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"Sempre que o movimento estudantil é mais radical e massivo, a praxe perde relevância"

Entrevista a João Mineiro, sociólogo e coautor do livro “Desobedecer à Praxe”, sobre a importância do combate à praxe, a relação entre o enaltecimento das chamadas "tradições académicas" e o recuo do movimento estudantil, e o presente momento, em que se reorganizam e constroem alternativas à praxe a diferentes escalas.
João Mineiro no estúdio do Mais Esquerda.

João Mineiro é investigador, sociólogo e coautor, com Bruno Cabral, do livro “Desobedecer à Praxe” (2015, Deriva Editores). Em baixo transcrevemos na íntegra o seu comentário sobre praxes para o programa Mais Esquerda, que pode ser visto aqui (a versão integral está aqui), e a reportagem sobre a receção alternativa dos alunos de primeiro ano sem praxes pode ser vista aqui, com o comentário total.

Porque é que achas que continua a ser importante desobedecer à praxe?

Acho que há pelo menos três grandes motivos para continuarmos a desobedecer à praxe. Por um lado, a praxe continua a ser, na sua essência, como foi no passado, uma prática essencialmente violenta e em que se praticam humilhações e formas de violência simbólica muito acentuadas. Lembremo-nos da declaração do dux da Universidade de Coimbra, que diz que a praxe é ‘machista, é sexista e é hierárquica e, se não for isto, não é praxe’.

Os valores da praxe que são, de alguma forma, incompatíveis quer com os valores que deveríamos ter na Universidade, quer com os valores que deveríamos ter na sociedade

O segundo motivo é que os estudantes quando chegam têm elevados mecanismos de coação e de legitimação destas práticas que faz com que pareça que estas são as únicas alternativas para chegar às instituições de Ensino Superior e serem bem acolhidos, e não é verdade. 

O terceiro motivo que eu e o Bruno Cabral consideramos no nosso livro é que os valores da praxe que são, de alguma forma, incompatíveis quer com os valores que deveríamos ter na Universidade, quer com os valores que deveríamos ter na sociedade. Enquanto que os valores da praxe são, na sua essência, a hierarquia, o respeito ao superior, a autoridade, a obediência, os valores que nós devíamos ter, quer nas Universidades, quer fora delas, seriam os valores da horizontalidade, do companheirismo, da igualdade. Portanto, os valores da praxe, do ponto de vista cultural são, de alguma forma, incompatíveis com os valores da nossa democracia, da liberdade e da igualdade de que tanto nos orgulhamos.

Tu e o Bruno Cabral fazem a relação no vosso livro "Desobedecer à Praxe" entre o ressurgimento da praxe e a diminuição da contestação estudantil, em que se baseiam?

Se analisarmos, só o século XX, para não irmos muito mais longe, a tradição da praxe é tão antiga como a tradição da crítica da praxe. Justamente porque houve um conjunto de momentos históricos, quer a seguir à Primeira República, que no contexto das crises académicas, quer no contexto do 25 de Abril e nos anos 70, em que as práticas de praxe praticamente não existiram ou foram, em muitos casos, totalmente abolidas. O que é que esta relação histórica nos mostra? Que, sempre que os estudantes se abrem ao exterior e sempre que o movimento estudantil é mais radicalizado e tem uma expressão de massas, a praxe perde relevância.

Esse movimento de radicalização e de incidência política e cultural da juventude fez com que a praxe entrasse em desuso, porque ela representava uma sociedade do passado que os estudantes estavam, de alguma forma, a superar.

Aconteceu assim a seguir à Primeira República, quando os estudantes estavam preocupados em construir uma sociedade nova, portanto não podiam estar a reproduzir as práticas conservadoras do passado. Aconteceu assim nos anos 60 quando a juventude se organizava para combater a Guerra Colonial, para combater o autoritarismo do regime, se organizava de forma horizontal em grandes assembleias. E, portanto, esse movimento de radicalização e de incidência política e cultural da juventude fez com que a praxe entrasse em desuso, porque ela representava uma sociedade do passado que os estudantes estavam, de alguma forma, a superar. Isso foi assim também nos anos 70.

A praxe ressurge nos anos 80 e nos anos 90 por mão, em parte, de alguma juventude partidária, em particular a Juventude Social Democrata, que escreve isso no livro da sua história. São eles próprios que admitem que, quando ganham a Associação Académica de Coimbra nos anos 80, têm a preocupação de voltar a ter as tradições académicas. Portanto, acaba com o luto académico que vinha desde 69 e, de alguma forma, recupera as tradições da praxe. Na passagem para os anos 90, com a criação das instituições privadas, a praxe ganha uma nova força, porque estas instituições precisavam de criar um elemento de reforço da sua identidade, e viram na praxe esse elemento.

À medida que o movimento estudantil perde espaço, perde criatividade, irreverência, radicalidade, a praxe ocupa, de alguma forma, esse espaço. Num contexto em que, nos anos 90 e nos anos 2000 os estudantes foram retirados dos órgãos de gestão e a democracia nas instituições é apenas uma miragem. Portanto, esvaziando-se o caráter democrático das instituições e despolitizando-se a juventude, a praxe ganhou um terreno grande para crescer acompanhada, como se sabe, e está documentado, por estratégias partidárias claras.

Nos anos 90 e nos anos 2000 os estudantes foram retirados dos órgãos de gestão e a democracia nas instituições é apenas uma miragem. Esvaziando-se o caráter democrático das instituições e despolitizando-se a juventude, a praxe ganhou um terreno grande para crescer

E em que momento estamos agora?

Agora estamos num momento de refluxo, creio eu. É impossível compararmos o debate hoje com o que era o debate há 4, 5 ou 6 anos atrás.

Hoje nós temos mais estruturas de apoio às vítimas, temos estudantes, eles próprios, a organizarem receções alternativas aos novos alunos baseadas na igualdade e na horizontalidade, temos panfletos em todas as instituições a denunciar o caráter abusivo e violento destas práticas e temos uma sociedade civil muito mais atenta a estes temas.

Este é um caminho, é evidente que há muita coisa por fazer, e acho que há muita coisa por pensar ainda de novo, mas acho que hoje temos de ser otimistas, porque há um movimento que está a crescer de crítica da praxe e de construção de alternativas.

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