Este texto pretende começar a abordar estas questões, e lançar algumas pistas para a discussão no NESIC1. Estes temas do trabalho constituem apenas uma das possíveis abordagens à discussão da política científica em Portugal, que necessariamente deverá incluir outros temas, como por exemplo a questão da estrutura institucional do sistema científico português (Institutos versus Universidades, dispersão versus concentração, autonomia versus planeamento, etc...). No entanto, é claro que a questão do trabalho científico é das mais relevantes e, além disso, atual, pois foi aberto recentemente o concurso para investigadores FCT2, tendo os seus objetivos e modalidades sido explicitados em Janeiro3.
Sob muitos indicadores, a evolução da Investigação Científica em Portugal tem registado progressos significativos: a nível da % do PIB dedicada à Investigação, do número de doutoramentos realizados, do número de artigos com arbitragem, etc... No entanto, há um reverso da medalha. O aumento do financiamento na I&D faz-se a par do retrocesso do investimento público por aluno no Ensino Superior. O aumento da produtividade e, em geral do número total de investigadores faz-se através de uma crescente precarização das condições laborais.
A política do novo governo vem tornar essa precariedade permanente, torná-la no status quo. Parece ser aliás essa a única ideia que o governo tem sobre a investigação científica... Diz-se logo no início do texto4: “Selecionados entre os melhores cientistas, estes «Investigadores FCT» representarão a mais alta qualidade da Ciência em Portugal e a certeza de competitividade para financiamentos internacionais.” Nenhuma referência ao papel da investigação na criação de conhecimento e ciência, nem sequer do argumento hoje em dia mais consensual do apoio à inovação e à transferência de tecnologia e ideias para o “tecido produtivo”. Nada disso, os investigadores servem para uma coisa: sacar dinheiro à UE através de projetos com financiamento europeu. Aliás, muita sorte têm de haver um concurso para investigadores, o que deviam era pagar-se a si próprios com os fundos desses projetos... Para além da caricatura, o que este tipo de discurso demonstra é uma total pobreza de ideias. Até na gestão da ciência, as “contas de merceeiro” substituem uma inexistente visão de futuro, um inexistente pensamento de estratégia para o sistema científico Português, desde as ciências sociais e humanas às ciências exatas.
Voltando à questão da precariedade, a contratação de cerca de 1200 investigadores no período de 2007-2009 fez-se em concursos abertos por cada instituição, em regime de contrato de 5 anos. Na altura, nada foi dito sobre o que viria depois, mas o novo governo veio clarificar: “... os «Investigadores FCT» são contratados por períodos de 5 anos e, findo este período, terão de voltar a competir para o lugar que ocupavam. Todos os níveis da carreira de investigação são disponibilizados.”
Ou seja, precariedade “exigente” de 5 em 5 anos até à reforma. Este é o modo, segundo o credo da suposta meritocracia, de reter “os melhores”. Porque é que isto é profundamente errado, porque é que é importante haver uma carreira de investigação?
- A investigação científica exige continuidade no tempo, não só para formar investigadores experientes, como para desenvolver os seus projectos, que quase sempre precisam da confluência de equipas, laboratórios, material,recursos informáticos, etc... Só com investigadores profissionais e uma carreira estável e bem definida é possível criar estas condições. A ideologia do “fim do emprego”, apregoada em todas as áreas, não faz sentido também na investigação. É evidente que os tais “melhores” que o governo diz querer atrair, se tiverem alternativas, não vão querer concorrer de 5 em 5 anos até aos 70 anos de idade. Quanto mais não seja, devido à diferença salarial, a situação na investigação não é de todo comparável com outras áreas, como as profissões liberais e consultoria (onde a menor estabilidade de carreira é largamente compensada com vencimentos bem superiores). O mais previsível é que esses “melhores” irão debandar para países que ofereçam o mínimo de garantias de estabilidade. Até do ponto de vista da “meritocracia”, esta política é absurda.
- A investigação científica necessita de investimentos de esforço pessoal continuados, de construção de laboratórios, equipamentos e massa crítica. Uma pessoa que tenha de concorrer de 5 em 5 anos para manter o seu emprego, estará constantemente focada estritamente no seu CV e não necessariamente no desenvolvimento da sua instituição. A falta de uma carreira estável é uma política de vistas curtas.
- A precariedade dos investigadores contribui para manter o poder efetivo de decisão no cume de uma estrutura hierárquica cada vez mais piramidal. Ou seja, estagnação e deferência ao “Sr. Prof. Dr. catedrático” em vez de dinamismo e rejuvenescimento do sistema científico e universitário.
- A independência e a liberdade intelectual dos investigadores é um princípio fundamental sem o qual a própria atividade científica perde a sua razão de ser. Investigadores que podem ver o seu contrato não renovado vão provavelmente ter mais relutância em abordar termas ou divulgar resultados que possam “ferir suscetibilidades” de interesses poderosos. Nem os próprios EUA, com um sistema universitário largamente privado, abdicaram ainda da figura de tenure track/nomeação definitiva, por ser a única forma de garantir essa liberdade intelectual.
A questão dos investigadores é relativamente recente. Já a situação dos bolseiros de investigação é bem conhecida desde há muito e o BE já tem tomado posição, no sentido de exigir a atualização do valor das bolsas e o estabelecimento de uma cobertura pela segurança social ao nível da de qualquer outro trabalhador.
Estas “bandeiras” são seguramente justas e a sua reivindicação continua oportuna, mas um outro aspeto poucas vezes referido, mas de alguma forma ligado à questão dos bolseiros, é o da carreira de técnico de investigação. Formalmente, a carreira existe e os centros de I&D podem usar os seus fundos para contratar técnicos. No entanto, como esses fundos são sempre limitados, e os centros têm poucas garantias de estabilidade do financiamento, a contratação de técnicos é rara. Ao contrário, o número de bolsas de doutoramento tem aumentado, e como têm financiamento independente dos centros, são vistas como uma boa alternativa (as universidades também gostam, pois os doutorandos contribuem com propinas, e fica bem nas estatísticas).
No entanto, provavelmente todos conhecemos várias pessoas que fazem esses doutoramentos sem grande convicção, apenas por falta de alternativas à bolsa dentro do sistema científico, nomeadamente a possibilidade realista de uma carreira técnica. Já há bastante tempo que a ABIC tem identificado situações de bolseiros de doutoramento a trabalhar em situação de técnicos de laboratório. Essas pessoas teriam maior realização profissional, e prestariam um melhor serviço aos seus centros de investigação, se pudessem enveredar por uma carreira técnica estável. O apoio técnico de qualidade, seja a nível de oficinas, laboratórios, bibliotecas, centros de cálculo, é essencial para uma estrutura eficaz dos centros de I&D, e para isso é necessário dignificar e recuperar a carreira de técnico de investigação. Será necessária alguma cautela na abordagem do tema, devido à questão do prestígio social associado ao grau de doutor. No entanto, será útil associar esta temática à questão da precariedade dos bolseiros de investigação.
Artigo de José Maneira
1 Este artigo é um contributo para o plenário do núcleo de Ciência, Ensino Superior e Investigação Científica do Bloco de Esquerda (NESIC) que terá lugar no próximo dia 23 de Maio pelas 21 horas,na sede da Rua de S. Bento, nº 698, Lisboa.