A “excelência” e a função social da Universidade

18 de maio 2012 - 1:10

Cabe à Universidade, e em particular à Universidade Pública do Estado – paga por todos os contribuintes - um papel de “formação” e elevação do nível científico e cultural da população do país como um todo? Eis uma questão cuja resposta é decisiva na separação das águas em relação às opiniões a respeito do papel da Universidade. Por Filipe Rosas.

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"Prdouzimos ciência", Foto de Concentração Nacional de Bolseiros (18 Julho 2007) do blogue viveraciencia.wordpress.com

Sobre o papel que cabe à Universidade tornou-se regra, quase sem excepção, a defesa do que se decidiu instituir como “excelência”. A Universidade deve estar obrigada a ter um desempenho excelente, deve ser regida por critérios de exigência que visem alcançar a excelência, medir-se por parâmetros que redundem numa avaliação excelente. Explicitada na forma deste monte de banalidades a ideia parece consensual, propícia a proclamações ufanas, e instrumental na excitação de uma concordância artificial e desinformada.

Uma breve reflexão põe a nu a óbvia necessidade de conhecer e discutir o que se entende por “excelência”, e o que se esconde por detrás de um tal chavão.

Cabe à Universidade, e em particular à Universidade Pública do Estado – paga por todos os contribuintes - um papel de “formação” e elevação do nível científico e cultural da população do país como um todo?

Eis uma questão cuja resposta é decisiva na separação das águas em relação às opiniões a respeito do papel da Universidade.

O Ensino que cada vez mais temos

Por parte do poder político vigente, o que se esconde por detrás das belas proclamações de excelência parece ser justamente o abandono da função social da Universidade. O paradigma de Universidade que corresponde à ideologia neo-liberal que nos governa não quer saber do nível cultural da população, nem do modo como isso pode contribuir para um desenvolvimento que não se cinja ao seu aspecto estritamente financeiro. O que conta de acordo com esse ideário é a necessidade de generalizar um ensino que qualifique medianamente e de uma forma necessariamente barata, sem outras aspirações de emancipação social ou intelectual, uma mão-de-obra ajustada à estreiteza da ideia de desenvolvimento que querem impor no país (para a qual abundam as demonstrações de inevitabilidade e falta de alternativa). De acordo com isto, o Ensino Superior de qualidade não é para todos, nem sequer é para todos os que manifestamente demonstrem ter todas as aptidões para o merecer, é simplesmente para os que o podem pagar.

As reformas do tratado de Bolonha, ainda que contendo muitos aspectos merecedores de atenção e sobre os quais vale a pena evitar um julgamento categórico, afundam-se na instrumentalização das suas boas intenções ao serviço da lógica “austeritária” que nos governa. De facto, Bolonha tem servido sobretudo para cortar financeiramente nas Universidades, formatando o quadro geral de reorganização da oferta de formação Universitária que, no presente contexto de contracção económica e demográfica Europeia, redundará em despedimentos e na extinção de instituições e/ou unidades orgânicas (processo que aliás já se iniciou à escala Europeia).

Pairando sobre isto sobrevém ainda a ideia que alavanca muito do ímpeto reformista neo-liberal (mas que só muito raramente é assumida), relativa às duas realidades Universitárias que seria “inevitável” (mais uma vez) implementar:

As chamadas “research Universities”, às quais caberia o papel – o mais auto-financiável possível – de “fazer ciência”, e nas quais encaixariam sempre “de passagem” os novos precários sobre qualificados; e o seu contraponto, as “teaching Universities”, uma espécie de “máquina de fazer chouriços”, de funcionamento simples e sobretudo cumprindo uma exigência de total maleabilidade em relação às necessidades, melhor dito, às exigências, do mercado.

Tudo isto, claro está, desde que não custe muito dinheiro. Ou seja: financiável com base num aumento sempre cada vez maior de propinas, e noutras fontes de receitas próprias. Isto muito em particular no que respeita à investigação (“research Universities”) a qual, nesta lógica, deverá ser sempre entendida como um luxo e nunca como um direito (direito à investigação?! O senhor sabe quanto isso custa?! Tenha juízo!). O corolário é evidente, e já faz parte da realidade: investigação é para quem a pode pagar, quem se dispõe a viver toda a vida de bolsas ou contractos que não fidelizam o investigador ao laboratório a que pertence, quem obedientemente abdica da participação da vida cívica e dos processos decisórios das instituições a que está, somente “de passagem”, ligado.

Oiçam os contratados e bolseiros pós graduados. Perguntem-lhes o que pensam da vida que têm. Sem eles e a fundamental garantia da sua opinião livre o debate está viciado à partida.

Mas mesmo em relação às “teaching Universities” não se pense que há “almoços de graça”. Bem ao contrário! No quadro geral da estratégia de empobrecimento do país, é decisivo destruir a ideia da formação Superior enquanto um direito, assente no mérito, e necessariamente enquadrada por uma exigente promoção de igualdade de oportunidades. O aumento das propinas, na prática brutalmente agravado para além do seu valor nominal pela austeridade vigente, cumpre o seu papel hediondo de excluir pessoas das Universidades – não por terem falhado a demonstração da sua aptidão para a frequentarem – mas por razões de origem social e económica, excluindo brutal e simplesmente os que não conseguem pagar.

A este propósito seria interessante (tanto quanto arrepiante, suspeito) conhecer com rigor os números mais recentes do abandono escolar Universitário.

Em resumo, reza assim a cartilha de quem nos governa: um Ensino de qualidade para todos não é um direito é um luxo dispendioso, o Ensino Superior tem que caminhar inevitavelmente para se auto-financiar, deve “investir” exclusivamente nos melhores alunos ou nos que tenham dinheiro para custear a sua formação, e não pode preocupar-se com a caridosa aspiração de contribuir para nivelar por cima o conhecimento da população. Isso, é bom de ver, comprometeria a “excelência” das instituições.

É contra isto que temos que nos medir! É esta a luta que é urgente organizar! No Bloco e fora dele. Com conhecimento, estudo, rigor, persistência e muita paciência.

O embuste

Subentendida a esta lógica existe um perigoso embuste que urge desmistificar, e que promove a permeabilidade destas ideias em certos meios á partida insuspeitos, desde logo os próprios meios universitários: a ideia segundo a qual à Universidade cabe o papel de formar os melhores, com critérios de grande exigência e alta qualidade, e que isto acarreta uma contradição insanável com a função social da Universidade, ligada à elevação do nível cultural e intelectual da população para além do estritamente habilitacional.

Mas será que é possível a médio longo prazo ter bons alunos, bons professores, excelentes laboratórios, publicações recorrentes nas revistas de topo de arbitragem científica, empresas e tecido social articulado com as descobertas científicas, repercussão das respectivas consequências tecnológicas, etc. … será tudo isto possível com uma Universidade, num país pequeno como Portugal, dirigida só para a minoria dos que podem pagar?

Não só não seria justo, como para além disso não seria possível. De facto, num país a tender para perder a sua classe média, pobre e periférico como o nosso, o abandono da função social da Universidade significaria o fim da própria Universidade.

Já vimos um “filme” semelhante no tempo do Estado Novo na forma de uma implosão Universitária isolacionista, fechada e entrincheirada durante 50 anos na defesa dos privilégios de um número residual de representantes ou agentes universitários. Só que hoje em dia, uma tal Universidade nem sequer serviria o propósito político de reprodução das elites económicas e da sua ideologia, porque os filhos dos ricos tendem simplesmente, hoje com muito mais facilidade (como de resto já está a acontecer), a ir estudar para o estrangeiro.

Não existe contradição entre excelência e função social: pelo contrário!

A luta por uma Universidade ao serviço das pessoas, que se meça com o mais exigente de todos os objectivos: o de elevar o nível técnico, científico e cultural da população, deve estar no centro do trabalho a levar a cabo pelo Núcleo de Ensino Superior, Investigação e Ciência do BE (NESIC).

A defesa da Universidade, da sua função social, do seu papel modernizador e de desenvolvimento do país, tem que passar pela popularização do conhecimento, da ciência e da cultura, pela generalização ao seu acesso independente da origem social e económica de cada um.

Só procurando ampliar e generalizar as condições de igualdade social no acesso à Universidade é que se criarão condições para uma verdadeira excelência universitária: ambiciosa e exigente, mas também socialmente relevante, e por isso mesmo de carácter estrutural, duradoura e consequente.

Entretanto, não basta proclamá-lo, e a questão de saber como é que isto se faz, concretamente, no terreno, é o difícil desafio que temos pela frente. Mas sobre isto, pelo meio de todas a dúvidas e de toda a difícil discussão que havemos de ter, neste como em cada vez mais sectores da sociedade, não nos resta nenhuma alternativa a não ser o trabalho e a luta…

Artigo de Filipe Medeiros Rosas (Geólogo, Professor Universitário)

Este artigo é um contributo para o plenário do núcleo de Ciência, Ensino Superior e Investigação Científica do Bloco de Esquerda (NESIC) que terá lugar no próximo dia 23 de Maio pelas 21 horas, na sede da Rua de S. Bento, nº 698, Lisboa.