ativos financeiros, convertendo a mulher em produto e em fonte de performance deste homem eclipsado pelo mercado e subjetivado pelo neoliberalismo. As manifestações do que chamo de masculinidade neoliberal, pode ser exemplificada pelos red pill.

O red pill pode ser definido como uma comunidade masculina que propaga as suas ideias misóginas, maioritariamente de forma online. Defendem narrativas sobre as questões de género, relacionamentos e dinâmicas de poder entre homens e mulheres. O seu nome deriva do filme Matrix: ao tomar a pílula vermelha, os homens tomariam consciência de sua exploração, da sua submissão frente às mulheres e enfrentariam o mundo como machos viris e prósperos, rebelando-se contra a dominação feminina. Acreditam que nossa sociedade está enfraquecida por normas que desfavorecem os homens, sobretudo nas esferas afetiva, legal e familiar. Os seus discursos salientam a necessidade de que os homens sejam fortes, donos de si, fomentando o surgimento de estratégias de desenvolvimento pessoal, muitas vezes capitalizadas e comercializadas em cursos. Rejeitam o que chamam de “ginecocracia” ou “feminização cultural”.

Na visão red pill, o homem Alfa, seria o dominante, com alto valor[2] devido ao seu sucesso, principalmente financeiro e assim, sexualmente atrativo para as mulheres. Já os Betas, seriam os homens que possuem baixo valor por serem vistos como vassalos das mulheres, portanto, a antítese dos Alfas. As mulheres adjetivadas como red flags, são apontadas como problemáticas, geralmente por possuírem filhos de outros relacionamentos, ou pela sua idade, profissão, visão de mundo e posicionamento político, sendo assim, devem ser evitadas.

Os red pill são um sintoma das transformações nas relações de género que vem ocorrendo na nossa sociedade, evidenciando as tensões e resistências diante das mudanças nos papéis tradicionais e no equilíbrio de poder entre homens e mulheres, uma clara expressão da crise da masculinidade e do patriarcado.

Embora preguem um discurso de aprimoramento pessoal, frequentemente com pitadas de autoajuda de aeroporto, os red pill adotam visões reducionistas e androcêntricas, inserindo-se no que se convencionou chamar de machosfera: um ecossistema online que inclui grupos como os Men Going Their Own Way (MGTOW), pickup artists (PUAs), ativistas dos direitos dos homens (MRAs) e incels (involuntariamente celibatários)[3].

Para esses grupos masculinistas, o feminismo teria extrapolado a função de promover a igualdade, fortalecendo os desequilíbrios sociais que prejudicam os homens e combatem qualquer forma de empoderamento feminino, posicionando-se como resistência. Os homens que seguem a “filosofia red pill”, travestido com os discursos de liberdade, odeiam as mulheres, mas não querem a sua eliminação, na verdade procuram a sua submissão e a mercantilização dos seus corpos. O homem não deve apenas ter sucesso, mas exibi-lo, ostentando os acessórios consagrados pelo capital como símbolos de prosperidade.

A mulher passa a ser mais um produto de consumo, assim como os carros, os relógios e os posts no Instagram. Para a masculinidade neoliberal dos red pill, ela (a mulher) torna-se uma insígnia fálica e o amor, um mero detalhe. Os relacionamentos e os sentimentos passam a ser vistos como ativos financeiros, o que importa são os retornos do investimento - económico - feito no outro. O amor está na mesa de negociações e, quem sabe, em breve, nas bolsas de valores, já que a sua privatização se expressa em termos económicos, como o Valor Sexual de Mercado (VSM).

O conceito de VSM e as bases da denominada “filosofia red pill” aparecem nos escritos virtuais de Rollo Tomassi[4] e posteriormente nos seus livros. O autor sustenta que o valor do mercado sexual flutua entre os sexos (termo usado por ele) e enfatiza que a sua intenção é de educar os homens sobre as suas potencialidades e apontar os equívocos dos relacionamentos e os perigos das mulheres. A sua visão está profundamente imersa na lógica neoliberal e na consequente quantificação da vida e dos afetos.

Grosso modo, o VSM é uma forma de mensurar o valor de homens e mulheres, assim, o pico do VSM feminino ocorre por volta dos 23 anos, enquanto o masculino atinge o ápice aos 38 anos. Mulheres que escolhem parceiros de curto prazo priorizam atributos visuais e sedutores; já ao buscar relacionamentos de longo prazo, consideram recursos financeiros e status social como indicadores de suas escolhas. Já os homens, devem estar atentos aos interesses das mulheres e as potencialidades (ou não) que elas podem proporcionar. O VSM se altera conforme a especulação económica que se faz da vida dos indivíduos.

Para os homens, ao buscar uma parceira de curto prazo - como na “tinderização” dos relacionamentos - a beleza e as habilidades de sedução são centrais. Quando um homem busca um relacionamento a longo prazo, quando investe num relacionamento, só a beleza não basta, pois busca uma bela e jovem mulher para ter filhos, que deve parecer integra, imaculada e que possa somar com a exibição de performance social que este homem vislumbra e luta para possuir. A mulher é o seu troféu e deve ser exibido.

A performance torna-se a linguagem do sucesso: um valor subjetivo, critério de validação pessoal, social e emocional. Este homem não apenas trabalha incansavelmente; ele investe em si como capital humano, projetando-se incessantemente, obrigado a exibir resultados, motivação, positividade e superação. Esse sujeito performático internaliza a lógica da empresa, tornando-se gestor do próprio corpo e dos afetos, mercantilizando sua própria vida: “Sob o neoliberalismo, a coerção é internalizada, de modo que os sujeitos se autorreificam sob a égide da lógica da mercadoria” (Safatle et. Al., 2021, p. 49). A visão defendida pela masculinidade neoliberal, nada mais é do que a manifestação de homens fragilizados que se entregam as ideias da Sociedade Mont Pèlerin, tentando autodefinir-se pelo mercado e vencer dentro do jogo de exploração dos meios de produção do capital. Em suma, onde falta amor, sobra o rescaldo neoliberal.


Hugo Dias é Professor de Filosofia, Doutorando em Educação: História, Política,Sociedade na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Mestre em Educação pela  Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


Notas:

1. Disponível em: https://www.observatoriodaimprensa.com.br/jornal-de-debates/o-idiota-da… Acesso: 06 maio de 2025

2. No mundo red pill há muitas definições e adjetivos ligados a linguagem do mercado.

3. Aqui vale um alerta! Os homens, muitos deles jovens e brancos, estão se alistando a estes grupos e se radicalizando no mundo virtual, convertendo-se em soldados do ódio e da perversão. A mulher, a comunidade LGBTQIAPN+, os negros e a escola - local da diversidade e de esperança - são suas principais vítimas.

4. Disponível em: https://therationalmale.com/ Acesso: 06 de maio de 2025

 

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? In:  AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Editora Argos, 2009. p. 25-54.

BAUMAN, Zygmunt. A modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Editora Boitempo, 2016.

GAULEJAC,  Vincent  de.  Gestão  como  doença  social:  ideologia,  poder  gerencialista  e fragmentação social. 2. ed. São Paulo: Ideias & Letras, 2007.

SAFATLE, Vladimir. A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e o neoliberalismo como economia moral, In: SAFATLE, Vladimir; SILVA JÚNIOR, Nelson da; DUNKER, Christian (orgs.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

SAFATLE, V.; FRANCO, F.; CASTRO, J.;MANZI, R.; AFSHAR, Y. O sujeito e a ordem do mercado: gênese teórica do neoliberalismo. In: SAFATLE, V.; SILVA JÚNIOR, N.; DUNKER, (orgs.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.