A socialização, a forma como somos socializados/as para nos comportarmos, agirmos, brincamos ou vestirmos (Santos & Rolino, 2019)1, começa desde muito cedo a distinguir-nos e a colocar-nos em caminhos separados que temos de seguir se formos homens ou mulheres, invisibilizando, ainda, as outras expressões ou identidades de género não binárias. A mulher é colocada no caminho da beleza, da sensibilidade, emotividade e fragilidade. Até mesmo antes de nascer: quando nos deparamos com uma mulher grávida de uma menina tendemos a falar com uma voz mais baixa, mais suave, mencionando que quando nascer será muito bonita e uma “princesa”. Isto por oposição aos homens, aos quais a socialização remete para o trilho da coragem, agressividade, do “engolir o choro” e do provedor da família. Como referiu Edfeldt (2006, p. 21)2 “[...] as mulheres vivem numa sociedade cuja estrutura básica ainda é organizada a partir do discurso duma construção da diferença sexual – quer dizer, onde os indivíduos são criados e socializados de acordo com a sua pertença a um dos sexos [...] “. No entanto, e isto é animador, as manifestações de género não são universais e imutáveis, variando conforme os tempos e as sociedades, ou seja, são apreendidas e ensinadas de formas diferentes e em diferentes espaços (Bock, 1989)3. E sendo aprendidas, e aqui o aspeto animador, podem ser modificadas e desaprendidas assim mudem as nossas formas de agirmos e ensinarmos, especialmente as crianças. Assim, as diferenças de género, bem como as biológicas, são pressupostos para as desigualdades sociais (Bock, 1989)4 e foram, através dos tempos, também as bases da marginalização das mulheres.
O patriarcado, de uma forma mais ampla e geral, foi responsável pelo apagamento das mulheres em todas as suas expressões. O patriarcado, enquanto ideia global e unitária de poder, desenvolvido num contexto de dominação masculina, tem como ponto de partida a ideia universal da opressão das mulheres pelos homens (Piscitelli, 2002)5. E, como qualquer opressão, empurra as oprimidas para um lugar sombrio de quase não-existência, ou para uma existência em que a entrada e a saída estão cortadas (Wolf, 1996)6 e vedadas por essa força patriarcal insustentável. O patriarca, o professor, o senhor de si, que detinha todo o poder, o dinheiro e o poder de decisão condicionava de uma forma raivosa o destino de todas as mulheres (Wolf, 1996)7. O homem ocupava, com a sua máquina gorda, não apenas o espaço literário, mas, do mesmo modo, o espaço público, o que interessava e era objeto de relato, confinando as mulheres ao lar e tornando-as invisíveis (Perrot, 2007)8.
Estes ingredientes não eram os únicos obstáculos para a marginalização da mulher. Por exemplo, enquanto artista, escritora, autora, as dificuldades económicas eram um meio de impedimento aos trabalhos artísticos das mulheres. Como também, e novamente, os homens, que escreviam sobre as mulheres (Wolf, 1996)9, que escreviam sobre tudo, ocupavam o espaço da escrita não deixando lugar para que a expressão cultural feminina crescesse. Assim, a mulher, ou a sua figura, dominava o espaço literário apenas como musa ou personagem, estando ausente como autora (Couto, 2005)10. Os homens tinham, dessa forma, a prerrogativa da escrita, da palavra, e as mulheres só podiam aceder a esse mundo em forma de transgressão (Couto, 2005)11.
De uma forma mais específica e particular, as masculinidades hegemónicas (Raewyn Connel, 1995)12, como a adoção de comportamentos de coragem temerária, de agressividade, de risco, o ser provedor da família, entre outros (Rita Santos & Tiago Rolino, 2019)13, contribuem para as desigualdades entre homens e mulheres, e, consequentemente, para o apagamento e a marginalização destas. Masculinidades hegemónicas que, como refere Miguel Vale de Almeida (2018)14, determinam a subalternidade do feminino e das masculinidades que àquelas lhe estão secundarizadas, como são as masculinidades feministas, não violentas e cuidadoras, por exemplo. De facto, o género e as relações, de género têm uma estruturação que assenta numa ideia de relação de poder não só entre as masculinidades e as feminilidades, mas entre as próprias masculinidades. Sendo que as hegemónicas, que decorrem do poder patriarcal e que correspondem às características de um reduzido número de homens, estão numa posição de supremacia em relação às masculinidades que lhe estão subalternizadas e às feminilidades (Vale de Almeida, 1995)15.
Assim, as masculinidades hegemónicas e os comportamentos masculinos estereotipados marginalizam as mulheres e contribuem para as desigualdades em todas as esferas sociais, comportamentais e laborais:
Contribuem no contexto doméstico, pois são ainda as mulheres que continuam a fazer mais trabalho doméstico e de cuidado. E embora as mulheres, na maior parte do mundo, gastem em média menos horas do que os homens em trabalho remunerado, gastam mais horas a realizar o chamado trabalho global - pago e não pago (Kaufman, 2019)16. No caso de Portugal, as mulheres dedicam por dia cerca de 1 hora e 40 minutos de trabalho não remunerado a mais do que os homens e fazem, em média, mais 1 hora e 13 minutos de trabalho total (Perista et al., 2016)17.
Contribuem para as diferenças salariais entre homens e mulheres (Karin Wall, et al., 2010)18, pois as práticas de representação de género estereotipadas são impressas no mercado de trabalho, por exemplo possibilitando aos homens uma maior disponibilidade para trabalhar mais horas (e fora de horas) e baixar níveis de absentismo laboral por motivos de acompanhamento dos/as filhos/as (Casaca, 2021)19.
E contribuem em violência. A maior parte da violência contra as mulheres é cometida por homens numa conjuntura societária desigual em termos de género e, existindo uma ligação crucial entre a violência e o poder, a violência dos homens é a expressão desse mesmo poder masculino sobre as mulheres e as crianças (Flood, 2019)20. Trabalhos de investigadores como Guedes, Bott, Garcia-Moreno e Colombini indicam-nos que existem conexões entre representações estereotipadas de género e a violência contra mulheres e crianças, que ocorrem frequentemente no agregado familiar, podendo ter como consequências ciclos intergeracionais de violência (Kato-Wallace, Barker, Eads & Levtov, 2014; Ligiero, Hart, Fulu, Thomas & Radford, 2019)21.
O mundo patriarcal e capitalista que nos (enquanto sociedade) tem seguido e acompanhado como uma sombra eterna, é responsável pelo obscurecimento das mulheres enquanto indivíduos. Algumas das faces negras dessa sombra pairante e fria é a marginalização, o apagamento e a hostilidade contra a figura da mulher. E uma hostilidade com componentes interligados, mesclados até, mas distintos: social, laboral, familiar e pessoal. Esta última carregada de sentimentos de culpa, de vergonha e de indefinição, por julgarem que estão a ocupar um espaço que não lhes pertence, que estão num sítio onde não deveriam estar, a fazer o que não deveriam fazer. E isto é responsabilidade do homem, do “professor”, do patriarca, daquele que se julga senhor de si.
Notas:
1 Santos, R.; Rolino, T. (2019). EQUI-X, Manual de Promoção de Igualdade de Género e de Masculinidades Não Violentas. Centro de Estudos Sociais. Coimbra.
2 Edfeldt, C. (2006) Uma história na História, pp19-33; pp 203-208.
3 Bock, Gisela. (1989). História, História das Mulheres, História do Género. Penélope. Fazer e Desfazer História, nº4. 158‑187.
4 Idem
5 Piscitelli, Adriana. (2002). Re-Criando a (categoria) mulher? In: Algranti, Leila Mezan (Org.). A prática feminista e o conceito de gênero. Textos Didáticos, n.º 48. Campinas: IFCH/Unicamp. 7-42.
6 Woolf, V. (1996). Um quarto que seja seu.
7 Idem
8 Perrot, Michelle (2007). Minha História das mulheres. São Paulo: Contexto.
9 Woolf, V. (1996). Um quarto que seja seu.
10 Couto, A.G.(2005) “Da Tolerância e da intolerância na arte e na Literatura: a marginalização da autoria feminina” in Nas Fronteiras da Tolerância. FCSH, pp 27-35.
11 Idem
12 Connell, R.W. (1995), Masculinities (2.ª ed.). University of California Press.
13 Santos, R.; Rolino, T. (2019). EQUI-X, Manual de Promoção de Igualdade de Género e de Masculinidades Não Violentas. Centro de Estudos Sociais. Coimbra.
14 Vale de Almeida, M. (2018). Género, masculinidade e poder: Revendo um caso do sul de Portugal. Anuário Antropológico, 20(1), 161–189. Recuperado de https://periodicos.unb.br/index.php/anuarioantropologico/article/view/6602.
15 Vale de Almeida, M. (1995). Senhores de Si: Uma interpretação antropológica da masculinidade. Etnográfica Press. https://doi.org/10.4000/books.etnograficapress.459.
16 Kaufman, M. (2019). The time has come. Counterpoint.
17 Perista, H. et al. (2016). Os Usos do Tempo de Homens e de Mulheres em Portugal 2016. Policy Brief. Centro de Estudos para a Intervenção Social, CESIS e Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, CITE. http://cite.gov.pt/asstscite/downloads/publics/INUT_livro_digital.pdf
18 Wall, K.; Aboim, S. & Cunha, V. (2010). Conclusões: negociando velhas e novas masculinidades. In Wall, K.; Aboim, S. & Cunha, V. (Coord.). A vida familiar no masculino: negociando velhas e novas masculinidades (pp. 457-471). Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego. http://hdl.handle.net/10451/11154.
19 Casaca, S. F. (Coord). (2021). Projecto EEA GRANTS - Os benefícios sociais e económicos da igualdade salarial entre mulheres e homens: Resultados. https://genderpaygap-elimination.pt/resultados.
20 Flood, M. (2019). Engaging men and boys in violence prevention. Global Masculinities.
21 Kato-Wallace, Jane, Barker, Gary, Eads, Marci and Levtov, Ruti. (2014). Global pathways to men’s caregiving: mixed methods findings from the international men and gender equality survey and the men who care study. Global Public Health, 9(6), 706–22. https://promundoglobal.org/wp-content/uploads/2014/12/Global-Pathways-To-Mens-Caregiving.pdf