A partir do texto “O comentário único”, de Álvaro Arranja, publicado no Esquerda.Net apresento algumas considerações sobre o seu conteúdo e aproveito para dissertar sobre as razões do meu descontentamento relativamente ao rumo que, de 2009 em diante, uns quantos dirigentes escolheram para o BE (a nível nacional e local).
Passo, então, a expor o meu contributo para a reflexão que, no rescaldo das eleições legislativas de 2011, agora se inicia.
Entre a mentira que se repete e a verdade que se esconde
Reduzir a vastíssima panóplia de comentários que se têm vindo a fazer sobre a actuação do BE nos últimos tempos (do inusitado caso Sá Fernandes, passando pelo fiasco das presidenciais, à questionável oportunidade da moção de censura, à recusa em reunir com a troika – FMI, UE, BCE, à derrota nas legislativas, aos episódios com Daniel Oliveira e Rui Tavares, etc.) a um padrão único de chantagem organizada pela direita é, na minha opinião, fazer uma leitura surreal dos acontecimentos.
Enquanto opinião individual não terá grande importância, mas se aquela for a expressão do pensamento de um colectivo, podemos estar perante o reflexo condicionado de um partido que se recusa a perceber que errou (embora publicamente diga o contrário) e prefere desvalorizar as críticas de que é alvo para escapar à reflexão sobre as causas efectivas que levaram ao afastamento de cerca de 50% do seu eleitorado no curto espaço de dois anos.
Assim, transformar o BE em vítima e apostar na tese da cabala, orquestrada por escusos desígnios de comentadores a soldo do capital, metendo no mesmo saco os vários tipos de críticas, é o caminho mais fácil para evitar a tão necessária reflexão interna, inquinando à partida os pressupostos de análise.
De facto, repetir insistentemente que os fundamentos para a estrondosa derrota do BE nas legislativas de 2011 são os outros, e que o problema tem, exclusivamente, uma origem externa, é mera sobranceria política.
Adoptar uma postura tipo: «fizemos tudo bem, estamos no caminho certo, os outros é que são uns “vendidos”», cerrando fileiras em torno dos responsáveis pelas opções que levaram à situação actual, como se não tivessem sido cometidos vários, e graves, erros de estratégia política, consequência directa de uma organização cada vez mais centralizadora – onde a decisão está numa “cúpula pensante” cabendo às bases o papel de obedientes e ordeiros(as) tarefeiros(as) da logística eleitoral – é, simplesmente, menosprezar a capacidade de cada um de nós (aderentes e simpatizantes) percepcionar o que se está a passar no BE e um forte indício de que o suposto diálogo que possa haver não vai conseguir influenciar aquela que já foi considerada pela “elite política” como “a Verdade”.
O que “eles” gostavam ou aquilo em que transformaram o BE
Procurar justificar o comportamento crítico dos outros (dando a entender serem meras opiniões subalternas de interesses capitalistas) em oposição à ousadia do BE em começar a tratar de assuntos como a fraude e a evasão fiscal, o desemprego ou o trabalho precário, é desconhecer que esses temas sempre estiveram na agenda do BE desde a sua fundação… e se antes eram aglutinadores de uma crescente base social de apoio, não podem ter sido eles, agora, de per si, sem influência alheia (neste caso, o tempo e o modo como terão sido tratados pelos dirigentes bloquistas nos vários patamares de decisão/intervenção), o motivo para o afastamento dessas mesmas pessoas.
Indicar como fundamento para as críticas de que o BE tem sido alvo, a intervenção nas lutas sindicais e a participação nas greves gerais, assim como a aproximação à CGTP (como se todos os que criticam o BE fossem uns perigosos neoliberais, anti-sociais e exploradores do povo trabalhador), é uma presunção que, mesmo tendo sido feita com alguma ironia, não deixa de me escandalizar.
Porquê?
Porque representa o olhar sectário de uma certa corrente dominante no BE que se julga moralmente superior e que demonstra uma incapacidade latente para analisar a realidade, sem dogmatismos, de forma séria e imparcial.
Porque representa, ainda, a lamentável visão de quem não consegue ter o discernimento suficiente para verificar que o problema é, antes de mais, uma crise identitária entre aquilo que é a essência do pensamento político de cada uma das tendências internas e o inevitável choque ideológico na luta pelo domínio daquela que deverá ser a missão de um partido/movimento com as características do Bloco de Esquerda, muito mais abrangente composto, sobretudo, por pessoas sem qualquer filiação ou simpatia partidária anterior, cuja importância em números absolutos é maioritária mas que não consegue representatividade equivalente nas estruturas de decisão política (ou tem-na desproporcional em relação ao seu peso efectivo) por ausência de organização administrativa de suporte, enquanto os outros grupos (como a UDP ou o PSR, por exemplo) trazem consigo o peso de um aparelho logístico próprio, a experiência de lutas anteriores e, principalmente, uma legião de seguidores que lhes garanta a manutenção do poder a nível interno.
E porque representa, também, a postura intolerante daqueles que não admitem ser avaliados por ninguém, muito menos por quem não foi/é parceiro(a) da mesma “escola política”, o que os impede de ver a contradição que existe (e que é pública e notória) entre aquilo que o BE diz defender em termos estatutários e programáticos e a consecução prática desses princípios levada a cabo por alguns dos seus dirigentes, nomeadamente os líderes locais e, em particular, os seus autarcas.
A incoerência paga-se caro, sobretudo quando não se explica aos eleitores as razões por detrás da assunção de certas posições. E, aos poucos, mais preocupados com uma agenda nacional (decidida centralmente por questões de mediatismo político), foi-se descurando a imagem do BE nos municípios e freguesias, sem pensar que a base geográfica do voto é, também, o nível autárquico e, em consequência, o papel dos autarcas é fundamental na solidificação de uma base social de apoio. Escamotear este facto é insistir numa interpretação distorcida da realidade mas, até ao momento, este tem sido um assunto tabu em virtude de, neste patamar de envolvência política de proximidade, as acções terem um rosto e todas as críticas acabarem por ser entendidas como ataques de carácter pessoal e potenciarem desentendimentos conflituosos entre os intervenientes.
A título de exemplo:
Como se pode levantar a bandeira da JUSTIÇA (fiscal, social e laboral), dizer que a luta contra a corrupção é uma prioridade, afirmar que se é intransigentemente contra todas as formas de discriminação, e apoiar autarquias condenadas em tribunal por despedir trabalhadores de forma ilícita, por actuarem de má fé nas relações com os munícipes, por praticarem actos que configuram crimes de enriquecimento sem causa, por se recusarem a cumprir o direito constitucional de acesso à informação?
Como é possível dizer que se apoiam os trabalhadores, que se defende a liberdade sindical mas, depois, escolher estar ao lado de políticos que nas suas autarquias promovem o lock-out (proibido constitucionalmente) e dão o aval expresso a dirigentes que praticam abomináveis actos de mobbing sobre os seus subordinados?
Observando o que se passa na Câmara Municipal de Almada e qual tem sido o comportamento dos autarcas do BE nos respectivos órgãos autárquicos (de uma conveniente indiferença ou de um silêncio conivente, quando não de apoio expresso e subserviente, perante as ilegalidades que vão sendo detectadas, provadas e publicamente conhecidas), ficamos na dúvida: e se a autarquia fosse gerida, não pela CDU mas pelo PS ou pelo PSD? Manteriam a mesma postura?
Apela-se à JUSTIÇA! Mas usam-se “dois pesos e duas medidas” para a aplicar, consoante a filiação partidária do infractor: se é CDU/PCP, fecha-se os olhos às más práticas de gestão apenas para não dar “armas à direita” (PS incluído) para esta “tomar conta” do poder autárquico. Mas a nível nacional, denunciam-se todos os cambalachos cometidos pelo PS, PSD ou CDS, pretendendo convencer os eleitores de que a alternativa é um “governo de esquerda”. Perante esta dualidade de critérios, de que esquerda estamos a falar? Da esquerda dos valores ou da esquerda sectária? Como querem pedir confiança às pessoas se, no dia-a-dia, elas vão observando estas incoerências? Como pretendem que os eleitores acreditem na fiabilidade das promessas feitas de quem age desta forma?
Portanto, enquanto o BE se recusar a analisar estas questões, jamais recuperará a credibilidade perdida junto do seu eleitorado.
As vergastadas nos dirigentes versus a miopia política do BE
Apresentar os líderes nacionais do BE como mártires que sofrem as chicotadas desses malvados que empunham o “comentário único” como arma de agressão, chega quase a ser risível. Como se fossem apenas os motivos evocados o objecto das muitas críticas que os fundadores do BE têm sofrido e os críticos não passassem de verdugos da verdade, esgrimindo falsidades perante o incómodo que representa a clarividência dos visados.
Uma sentença desta natureza, que teima em não ver que a democracia interna tem vindo a decrescer e a liberdade de expressão começa a ser demasiado incómoda, é a assinatura do compromisso que levará o partido de volta ao radicalismo de esquerda do passado [do qual a maioria dos(as) portugueses(as) ficaram fartos] e que, por ter sido considerado um caminho sem futuro, levou à fundação do BE. É pois incompreensível este reacender das velhas teorias políticas que estão a transformar o BE num mero partido “amplificador de protestos” (coisa que, sinceramente, o PCP faz muito melhor).
Bom comportamento? Quiçá, antes, cumprir o prometido…
Afinal o que é que se pretende que seja o Bloco de Esquerda?
Em primeiro lugar: gostaria que o BE não se transformasse numa frente popular encapotada da UDP (como parece estar a acontecer em Almada) e onde só aos militantes desta cabe discutir estratégia política. Por isso, considero que, nos plenários concelhios, nas assembleias distritais, na Mesa Nacional e nos debates que se começaram a realizar por todo o país, nos órgãos internos onde estão inseridos, nas Convenções Nacionais, etc. os membros desta tendência (e o mesmo se aplica a todas as outras) deveriam ter a coragem de dizer, doravante, de forma transparente, quem são e o que pretendem. Ao agir como uma “sociedade secreta” só acabam por causar desconfiança.
A UDP (e o PSR, a Fórum Manifesto, a Ruptura/FER) tem toda a legitimidade para defender a sua ideologia, e tentar ganhar adeptos, mas apenas se o fizer de forma clara e deixar de manobrar na sombra, evitando tratar os aderentes do BE que não pertencem a nenhum grupo organizado, como politicamente incapazes. Sujeitar ao escrutínio dos aderentes as suas propostas, claramente identificadas, é também imprescindível para que ninguém se sinta enganado(a). Se as mesmas vencerem por maioria, só temos de aceitar, internamente, as regras da democracia.
Por fim, a sinceridade para com os eleitores é um ponto curial. A ética na actuação política deve evitar que se continuem a mascarar propósitos (como tem acontecido até aqui), escondendo o radicalismo de esquerda debaixo da capa da tolerância e maior abrangência do BE, mas fazendo-o ressurgir depois de ganhos os votos dos incautos.
Em segundo lugar: gostaria que o BE continuasse a ser aquilo que consta do seu Manifesto fundador “Começar de Novo”: um partido/movimento que pretende ser uma esquerda diferente, aberta ao diálogo político e cultural à esquerda, sem os vícios preconceituosos do passado, plural, combativa e influente, para cujos aderentes a política só faz sentido se exercida com ética e imparcialidade, capaz de ser portadora de propostas fortes e de se assumir como sinal de esperança e fazer parte de um projecto civilizacional moderno, com capacidade para reunir em si o que de melhor os diferentes activismos existentes na sociedade têm para nos oferecer.
Espero, sinceramente, que o desafio lançado em 1999 e mantido durante dez anos, seja ainda passível de recuperar após os desaires dos últimos dois anos. Por isso, aqui fica transcrita aquela que foi a conclusão final daquele documento, tido como o compromisso principal dos signatários, para avivar memórias, incentivar à reflexão e mostrar que a esperança não é palavra vã:
«O Bloco de Esquerda quer eleger representantes que levem aos parlamentos [europeu, nacional, regional, municipal e de freguesia] as suas propostas e discutirá com todos a sua viabilização, do mesmo modo que apoiará todas as medidas que considere poderem melhorar a vida de quem vive e trabalha em Portugal. O Bloco será uma força interessada no diálogo e em entendimentos pontuais ou mais permanentes na esquerda do espectro político português, assumindo os antagonismos que existem no Mundo e em Portugal como condição da clareza de propósitos e de inovação no campo das propostas. O Bloco assume as grandes tradições da luta popular no país e aprende com outras experiências e desafios; renova a herança do socialismo e inclui as contribuições convergentes de diversos cidadãos, forças e movimentos que ao longo dos anos se comprometeram com a busca de alternativas ao capitalismo.
É daqui que queremos partir para a construção de uma esquerda popular, plural, combativa e influente, que seja capaz de reconstruir a esperança.»
Termino desejando que, num partido plural que preza a democracia e a liberdade de expressão, estas minhas palavras mereçam o respeito que é devido a todos os que, de forma civilizada, expõem as suas opiniões. E, ao contrário do que tem acontecido no FACEBOOK, não venha a ser classificada pelos camaradas como hipócrita, traidora, cobarde, fascista, pide, alguém merecedora de menos consideração do que as prostitutas e cuja máscara já há muito caiu. Reacções deste tipo não só ficam mal a quem as profere como desprestigiam o Bloco de Esquerda.
Ermelinda Toscano (aderente n.º 540)*
* Em Outubro de 2009 fui eleita para a Assembleia Municipal de Almada e para a Assembleia de Freguesia de Cacilhas (onde já tinha estado no mandato de 2005-2009) mas, em Agosto de 2010, renunciei a ambos os cargos devido a divergências políticas e pessoais com os dirigentes do BE local. Mas, principalmente, por considerar que a disciplina partidária não se pode sobrepor à dignidade pessoal.
Entretanto, para dar continuidade ao trabalho autárquico que vinha desenvolvendo, em conjunto com um grupo de amigos(as), criámos uma plataforma de cidadania, constituída por pessoas de todas as sensibilidades políticas/partidárias, e em poucos meses já desenvolvemos uma séria de actividades com resultados bem visíveis, até na comunicação social.