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Um Mandato para a Liderança de Esquerda nos EUA

Uma das lições a tirar da revolução neoliberal dos anos 1970 é que o estudo e preparação de alternativas políticas e económicas é essencial no momento da chegada ao poder. Artigo de Kate Aronoff, em The Nation.
Ação de protesto à entrada do gabinete de Nancy Pelosi após as eleições intercalares de novembro de 2018. Foto Sunrise Movement.

Nos seus primeiros dias no Capitólio, a deputada Alexandria Ocasio-Cortez visitou o gabinete da líder da minoria democrata da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi. Isso por si só não tem nada de extraordinário, essas visitas acontecem com naturalidade. A diferença foi que a deputada de 29 anos estava ladeada por quase 200 outros jovens, alguns acabados de sair do secundário, 51 dos quais acabaram por ser detidos e levados à força pela polícia. Ocasio-Cortez chegou à manifestação de 13 de novembro com membros do Sunrise Movement, um grupo de ação climática liderado por jovens, e os Justice Democrats, uma organização que apoiou a sua candidatura (tal como as de outros progressistas insurgentes) nas eleições intercalares. Fizeram um apelo conjunto à criação de uma iniciativa mais arrebatadora do que qualquer outra proposta do Partido Democrata no passado recente: um “New Deal Verde”.

“Se Nancy Pelosi for a próxima presidente da Câmara de Representantes, ela tem de saber que estamos com ela para conseguir a agenda energética mais progressista que este país alguma vez viu”, disse Ocasio-Cortez aos que a rodeavam. Alguns vestiam t-shirts estampadas com o número 12 — os anos que restam ao mundo para evitar o aquecimento catastrófico.

Com esse número na cabeça, o staff de Ocasio-Cortez fez circular nesse dia uma proposta para a designação de um comité na Câmara dos Representantes para “desenvolver um plano detalhado de mobilização nacional, industrial e económica para a transição da economia dos Estados Unidos”. Ponto-chave desse plano: o desmame do país em relação aos combustíveis fósseis na próxima década. No momento em que escrevo, outros 18 deputados, entre recém-eleitos e reeleitos, já assinaram.

O New Deal Verde encarna aquela atitude de pensar em grande que os líderes partidários têm escamoteado ao longo das últimas décadas, durante as quais os liberais em Washington optaram por ajustes de políticas incrementais e compromissos seja com os Republicanos ou com as grandes empresas. Episódios como o que aconteceu no gabinete de Pelosi são uma amostra do que será ter socialistas democratas no poder: uma rotura inspiradora com os negócios e a política do costume, tanto na forma como no conteúdo.

Os socialistas democráticos e progressistas  de hoje enfrentam um desafio bem maior do que apenas fazer aprovar boas leis. Também precisam de desbastar o consenso neoliberal que a direita passou os últimos 40 anos a cimentar, e de redefinir o que faz sentido em termos económicos — a tempo de salvar o planeta de arder.

Para além do mediatismo dos protestos e slogans, as plataformas de políticos como Ocasio Cortez e Rashida Tlaib — ambas membros dos Democratic Socialists of America (DSA) — começaram a traçar uma nova e arrojada agenda política. Para além do New Deal Verde, apoiaram os apelos pelo Medicare para Todos, a abolição da ICE, a agência federal encarregue de aplicar as leis de imigração,  o fim das fianças pagas em dinheiro, garantir um emprego federal para todos os que se candidatem, aumentar o salário mínimo federal para os 15 dólares/hora e recusar aceitar dinheiro dos comités empresariais de recolha de fundos. Muitos destes candidatos cumpriram este último ponto quando se candidataram aos cargos; mas para já o resto é em boa parte uma lista de desejos — embora ambiciosos e radicalmente igualitários.

Dito isto, os socialistas democráticos e progressistas  de hoje enfrentam um desafio bem maior do que apenas fazer aprovar boas leis. Também precisam de desbastar o consenso neoliberal que a direita passou os últimos 40 anos a cimentar, e de redefinir o que faz sentido em termos económicos — a tempo de salvar o planeta de arder.

As novas chegadas de progressistas a Washington podem não ter muita experiência legislativa, mas os ventos políticos parecem soprar na sua direção. As consequências económicas da Grande Recessão e a ameaça iminente das alterações climáticas mostraram bem como os dogmas bipartidários do livre mercado estão terrivelmente preparados para lidar com as crises que hoje enfrentamos.  As sondagens corroboram esta ideia: em boa medida graças aos seus apelos à condenação da desigualdade económica e dos 1% por parte do Occupy Wall Street, o socialista democrático Bernie Sanders continua a ser o político mais popular do país. Enquanto isso, a maioria dos millenials — que daqui a poucos anos formarão o maior bloco de eleitores — dizem que preferem o socialismo ao capitalismo. E os candidatos mais apontados para as presidenciais de 2020 competem agora entre si para tornar conhecida a sua boa-fé progressista. Até o Senador Cory Brooker, considerado um liberal mainstream, ficou com os louros por propor uma política de garantia de emprego — uma entrada recente na lista de desejos das novas políticas da esquerda e que goza de um apoio maioritário em todos os 50 estados (ao mesmo tempo que o serviço de saúde universal, na forma do Medicare para Todos, é apoiado até pela maioria dos Republicanos). A esquerda, para resumir, voltou em grande estilo e as suas ideias são mais populares agora do que no passado recente.

Apesar disso, é díficil não nos sentirmos um pouco desarmados. Uma coisa é fazer aprovar medidas discretas para melhor a vida dos norte-americanos comuns; outra é mudar o consenso económico e político que os dogmáticos do livre-mercado no centro-direita e centro-esquerda foram construindo desde antes destes recém-chegados insurgentes terem sequer nascido — juntamente com uma infraestrutura política e intelectual desenhada para durar para além das nossas vidas.

O pequeno grupo de apoiantes que se tornaram pioneiros da revolução neoliberal após a crise do petróleo e a inflação dos anos 1970 não andavam a  promover cortes nos impostos sobre as empresas nem revogações das proteções laborais pelos seus méritos próprios; eles promoviam a liberdade e um governo pequeno e responsável, conseguido através dos mercados e da orientação sábia dos líderes empresariais norte-americanos. A sua ideologia colocava os lucros à frente das pessoas e os mercados à frente da democracia, embora pelo menos nos EUA nunca o tivessem apresentado assim publicamente. Para espalhar a palavra, ergueram institutos como a Heritage Foundation e o American Enterprise Institute (AEI); cultivaram talentos promissores para altos cargos, incluindo Barry Goldwater e Ronald Reagan; escreveram e publicaram livris; e fundaram revistas e programas de rádio, como National Review e The Manion Forum, direcionados para espalhar a doutrina do livre mercado.

Enquanto Reagan se instalava na Sala Oval em 1980, entregou a cada membro do seu gabinete uma cópia do documento de 1.100 páginas da Heritage Foundation que continha o detalhe de cerca de 2.000 medidas prioritárias para os conservadores. O documento, que foi depois publicado em partes, intituladas Mandato para a Liderança, serviu de pilar à liderança da direita; só no primeiro ano, Reagan levou a cabo quase dois terços daquelas propostas.

Para além de um pequeno exército de apoiantes endinheirados (algo que ainda hoje falta à esquerda — em boa parte pela sua conceção), o que permitiu à direita tornar-se dominante na segunda metade do século XX foi a sua capacidade para contar uma história cativante sobre como a economia devia funcionar e para quem devia funcionar — e depois repetir e ajustar essa narrativa ad nauseam a quem o quisesse ouvir durante boa parte desse meio século. Como apontou William Baroody Sr., um ativista conservador que tornou a AEI numa força a ter em conta: “Isto não é uma operação milagrosa que se faz de um dia para o outro… Leva tempo, recursos financeiros, e o trabalho de cérebros bem potentes”.

Isso demorou décadas — mas o trabalho duro compensou. Enquanto Reagan se instalava na Sala Oval em 1980, entregou a cada membro do seu gabinete uma cópia do documento de 1.100 páginas da Heritage Foundation que continha o detalhe de cerca de 2.000 medidas prioritárias para os conservadores. O documento, que foi depois publicado em partes, intituladas Mandato para a Liderança, serviu de pilar à liderança da direita; só no primeiro ano, Reagan levou a cabo quase dois terços daquelas propostas.

Descrito pela United Press International como “um modelo para agarrar o governo pelos seus colarinhos desgastados do New Deal e sacudir 48 anos de política liberal”, a presença do Mandato na Casa Branca foi o culminar de décadas de trabalho por parte de uma rede de académicos e ativistas da direita que pretendiam desmantelar o consenso Keynesiano de que podia ser bom haver um governo grande, na forma de um New Deal ou de um Plano Marshall — e fornecer uma alternativa pronta a servir.

Hoje em dia, as instituições que os defensores do livre-mercado construíram nos anos 1970 e 80 ainda são gigantes ao pé das alternativas ao dispor dos progressistas. Os maiores think tanks conservadores gozam de orçamentos sumptuosos, com os maiores a arrecadarem dezenas de milhões de dólares anuais a mais que os seus homólogos progressistas. (Compare-se a Heritage Foundation, que recolheu 82 milhões em 2016, ao Center for American Progress, que arrecadou cerca de 25 milhões no mesmo ano.) As organizações do livre-mercado despejam folhas informativas e minutas de legislação para os recém chegados deputados estaduais, e recrutam jovens universitários para programas de liderança que resultam em posições influentes na academia e no governo. Um estudo lançado no verão passado concluiu que quase metade dos atuais juízes federais participaram num campo de treino sobre economia de duas semanas financiado pelos irmãos Koch — e a sua presença teve um efeito mensurável nas decisões que vieram depois a tomar.

É por isso que um objetivo crucial da esquerda insurgente deve ser mudar os termos do debate nacional. Atualmente, grupos como o Sunrise Movement e o DSA apoiam candidatos com base no seu compromisso com uma série de objetivos, mas não têm internamente oficinas de formação política que surjam com grandes ideias novas ou a investigação que lhes possa servir de suporte. As organizações existentes como o Economic Policy Institute e o Center for Economic and Policy Research produzem investigação valiosa e algumas propostas úteis, a par de uma pequena rede de economistas heterodoxos dispersos em instituições nos EUA e no estrangeiro — mas não estão orientadas em fazer a mudança ou em fazer balançar a opinião pública da estrita (e talvez mercenária) forma como fez a direita nos tempos de Reagan. Muitas das instituições mais conhecidas e melhor financiadas, como o Center for American Progress, também pendem mais para o centro do que para a esquerda — e por isso podem não ser grande ajuda para os socialistas democráticos perceberem como podem governar.

Há uma mão cheia de think tanks de esquerda desconexos, como o Data for Progress e o People’s Policy Project, que começam a molhar a ponta dos pés nas águas dos mecanismos de decisão política, ao publicarem longos relatórios sobre propostas como o New Deal Verde e os projetos de habitação pública em grande escala. Algumas das pessoas que ajudaram a criar o Justice Democrats criaram a sua própria oficina de estudos, New Consensus, embora em comparação permaneça para já  muito despojada. Mas esta é uma área onde vale a pena investir bastante: com o aumento da popularidade da esquerda — e muitas pessoas interessadas em seguir nessa direção — não é impossível imaginar uma agenda socialista democrática capaz de enfrentar as atuais crises da mesma forma que Reagan conseguiu enfrentar as dos anos 1970.

Fundamentalmente, não foi só uma batalha de ideias que deu gás à revolução neoliberal. O ascenso da direita também se seguiu à sua ação concertada para enfraquecer os sindicatos e mudar a relação de forças do poder de classe nos Estados Unidos. “A ameaça mais profunda à organização dos trabalhadores foi muito para além dos dólares e cêntimos”, escreve Kim Phillips-Fein em Invisible Hands, a sua história dos ataques das grandes empresas aos sindicatos desde o New Deal até à eleição de Reagan. “Se os trabalhadores acreditassem que deviam as suas conquistas ao tempo que passaram no piquete, que razão teriam para respeitar a autoridade do patrão?”.

Na perspetiva de progressistas e mesmo socialistas ganharem o controlo do governo federal, a esquerda precisa do seu próprio Mandato para a Liderança para desfiar 40 anos de política neoliberal. O New Deal Verde é um começo. Ainda assim, criar uma coisa dessa dimensão vai significar investir não apenas na eleição de progressistas, mas em ajudá-los a governar quando chegarem aos gabinetes.

É esse facto que torna governar à esquerda nesse contexto — com um movimento laboral dizimado e inimigos que têm recursos virtualmente ilimitados ao seu dispor — tão desafiante como a própria eleição. O poder judicial norte-americano, por exemplo, tem um prazo de validade longo, por isso os progressistas não têm um banco de nomeados prontamente fornecidos aos Republicanos por grupos como a Federalist Society ou a AEI. (Por oposição às redes pessoaos sombrias da direita, a equipa de Ocasio-Cortez publicou anúncios de emprego para cargos em Washington e no seu círculo num Google Doc.) E graças ao sucesso de economistas como Milton Friedman e Friedrich Hayek em espalharem o seu evangelho, a disciplina de economia tornou-se uma câmara de eco para as ideias neoclássicas ortodoxas, com apenas uma pequena minoria de departamentos a ensinarem teorias alternativas.

Na perspetiva de progressistas e mesmo socialistas ganharem o controlo do governo federal, a esquerda precisa do seu próprio Mandato para a Liderança para desfiar 40 anos de política neoliberal. O New Deal Verde é um começo. Ainda assim, criar uma coisa dessa dimensão vai significar investir não apenas na eleição de progressistas, mas em ajudá-los a governar quando chegarem aos gabinetes. Isso significa inventar formas inteligentes de encontrar candidatos talentosos, alargar a lista de assessores, especialistas e juízes capazes de articular e concretizar uma visão para uma sociedade radicalmente igualitária. Hoje, o socialismo democrático representa menos um compromisso ideológico robusto do que uma forma exata para descrever um conjunto de prioridades políticas: nomeadamente, que o governo tem a responsabilidade básica de fornecer os meios para uma vida boa e um planeta habitável. Quando a Vogue perguntou a Ocasio-Cortez, logo após a vitória nas primárias, porque se juntou ao socialismo democrático, ela respondeu que “Não existe outra força, não existe outro partido, não existe outra verdadeira ideologia por aí neste momento que afirme os elementos mínimos necessários para levar a uma vida digna na América”.

Mesmo assim, a visão do socialismo democrático que é promovida por estes candidatos insurgentes e mais do que apenas um New Deal ressuscitado. Por um lado, eles não vão buscar esse tempo do New Deal original enquanto a idade da inocência da América — tendo em conta que os milhões de desprovidos de direitos por Jim Crow eram também excluídos desses programas. Ao tirarem as lições dessas reformas, eles começar a articular uma visão que é mais aspiracional que nostálgica, e que olha diretamente para um futuro marcado pelo aumento do nível das marés e das temperaturas. De facto, eliminar o uso dos combustíveis fósseis no período exigido tanto pelo New Deal Verde de Ocasio-Cortez como pelo consenso científico sobre as alterações climáticas requer aquilo que o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas da ONU chama de “mudanças sem precedentes em todos os aspetos da sociedade”.

“Têm de promover a esperança e a possibilidade”, diz Corbyn Trent, um assessor da campanha de Ocasio-Cortez e co-fundador de Justice Democrats. “Todas as coisas maravilhosas que conseguimos enquanto espécie pareciam completamente doidas antes de acontecerem. Temos de as conseguir promover”.

A esse respeito, um socialismo democrático norte-americano para 2018 não irá seguramente assemelhar-se às políticas da União Soviética — tanto quanto a democracia norte-americana se parece com a da antiga Atenas. Nem nenhum socialismo democrático do século XXI pode ser conduzido pelo género de desenvolvimento industrial intensivo em carbono que esteve no centro tanto das experiências de socialismo de estado do passado ou as do próprio New Deal. “O New Deal Verde que os Democratas como Ocasio-Cortez defendem é o futuro do Partido Democrático”, afirma Sean McElwee, o co-fundador de Data for Progress. “As próximas gerações sabem que estão a ser lixadas pelo atual sistema político e exigem uma ação agressiva sobre as alterações climáticas. Chegou a altura de os progressistas abrirem guerra às empresas poluidoras.”

Finalmente, para a maioria dos norte-americanos, o socialismo democrático será definido por aquilo que os seus apoiantes mais reconhecidos — pessoas como Sanders, Tlaib e Ocasio-Cortez — conseguirem alcançar quando tiverem a sua oportunidade. Pelo menos a curto prazo, tornarem as suas propostas ambiciosas em leis significará abrir a janela de Overton dos debates políticos para conterem o que pode lá fora parecer reivindicações social-democratas básicas, como tirar o sistema de saúde do mercado privado e torná-lo num direito, ou gastar muita despesa pública para enfrentar as ameaças existenciais como as alterações climáticas. Significará também melhorar a capacidade de recrutar e formar candidatos e especialistas, assegurando que os recém-eleitos esquerdistas têm assessorias qualificadas para contratar e legislação para apresentar a qualquer nível de governo.

A paciência também conta — mas só até certa parte. Na maior parte do tempo das suas carreiras, William Baroody e os seus companheiros definhavam na relativa obscuridade à margem da definição de políticas. Quando apenas faltam 12 anos para impedir uma catástrofe climática, o tempo é um luxo que os progressistas simplesmente não têm.


Kate Aronoff é colaboradora do portal The Intercept e jornalista independente que escreve sobre clima e política norte-americana. Artigo publicado em The Nation. Tradução de Luís Branco para o esquerda.net.

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