Feminismo

#SexoNãoÉGénero? Disputas feministas em torno do sexo e da biologia

20 de abril 2025 - 20:23

Os feminismos anti-género anseiam por um passado “mais simples”, mas confundem simplicidade com simplismo. Desta forma, não só acabam por achatar a complexidade do sexo, como também negam a riqueza e a pluralidade do conhecimento científico.

por

Mariela Solana

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Grupo anti-trans em frente ao Supremo Tribunal do Reino Unido.
Grupo anti-trans em frente ao Supremo Tribunal do Reino Unido. Foto de ANDY RAIN/EPA/Lusa.

Num monólogo de 2022, o comediante britânico Ricky Gervais gozava com a “cultura do cancelamento” – e, sem surpresa, foi “cancelado” pouco depois. Numa das suas piadas, Gervais avisa as pessoas que gostam de cancelar os outros que, no futuro, elas próprias podem ser vítimas de censura, uma vez que “ninguém pode prever o que será ofensivo no futuro, porque é impossível saber qual será a próxima massa dominante”. Por exemplo, continua o comediante, a coisa mais ofensiva que se pode dizer hoje é: “as mulheres não têm pénis”. Depois do riso do público, Gervais remata: “ninguém estava à espera disto”. De facto, acrescenta, há dez anos atrás não teríamos encontrado um tweet a dizer que as mulheres não têm pénis: “Sabem porquê? Não nos teria ocorrido que teríamos de o dizer”. [1]

O humor é muitas vezes um bom índice do estado de espírito da época, e o monólogo de Gervais capta com precisão um certo mal-estar com o progressismo em matéria de género e sexualidade. A crítica à chamada cultura woke [2] está ligada a um sentimento nostálgico de um passado mais simples e menos confuso, em que era fácil saber quem era homem e quem era mulher. Não teria ocorrido a ninguém esclarecer que as mulheres não têm pénis, porque teria sido como esclarecer que um quadrado tem quatro lados. A equação costumava ser simples e infalível: ter um pénis é igual a homem, ter uma vagina é igual a mulher. Embora esse passado desejado seja mais ideal do que real [3] , Gervais tem um ponto a seu favor: vivemos numa época de profundas revisões e debates sobre o que é ser mulher, homem ou outra coisa diferente.

Nas redes sociais conservadoras, existe um hashtag que condensa esta rejeição da (mal)chamada “ideologia de género”: #SexoNãoÉGénero. Esta hashtag implica que, para além da identificação, dos sentimentos e dos pronomes escolhidos, há uma verdade subjacente irrefutável: só há dois sexos e é o sexo que define homens e mulheres. Por sexo, entende-se um conjunto de elementos corporais: cromossomas, gónadas, hormonas, gâmetas, órgãos genitais. Esta hashtag é muitas vezes acompanhada por outras que, em conjunto, traçam os contornos nítidos dos movimentos anti-género: #SerMulherNãoÉUmSentimento; #MulherFêmeaHumanaAdulta; #Mulherxx; #StopDelírioTrans.

O que é talvez mais surpreendente é que esta crítica da “ideologia de género” já não é exclusiva de grupos anti-feministas, mas é apoiada por um ramo do próprio feminismo. Desde meados de 2010, surgiu na esfera pública (sobretudo nas redes sociais) um novo tipo de feminismo que apela a que se volte a levar o sexo a sério e a ancorar a definição de feminino e masculino na diferença sexual biológica. Estes “feminismos anti-género”, como lhes chama Mabel Alicia Campagnoli, “rejeitam a categoria de género através do construto “ideologia de género”, preferindo, como consequência, o termo ‘sexo’ para tornar visíveis as suas problematizações e identificar o sujeito político feminista com o coletivo das mulheres”. [4] Para o feminismo anti-género, #SexoNãoÉGénero é mais do que um hashtag, é o pilar do seu ativismo a favor das mulheres cis e contra as mulheres trans.

Como é possível que a distinção sexo/género, que foi utilizada para combater o essencialismo e o determinismo biológico, seja atualmente invocada para promover o essencialismo e o determinismo biológico? Como é possível que exista um feminismo “crítico do género” quando o género foi um instrumento fundamental para rejeitar o sexismo e a violência machista? Nos parágrafos que se seguem, gostaria de explorar as disputas feministas em torno da distinção sexo/género, bem como comparar as diferentes utilizações da biologia nas reflexões feministas sobre a identidade. Uma conclusão desta comparação é que a teoria feminista anti-género cai frequentemente em posições ingénuas e simplistas tanto sobre o sexo como sobre a biologia.

Mulheres, sexo e género

Comecemos por um resumo esquemático dos argumentos anti-género. O cerne desta abordagem é que as mulheres e os homens são definidos pelo seu sexo: o sexo feminino implica ter um cariótipo xx, vagina e vulva; o sexo masculino, um cariótipo xy, testículos e pénis. O sexo é uma realidade material objetiva; não é algo que se atribui, mas que se observa. Além disso, não pode ser alterado. É verdade que se podem fazer retoques e ajustes, mas estes são superficiais e estéticos; a verdade de fundo é imutável. Em geral, são frequentemente incorporadas explicações científicas para apoiar estas ideias: “Os dois sexos, masculino e feminino, evoluíram na Terra há mais de mil milhões de anos. O sexo de cada pessoa é fixado no momento da conceção e depende dos seus genes. [5]

Em contraposição ao sexo (que é real, material, objetivo, binário e imutável), temos o género. Há duas formas de os ativismos anti-género entenderem esta categoria. Por um lado, refere-se a um sistema social que gera a dominação masculina e atribui papéis e comportamentos estereotipados a homens e mulheres. O género como sistema é uma construção social e, como todas as construções, pode ser transformado – na verdade, defendem que deve ser eliminado porque é opressivo para as mulheres. Por outro lado, estes ativismos reconhecem que existe uma utilização da categoria de género como sinónimo de identidade, por exemplo, na noção de “identidade de género”. É esta a aceção que rejeitam: mulheres e homens não são “identidades de género” porque, se o fossem, a sua identidade seria determinada pelo sistema de género, ou seja, por estereótipos sexistas. Embora a sua conceção de “identidade de género” não esteja de acordo com o uso habitual ou com as normas internacionais – os Princípios de Yogyakarta definem a identidade de género como a vivência interna e individual do género tal como cada pessoa a sente, uma definição que nada diz sobre a reprodução de estereótipos sexistas [6] – a tese de fundo é que as mulheres e os homens são sexos e não identidades. Isto tem consequências para o tratamento das pessoas trans. Como refere Sara Ahmed: “Ao usar o sexo como se fosse natural, material e o género como se não o fosse, algumas pessoas tornam-se nesse ‘não’, esse ‘não’, não naturais, não materiais, nem sequer reais, irreais”. [7] As pessoas trans podem sentir-se mulheres ou homens, mas ser mulher ou homem não é um sentimento, é um facto biológico.

Ora, a distinção entre sexo e género não é uma invenção do feminismo anti-género, é uma das operações fundadoras do feminismo contemporâneo. Desde a década de 1970, a divisão entre o biológico (sexo) e os significados atribuídos ao biológico (género) tem sido um pilar da teoria feminista. Evelyn Fox Keller chegou a afirmar que “os estudos feministas modernos (…) emergem com o reconhecimento de que, no mínimo, as mulheres são construídas mais do que nascidas – ou seja, com a distinção entre sexo e género ”. [8] O conceito de género permitiu compreender que a “mulher” é muito mais do que a sua biologia e que a opressão sexista não é causada por diferenças anatómicas. No entanto, nas décadas de 1970 e 1980, “mulher” era ainda um termo ambivalente. Por um lado, era utilizado como sinónimo de sexo feminino (mulher enquanto fêmea, mulher que se nasce) e, por outro lado, era considerado uma construção social historicamente situada (mulher enquanto identidade, mulher que se faz). A frase de Gayle Rubin de 1975 capta esta ambivalência: “Uma mulher é uma mulher. Só se torna doméstica, esposa, mercadoria, coelhinha da Playboy, prostituta ou ditafone humano em determinadas relações”. [9] Por outras palavras, uma mulher é uma mulher (biológica), mas adquire certos atributos pelas mãos da cultura.

Já nos anos 80, a separação entre biologia e cultura, entre dados brutos e interpretação social, revelou-se estreita. Autoras como Donna Haraway alertaram para o facto de que ao “retirar as mulheres da categoria da natureza e colocá-las na cultura (…) o conceito de género tendeu a permanecer em quarentena para se proteger das infeções do sexo biológico ”. [10] Esta quarentena foi útil para nos livrar do biologismo, mas não para lidar seriamente com os processos biológicos, nem para estabelecer um diálogo produtivo com as ciências naturais.

As epistemologias feministas da década de 1980 aceitaram o desafio de Haraway, dando assim início a uma tradição frutuosa de estudos feministas sobre sexo e biologia. Neste quadro, os aspetos corporais não foram tratados como dados brutos (ou seja, factos invariáveis e alheios aos processos sociais), mas interrogava-se a forma como esses dados eram criados e recriados na interface entre a ciência e a sociedade. No domínio da filosofia, aconteceu algo semelhante. Judith Butler, inspirada por Michel Foucault, atacou a distinção temporal entre sexo e género. O sexo não é considerado um fenómeno pré-social, mas seria igualmente atravessado por significados e lutas de poder. Como aponta Ahmed, Butler e outras seguidoras de Simone de Beauvoir consideram que “a biologia importa, (...) mas a biologia é sempre parte da nossa situação histórica ”. [11]

No entanto, mesmo esta forma de revalorizar o sexo foi considerada inadequada por outras feministas. Os novos materialismos feministas, por exemplo, desafiaram a ideia de que a construção do sexo é monopólio da ação humana. O neo-materialismo feminista sublinha que a própria biologia é um agente: sofre mutações, surpreende, adapta-se e readapta-se, tal como o fazem as instituições sociais. O sexo já não é um dado bruto, nem um dado cozinhado pelo sistema heteropatriarcal. Quando muito, o sexo é cozinhado em fogo lento numa cozinha onde os cozinheiros não são todos humanos. Nas narrativas neo-materialistas, a própria natureza é vista como uma construção dinâmica e mutável, aberta a mudanças no ambiente, mas também fiel aos seus processos internos.

Em geral, os novos materialismos e a epistemologia feminista tentam não dar prioridade à cultura sobre a biologia, mas também não à biologia sobre a cultura. O seu interesse é estudar o entrelaçamento entre o que chamamos natural e o que chamamos cultural. Anne Fausto-Sterling oferece um exemplo que ilustra a necessidade de superar o dualismo. Recorda a história de uma cabra que nasceu sem patas dianteiras e viveu toda a sua vida a saltar sobre as patas traseiras; após a sua morte, uma autópsia revelou que a cabra tinha uma coluna vertebral em forma de “s”, semelhante à dos humanos e diferente da das outras cabras. O que o autor defende é que a forma do seu corpo se desenvolveu como resultado tanto do seu código genético como do seu andar: “Nem os seus genes nem o seu ambiente determinaram a sua anatomia. Só o conjunto tinha esse poder”. [12]

Quais são as diferenças e semelhanças entre o feminismo anti-género e os feminismos que temos vindo a discutir? Tal como os feminismos das décadas de 1970 e 1980, os feminismos anti-género reconhecem que o sexo é diferente do género mas – e esta é uma distinção importante – localizam exclusivamente no sexo o que é próprio de ser homem ou mulher. Além disso, o sexo é considerado um dado bruto, sinónimo de variáveis objetivas e reais – uma diferença importante em relação aos feminismos que o consideram uma construção, seja ela social ou naturocultural. O género, recorde-se, não pode ser o locus da identidade porque o referem a um sistema opressivo, e não poderíamos definir-nos como mulheres pela nossa opressão. Embora praticamente todas as feministas aceitem que o sistema sexista oprime e que a categoria “mulher” não pode ser sinónimo de estereótipo, para autoras como Gayle Rubin nos anos 70, Joan W. Scott nos anos 80, Judith Butler nos anos 90 e Sara Ahmed hoje, o género é muito mais do que isso. Os sentidos culturais podem ser disputados, os estereótipos exercem pressão, mas também podem ser pressionados. Em todo o caso, o género é a arena em que se constitui o significante vazio – ou flutuante – que é a categoria “mulher”. Aqui encontramos outra diferença fundamental: para Butler, Ahmed, Scott ou Haraway, não existe uma definição última de “mulher”. O objetivo do feminismo não é estabelecer de uma vez por todas o que é uma mulher, como se pudéssemos encontrar um critério absoluto, universal e fixo. Como veremos, nem mesmo o sexo nos dá essa certeza. Nas palavras de Scott: “Não existe uma essência do ser mulher (ou do ser homem) que forneça um sujeito estável para as nossas histórias; existem apenas iterações sucessivas de uma palavra que não tem um referente fixo e que, por isso, não significa sempre a mesma coisa”. [13]

Não existir um referente fixo não significa que não possamos contar com definições precárias e contingentes. Quando o vínculo férreo entre biologia e identidade se atenua, surgem outros critérios que podemos utilizar, como a auto-perceção. Embora os movimentos anti-género concebam a auto-perceção como um delírio ideológico, não se trata de uma operação assim tão estranha ou nova. Pensemos, por exemplo, na categoria de “filho” ou “filha”. É verdade que a descendência é muitas vezes vista como um laço de sangue, mas também cortou a sua ligação necessária com a biologia. Uma pessoa que adota um bebé não acredita que o seu filho seja um “filho falso” porque não é a sua cópia biológica. As categorias sociais são assim: não têm um sentido único, são “vazias”, não porque não as possamos preencher com significados mas porque esse conteúdo é sempre disputado.

O abrandamento da ligação entre “mulher” e “biologia” não significa que as mulheres tenham sido “apagadas”, como temem as feministas anti-género. Pelo contrário, é um índice da contingência e da multiplicidade semântica que este significante implica. Mais uma vez, há alturas em que continuamos a usar “mulher” como sinónimo de “ser humano com uma vulva” – quem não perguntou a uma pessoa grávida se vai ter uma menina ou um menino com base na observação ultra-sonográfica dos genitais – mas, noutras alturas, este uso é insuficiente, como no caso das mulheres trans. A tarefa, sugiro agora, é ampliar os repertórios semânticos, encontrar definições ad hoc, contingentes e contextualmente úteis.

A Biologia em disputa

Os feminismos anti-género orgulham-se de serem porta-vozes do senso comum e definem frequentemente as mulheres como “fêmeas adultas da espécie humana”. [14] No entanto, oferecem frequentemente descrições intrincadas e menos intuitivas. 14 No entanto, muitas vezes oferecem descrições intrincadas e menos intuitivas. Por exemplo, J.K. Rowling, a autora de Harry Potter e um dos rostos mais visíveis do feminismo anti-género, defende que uma mulher é “um ser humano pertencente à classe sexual que produz gâmetas grandes”. [15] Uma definição peculiar, por assim dizer, mais próxima dos antigos manuais científicos do que do nosso uso coloquial. Porquê falar em gâmetas?

Como já referi, a utilização de noções biológicas para sustentar a sua ideia de sexo é um lugar-comum nos feminismos anti-género. Não só repudiam os feminismos dominantes por supostamente negarem o sexo, mas também por “negarem a ciência”; daí chamarem-lhes “ideológicos”. No entanto, existe uma longa tradição no feminismo de leitura e análise sérias da investigação em ciências naturais, pelo menos desde o surgimento da epistemologia feminista nos anos 1980. Estas epistemologias fazem parte do legado da filosofia da ciência de Thomas Kuhn e, como tal, centraram-se na demonstração de que não existem verdades eternas e indiscutíveis nas ciências, mesmo naquelas consideradas “duras”. As teorias científicas são falíveis, incorporam frequentemente valores sociais, mudam ao longo do tempo, estão sujeitas a debate. Isto não significa que sejam falsas, mas que o rigor, a adequação empírica e a metodologia não são antídotos face à contingência do saber.

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No que diz respeito ao sexo, a epistemologia feminista mergulhou na história da biologia para mostrar que a verdade simples, universal e auto-evidente de que falam os feminismos anti-género não existe enquanto tal. É certo que, como reconhece Sarah Richardson, “o sexo é muitas vezes visto como o termo simples na equação sexo/género, facilmente definido por referência a uma pequena lista de materialidades objetivas, nomeadamente hormonas, cromossomas, gónadas e genitais. [16] Mas os seus estudos sobre as investigações biomédicas demonstram que o sexo é muito mais “selvagem” do que parece à primeira vista. Pelo menos nos laboratórios, o sexo não é um atributo fixo e estável, mas é operacional, ou seja, relativo ao contexto da investigação.

Há duas caraterísticas do sexo que as epistemologias feministas têm problematizado: o seu binarismo e a sua imutabilidade. Nas aulas de biologia, aprendemos que o mecanismo de diferenciação sexual funciona da seguinte forma: os genes determinam o aparecimento das gónadas e as gónadas determinam o aparecimento dos genitais (o modelo sexual 3g, como lhe chama a neurocientista Daphna Joel). [17] Em geral, os genes associados ao cariótipo xx iniciam um processo que dá origem ao útero e, depois, os ovários segregam as hormonas sexuais que geram a vagina e a vulva. Com um cariótipo xy, teremos testículos, cujos androgénios formarão o pénis.

Na realidade, o modelo do sexo 3g é mais complicado e envolve mais variáveis. Autores como Richardson e Fausto-Sterling trabalharam para desmontar o mito de que os cromossomas x e y são os maestros absolutos da orquestra sexual. [18] Mas, para além disso, há alturas em que este modelo vacila, como o demonstram os nascimentos de bebés intersexuais (aproximadamente 1-2% da população mundial, o mesmo número de ruivos). A nossa fé convicta no dimorfismo sexual esquece muitas vezes que, antes dos dois meses de gestação, todos os seres humanos são equipotentes. Entre as semanas 8 e 12, a estrutura pré-gonadal indiferenciada desenvolve-se geralmente em testículos ou ovários. Os ductos internos também são equipotentes, e é a ação hormonal que determina quais degeneram e quais sobrevivem. Por exemplo, nas pessoas xy, a ação da hormona anti-Mülleriana degenera o ducto Mülleriano, enquanto nos indivíduos xx, a ausência desta hormona converte este ducto em trompas uterinas, útero e colo do útero. O tubérculo genital também começa indiferenciado e, após ação hormonal, transforma-se em pénis ou clítoris. Como afirma Fausto-Sterling: “Com toda essa bipotencialidade, a névoa que envolve os nascimentos intersexuais começa a dissipar-se”. [19] Basta que aconteça algo fora do comum num destes níveis de desenvolvimento sexual para que o resultado seja invulgar. É por isso que a autora prefere pensar no sexo como um espetro, em vez de dois compartimentos separados. A ideia de espetro indica que existe uma continuidade entre a masculinidade e a feminilidade biológicas: “As categorias discretas – como ‘natureza’ ou ‘educação’, ‘rapaz’ ou ‘rapariga’ – são demasiado simplistas para acomodar a confusão inerente à natureza ”. [20] Em 2015, a revista Nature publicou uma resenha dos últimos estudos científicos sobre o sexo biológico que chega à mesma conclusão: “A ideia de dois sexos é simplista. Os biólogos pensam agora que existe um espetro mais alargado do que isso”. [21]

Com isto não pretendo dizer que a biologia nega o dimorfismo sexual. Em vez disso, gostaria de mostrar que existe diversidade e falta de consenso na comunidade científica relativamente ao binarismo. Há quem defenda que o carácter excecional ou minoritário da intersexualidade nos permite continuar a afirmar que existem dois sexos. Mas há outras vozes que dão prioridade à figura do espetro e da continuidade. Insistir que o sexo é inquestionavelmente simples, objetivo e fixo – como fazem os feminismos anti-género – é ignorar as idiossincrasias da própria biologia que dizem defender.

Ora, se em termos de cromossomas e de caraterísticas sexuais primárias e secundárias, o binarismo admite exceções, o mesmo não acontece com os gâmetas. Neste caso, são apenas dois: o óvulo e o espermatozoide. É por isso que a definição de “mulher” como “o ser humano que produz o maior gâmeta” – o óvulo – ganhou popularidade entre os críticos da “ideologia de género”. Como desafia a ativista anti-género Helen Joyce: “Mostrem-me o terceiro gâmeta e falaremos”. O foco nos gâmetas, para além de endossar o binarismo, permite-nos defender a imutabilidade do sexo: não é possível (por enquanto) deixar de produzir óvulos e começar a produzir espermatozóides (ou vice-versa). Podemos tomar hormonas, podemos fazer cirurgias estéticas, mas mudar de gâmetas é inviável.

Para defender a centralidade dos gâmetas, as feministas anti-género comprometem-se com um valor adicional: o reducionismo. Veja-se, por exemplo, uma citação do ativista trans anti-género Buck Angel (sim, existem pessoas trans anti-género). Buck, que é um homem trans, observou: “A minha realidade é que serei sempre uma mulher biológica. Nessa realidade, mudei o meu espaço físico para parecer masculino. Isso não alterou a minha biologia”. [22] Mas o que significa “biologia” neste contexto e porque é que algumas mudanças alteram apenas a aparência, mas não a essência do género? Qualquer pessoa que olhe para uma fotografia de Buck – os seus peitorais, a sua barba espessa, os seus braços musculados – reconhecerá que algo na sua biologia mudou com a sua transição. A única forma de uma frase como esta fazer sentido é se a lermos de forma reducionista: nenhuma das alterações corporais alterou o seu sexo “de fundo”.

O reducionismo também tem sido objetivo de disputa. Nas epistemologias feministas, por exemplo, o sexo remete para uma amálgama complexa de diferentes níveis biológicos (cromossomas, gónadas, hormonas, gâmetas, genitais e caraterísticas sexuais secundárias) e não pode ser homologado a apenas um deles. Nenhum destes níveis é, por si só, sinónimo de “sexo”, pois “nenhum está presente em todas as pessoas rotuladas como masculinas ou femininas ”. [23] Há mulheres com hiperandrogenismo que têm níveis de testosterona que não correspondem à média feminina “normal”; há mulheres intersexo com vulva e testículos não descidos; há homens com síndrome de De la Chapelle que têm dois cromossomas x, mas genitais e gónadas masculinas. Perante toda esta diversidade espontânea, reduzir a “verdade” do sexo a uma das suas camadas (seja x, seja y, sejam gâmetas, sejam genitais) é uma decisão, não uma consequência necessária dos dados científicos, nem uma observação direta da natureza.

Abandonar o reducionismo torna complicado pensar no sexo como imutável. É certo que não podemos mudar o nosso cariótipo ou os nossos gâmetas, mas há outras dimensões do sexo biológico que podem ser transformadas. As hormonas são uma delas. Não só porque é possível consumir testosterona ou estrogénio sintéticos, mas também porque eles próprios são substâncias muito sensíveis ao ambiente. As hormonas complicam qualquer divisão rígida entre interno e externo, entre inato e adquirido. Um estudo sobre a paternidade nas Filipinas, por exemplo, mostrou que os níveis de testosterona dos pais variam consideravelmente consoante o tipo de relação que têm com a sua família. Os pais que têm uma relação mais próxima com os seus filhos e filhas tendem a ter níveis mais baixos de testosterona no sangue do que os pais que têm uma relação mais distante. Como refere Cordelia Fine, a testosterona não pode ser considerada um fator puramente biológico; os seus níveis estão intrinsecamente ligados à história e à experiência subjectiva do seu portador. [24]

Assim, podemos ver que não existe uma resposta única e definitiva para a questão do que é o sexo, nem no feminismo nem na biologia. Só podemos contar com respostas provisórias que dependem do contexto da discussão. Se estivermos interessados, por exemplo, em falar da reprodução sexual dos mamíferos, não é errado dividir os animais, incluindo os humanos, de acordo com os seus sistemas reprodutivos. Se quisermos fazer afirmações gerais sobre a população humana, não é errado referir que, na maioria dos casos, o sexo é dimórfico. Mas se estivermos interessados em legislar sobre o reconhecimento social e jurídico das pessoas, a auto-determinação parece ser um instrumento mais útil. Podemos aprender muito com a biologia, mas ela não é a autoridade máxima em matéria de problemas sociais. As ciências naturais fornecem ferramentas úteis, mas também têm os seus limites. Há questões cujas respostas dependem de fontes adicionais, como o ativismo e os direitos humanos. Um geneticista pode mostrar que é impossível mudar um cariótipo xx para um cariótipo xy, mas isso não nos diz nada sobre a possibilidade de mudar o género nos registos, nem nos obriga a tratar essa pessoa como mulher. Como sugere o médico Eric Vilain, uma vez que não existe um parâmetro biológico único que se sobreponha a todos os outros, no fim de contas, “se quisermos saber se alguém é homem ou mulher, a melhor coisa a fazer é simplesmente perguntar”. [25]

Simplicidade ou simplismo

Neste artigo identifiquei algumas afinidades e diferenças entre os feminismos anti-género e outras correntes feministas. A separação entre sexo e género não é uma invenção do feminismo anti-género, mas a forma como a utiliza para definir as mulheres cis e para negar a validade das mulheres trans marca uma certa especificidade. [26] Mesmo os feminismos que separam nitidamente o biológico do cultural consideram frequentemente a “mulher” como uma categoria política, gestada no calor do sistema de género. É certo que o género, enquanto matriz cultural, tem sido historicamente opressivo para as mulheres, mas a cultura não é apenas o que nos sujeita, é também o que nos torna sujeitos, até sujeitos de mudança.

O apelo ao sexo como forma de reduzir a confusões e a hesitações sobre o que significa ser mulher ou homem nem sempre sai bem. Qualquer pessoa que percorra a história da biologia do sexo pode constatar que, longe de chegar a uma definição universal, as investigações científicas sobre o sexo não conseguem fixar o seu sentido. Mas, para alémdisso, definirmo-nos pelos nossos órgãos genitais, gónadas ou cromossomas tem os seus custos. Para as mulheres, serviu para nos manter no “nosso lugar”: a casa, a maternidade, a família. É por isso que Ahmed observa que “criticar o género mas não o sexo leva-nos na direção do conservadorismo de género”. [27]

Gostaria de terminar este artigo deixando claro que o meu objetivo não é defender uma tese idealista sobre o sexo. O sexo é material, o sexo é real, o sexo é importante; a questão é o que entendemos por sexo. Inspirada pelas epistemologias feministas, neste ensaio sugeri que o sexo é uma realidade, um dado, e que mesmo enquanto objeto científico é complicado, confuso e objeto de debate. Mas, fundamentalmente, o sexo não pode ser o único critério que resolve, de uma vez por todas, a questão do que é uma mulher. Os feminismos anti-género anseiam por um passado “mais simples”, mas confundem simplicidade com simplismo. Desta forma, não só acabam por achatar a complexidade do sexo, como também negam a riqueza e a pluralidade do conhecimento científico.


Mariela Solana é Doutora em Filosofia pela Universidade de Buenos Aires, investigadora no Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet) e professora na Universidad Nacional Arturo Jauretche, onde também é diretora do Programa de Estudos de Género.

Texto publicado originalmente na Nueva Sociedad. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.


Notas

1. O vídeo pode ser visto em “Ricky Gervais: Women Don't Have Penises” do especial Supernature (Netflix, 2022).

2 A palavra “woke” vem do inglês e era originalmente usada para designar alguém consciente ou “desperto” para as desigualdades sociais, raciais e de género. Atualmente, é utilizada de forma irónica ou depreciativa por grupos reacionários para designar um excesso de correção política e de vitimização.

3. Há registos de pessoas que se vestem com roupas “impróprias” para o seu sexo, pelo menos desde a Idade Média (se podem ser chamadas de “trans” ou se isso é um anacronismo é um objeto de debate). No feminismo, a categoria de mulher nunca foi auto-evidente. Já na Convenção das Mulheres em Akron, Ohio, em 1851, Sojourner Truth, uma mulher negra e ex-escrava, apresentou um discurso intitulado “Por acaso não sou mulher?” e iniciou assim uma longa tradição feminista de problematização do que é e do que significa ser mulher.

4. M.A. Campagnoli: «Feminismo antigénero, bandera colonial de la derecha. Una reflexión desde Argentina» em Encuentros Latinoamericanos vol. 8 Nº 1, 2024, p. 61.

5. Sex Matters: «Sex and Gender faqs».

6. Este documento foi elaborado a pedido da então Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos (2004-2008) Louise Arbour por peritos em direito internacional e direitos humanos de vários países, que se reuniram na Universidade Gadjah Mada (Yogyakarta, Indonésia) de 6 a 9 de novembro de 2006. “Yogyakarta Principles. Principles on the Application of International Human Rights Law in relation to Sexual Orientation and Gender Identity”, 3/2007.

7. S. Ahmed: «Crítica del género = conservadurismo de género» em Latfem, 2021.

8. E. Fox Keller: «The Gender/Science System: Or, II Sex to Gender as Nature Is to Science?» em Hypatia vol. 2 No 3, 1987.

9. G. Rubin: «El tráfico de mujeres: notas sobre la ‘economía política’ del sexo» em Nueva Antropología vol. 8 No 30, 1987, p. 96.

10. D. Haraway: «‘Género’ para un diccionario marxista: la política sexual de una palabra» em Ciencia, cyborgs y mujeres. La reinvención de la naturaleza, Cátedra, Madrid, 1995, p. 227.

11. S. Ahmed: ob. cit.

12. A. Fausto-Sterling: Cuerpos sexuados. La política de género y la construcción de la sexualidad, Melusina, Barcelona, 2006, p. 43.

13. J.W. Scott: «Género: ¿todavía una categoría útil para el análisis?» em La Manzana de la Discordia vol. 6 No 1, 2011, p. 99.

14. «Declaración sobre los derechos de las mujeres basados en el sexo».

15. J. K. Rowling: tuite de 6/4/2024, disponível em x.com/jk_rowling/status/1776616861888655835.

16. S. Richardson: «Contextualismo sexual» em Análisis Filosófico vol. 42 No 2, 2022, p. 388.

17. D. Joel: «Genetic-Gonadal-Genitals Sex (3G-sex) and the Misconception of Brain and Gender, or, Why 3g-Males and 3G-Females Have Intersex Brain and Intersex Gender» em Biol Sex Differ vol. 3 No 1, 2012.

18. A. Fausto-Sterling: Sex/Gender: Biology in a Social World, Routledge, Nueva York, 2012; y S. Richardson: Sex Itself: The Search for Male and Female in the Human Genome, The University of Chicago Press, Chicago-Londres, 2013.

19. A. Fausto-Sterling: Sex/Gender, cit., p. 23.

20. A. Fausto-Sterling: «Gender & Sexuality».

21. Claire Ainsworth: «Sex Redefined» em Nature No 518, 2015.

22. Transsexual Unity, publicação no Instagram, 4/5/2023, disponível em www.instagram.com/p/cr1qnq1ovgh/?utm_source=ig_web_copy_link&igsh=mzrlo….

23. Katrina Karkazis, Rebecca Jordan-Young, Georgiann Davis e Silvia Camporesi: «Out of Bounds? A Critique of the New Policies on Hyperandrogenism in Elite Female Athletes» em The American Journal of Bioethics vol. 12 No 7, 2012, p. 6.

24. C. Fine: Testosterone Rex: Myths of Sex, Science, and Society, W. W. Norton & Company, Nueva York-Londres, 2017.

25. Cit. en C. Ainsworth: ob. Cit.

26. Embora, por razões de espaço, não me seja possível desenvolvê-la aqui, é importante lembrar que esta forma de pensar sobre sexo e género e de negar a validade das vidas trans não é estritamente nova. O feminismo anti-género contemporâneo está em dívida com as teóricas feministas transgénero que escreveram a partir do final da década de 1970, como Janice Raymond, Sheila Jeffreys e Germaine Greer. Para uma excelente análise das ligações entre o presente e o passado dos feminismos radicais, ver Julieta Massacese: “Un perfil del movimiento radfem en la Argentina: taxonomías, antecedentes y polémicas” in Mora vol. 2 No 29, 2023.

27. S. Ahmed: ob. cit.