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Morreu-nos o Michael Burawoy, vítima de um vil atropelamento e fuga, quando caminhava perto de sua casa, nas margens do lago Merritt, em Oakland, nos Estados Unidos da América. Ele, que tanto nos motivava com o seu entusiasmo franco, quase juvenil. Ele, que passava horas no Piolho, em animadas tertúlias com os estudantes, depois de cansativos voos transatlânticos. Ele, a quem tudo interessava: desde saber a nossa opinião sobre questões de política internacional, o estado dos movimentos sociais, as posições do Bloco e da esquerda portuguesa, até discutir autores, teorias, conceitos, juntando política e sociologia, ação e teoria. Ele, que com o seu querido e já falecido amigo, Erik Olin Wright, promoveu uma refrescante reformulação do marxismo sociológico, conectando os múltiplos estudos de caso em que trabalharam com a procura de “utopias reais”, baseadas na máxima: “Where there’s a way, there’s a will”.
No último congresso da Associação Europeia de Sociologia, em agosto, no Porto, proferiu uma conferência brilhante sobre a situação na Palestina, desmascarando a política genocida de Israel, com fortes argumentos históricos e a partir de uma analogia com o apartheid sul africano, identificando semelhanças e diferenças. Como sempre, ninguém lhe ficou indiferente. Apesar da forte ovação dos mais de quatro mil delegados, houve quem o acusasse, já se imaginava, de antissemitismo. Mas Michael não corria o risco da morna indiferença.
De nacionalidade britânica, cedo andou pelo mundo a estudar as relações sociais no capitalismo, tendo-se fixado há várias décadas nos Estados Unidos, onde lecionava na Universidade de Berkeley, Califórnia. No final da década de 1960 fez trabalho sociológico nas minas de cobre da Zâmbia, a partir de uma posição na “Unidade de Investigação do Pessoal” do Serviço de Apoio à Indústria do Cobre. Dessa experiência, e do trabalho de participação-observação dos seus estudantes, nasceu uma análise da manutenção da ordem racial no capitalismo pós-colonial (a Zâmbia tinha conquistado a independência em 1964), nomeadamente através da aparência de uma neutralidade racial na definição “técnica” e “cientificamente racional” das categorias profissionais, das qualificações e dos leques salariais que reproduzia, todavia, a hierarquia racial anterior. O livro que então publicou (em 1972) tinha como título “A cor da classe nas minas de cobre”. Em outros trabalhos posteriores, publicados no início da década de 1980, insistiu na necessidade de compreender o trabalho migrante através da sua função no capitalismo e explorou as configurações raciais da estrutura de classes, a partir da relação entre o despotismo no local de trabalho e o papel do Estado no enquadramento do trabalho migrante. Foi um dos sociólogos que desenvolveu o conceito de “capitalismo racial”, que tem vindo a ser trabalhado com intensidade nos últimos anos pela sociologia crítica do trabalho.
Ficaram mundialmente conhecidas as suas etnografias como operário. Doze meses em Chicago, experiência a partir da qual escreveu, em 1979, um estudo marcante sobre os regimes de produção e a fabricação do consentimento no capitalismo, intitulado “Manufacturing Consent”. Mais do que olhar para as formas de resistência dos trabalhadores relativamente ao ritmo e intensidade impostos pela gestão (tema recorrente na sociologia industrial de orientação gestionária), Burawoy quis investigar a adesão dos trabalhadores ao trabalho explorado, o seu investimento na produção, a partir de uma “organização hegemónica do trabalho” (conceito de evidente inspiração gramsciana). Esta não se estabelecia apenas através de mecanismos de coerção e de força (o medo de perder o emprego, a imposição da disciplina, os incentivos económicos…) característicos de regimes despóticos de gestão, mas também, e sobretudo, através do consentimento, isto é, de um regime de produção assente na construção de hegemonia, designadamente através de uma lógica de “jogo social” que mobilizava a subjetividade e a emoção dos trabalhadores (por exemplo através dos sistemas de quotas de produção) e de relações coletivas de trabalho baseadas numa ideia de “cidadania industrial” (compromisso de classe, negociação sindical, regulação de carreira baseada na antiguidade…). Embora na altura lhe tivesse parecido profundamente instalado, tal regime, diria Burawoy trinta anos depois, fora afinal “um momento efémero na história das relações profissionais” dos EUA.
Em meados de 1980, Burawoy vai trabalhar para o coração industrial da Hungria como operário da siderurgia Lenine, o que lhe permitiu estudar as “políticas da produção” (título de um livro da década de 1980) no bloco soviético, marcadas pelo que designou de “despotismo burocrático”. Naquele país, estudou a combinação entre a “especialização flexível” nas fábricas e a presença opressiva, no local de trabalho, do Estado-Partido. Esta presença, afirmada pela ação combinada da administração-sindicato-partido, punha em evidência a contradição entre a experiência da produção e a ideologia do Estado. Naqueles países, a exploração do trabalho não se ocultava tão eficazmente como no regime capitalista (onde a interferência do estado não era tão direta) e, sendo mais visível, precisava de se legitimar através do discurso. Esse mesmo processo de legitimação gerava uma contradição entre discurso e experiência e, portanto, menor adesão consentida dos trabalhadores, ajudando a explicar movimentos operários de contestação e, mais tarde, a queda daqueles regimes. Os seus trabalhos enquanto etnógrafo-operário continuaram em Moscovo, onde acompanhou, a partir de 1991, a “grande involução” da economia soviética, o violento processo de “desacumulação primitiva”, o desvio de recursos da esfera produtiva, a instalação da ideologia de mercado e de um capitalismo anárquico dominado pela finança e por uma nova classe de oligarcas e mafiosos, processo que lhe pareceu anunciar, em termos polanyianos, uma “terceira vaga de mercantilização mundial”.
A partir destas experiências de observação participante, propôs e sistematizou o método de “estudo de caso alargado”, defendendo a articulação entre escalas micro e macro, a necessidade de atender ao contexto temporal e espacial mais vasto do terreno etnográfico e a legitimidade e necessidade da reconstrução teórica a partir dos estudos de caso. Essa proposta tem sido adotada desde então por inúmeros estudos sociológicos, também em Portugal.
Burawoy aplicou, já no século XXI, a sua grelha de análise da mercantilização e dos contra-movimentos à Universidade. Promoveu um debate internacional sobre a “sociologia pública”. E nunca se cansou de “reconstruir o cânone” sociológico, encarando-o como relacional e dinâmico. Se cruzava com imenso prazer Marx, Durkheim e Weber, só para referir os três barbudos considerados fundadores da disciplina, convidava-nos a incluir o negro W. E. B. Du Bois e a sua monumental obra dedicada à análise do racismo. Empenhou-se no seu reconhecimento com um dos fundadores da sociologia, pela centralidade da raça nas suas análises, pela visão histórica, mas também pela articulação, na sua obra, das várias formas de sociologia - profissional, crítica, formuladora de políticas e pública.
Cedo defendeu dois movimentos essenciais: i) da sociologia profissional à “sociologia pública”, acessível e compreensível a públicos extra-académicos, capazes de se envolverem na discussão, vivendo a teoria de uma forma que transcendia a velha oposição entre ciência e vida ou ciência e política; ii) da sociologia que formula políticas à sociologia crítica, que discute o senso comum, o preconceito e as ideias feitas.
Burawoy é um sociólogo global, um académico rigoroso e criativo, um reconstrutor do marxismo, um ser humano imensamente generoso, que nos tocou e cujo legado nos responsabiliza.