Tem duas salas amplas no rés do chão: formam o café e pastelaria. No primeiro andar funciona o restaurante. O estabelecimento Luiz da Rocha, no centro histórico de Beja, é irresistível. E quando se está lá dentro pressente-se algo de radicalmente diferente e acolhedor. Há qualquer coisa de novo e difícil de definir. As pessoas que lá trabalham não transportam o peso da hierarquia nem a vigilância do patrão. A boa disposição do pessoal é contagiante, a autoconfiança, o “amor à camisola”, a interação com os clientes, geram curiosidade. E apetece perguntar: quem é o dono deste café?
A resposta é simples e direta:
- É nosso!, responde a jovem trabalhadora com a bandeja na mão e um sorriso aberto, que resume uma história que começou a seguir à revolução do 25 de Abril.
- Isto é uma cooperativa de trabalhadores! Quem vos pode contar tudo é o meu colega mais velho. Amanhã de manhã vai cá estar.
Trata-se de António Leandro. Tem 73 anos, já está reformado, mas presente sempre que é preciso para ajudar, para as relações públicas, para apoiar a nova geração de colegas, com a sua experiência, nas Assembleias Gerais de Cooperantes.
É ali mesmo numa mesa do café, entre muitos clientes, que António nos conta esta caminhada coletiva que começou com ele e colegas da sua geração que ali trabalhavam aquando do 25 de abril e que entretanto se vão reformando e dando lugar aos novos.
Quando os ventos livres sopraram
Trabalham nesta Cooperativa 40 pessoas. Em maio esta casa histórica de Beja fundada em 1893 por um tal Luiz da Rocha completará 130 anos de atividade. Quando comemorou 125 anos, antes da pandemia, a festa foi rija: exposição, sessões de canto e ginástica no exterior, bolo de aniversário gigante no largo, que em grande parte do ano se transforma em esplanada.
A pandemia atrapalhou bastante. O “pé de meia” que tinham juntado para obras de beneficiação, balcões, etc., ficou abalado, por necessidade de garantir direitos mais urgentes do pessoal.
A história deste café-pastelaria-restaurante de referência pode dividir-se em duas grandes fases: antes e depois do 25 de abril de 1974.
Abreviando a primeira fase, pode dizer-se que era o ponto de encontro das “elites” económicas e políticas anteriores à democracia, com o aviso à porta: “Reservado o direito de admissão”. O povo evitava entrar, quer pelos preços praticados, quer pelos frequentadores que dominavam o espaço em tempo de ditadura: comandos da PSP e GNR, chefes militares, latifundiários. O pessoal envergava obrigatoriamente casaco de cor “bordeaux” com gola larga em veludo, camisa branca e sapato preto.
O 25 de Abril de 1974 alterou tudo, fez emergir choques e mudanças: hoje toda a gente entra aqui!
Em 1976 as reivindicações das cerca de 38 pessoas que aqui trabalhavam estavam num impasse: ordenados em falta, dívidas, receitas em queda a pique.
Mas “os ventos sopravam a nosso favor”, recorda António Leandro. Com o apoio do Sindicato chegaram a um entendimento com a administração. Tão pacífico que os antigos donos continuaram a ser clientes.
E transformaram-se de Sociedade de proprietários locais ricos… numa Cooperativa. Nesta época a seguir ao 25 de Abril surgiram muitas cooperativas no ramo da indústria hoteleira (para já não falar nos campos do Alentejo e Ribatejo). Hoje restam poucas. É difícil remar contra a maré, contra as leis e obstáculos e governos que vieram a seguir à ressaca da Revolução, o sistema financeiro. Trabalhar num grupo de dezenas de pessoas, prolongadamente, todos os dias ao longo de décadas também não é fácil: há que aprender a viver sem patrões, toda uma cultura e poder de encaixe.
Hoje em dia, num tempo em que os cafés “clássicos” e populares com pessoal a atender às mesas tem tendência a desaparecer, esta Cooperativa avança, assente na vontade da sua gente e nas Assembleias Gerais. É um projeto blindado, que não vai abaixo. Abriram mesmo um segundo espaço na cidade, para facilitar o acesso por carro e levantamento de encomendas, porquanto o edifício histórico se situa numa zona essencialmente pedonal. A pandemia pôs o coletivo à prova, mas é possível continuar vencendo.
A marca “Luiz da Rocha” é agora conhecida em todo o país. Fazem envios regulares para particulares e para vários estabelecimentos de Lisboa, sobretudo das famosas trouxas de ovos. Os emigrantes levam as suas especialidades quando regressam aos países que os acolheram, nomeadamente os emblemáticos “porquinhos doces”, de amêndoa, gila, ovos, cacau e açúcar.
Programas de rádio e televisão vão fazendo justiça à qualidade e à marca cujo principal segredo é basear a produção e o serviço numa cooperativa.