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Quem não estiver disposto a falar de capitalismo também não deve falar da pecuária industrial

Livrarmo-nos do especismo e das dinâmicas estruturalmente condicionadas de opressão e exploração dos animais é impossível sem nos livrarmos da superioridade do capital sobre as pessoas. Por Patrik Gažo
O ciclo de vida e morte na pecuária intensiva é uma metáfora para o ciclo de acumulação de capital
O ciclo de vida e morte na pecuária intensiva é uma metáfora para o ciclo de acumulação de capital

É assim que podemos alterar uma citação famosa de um filósofo e um representante da teoria crítica da Escola de Frankfurt, Max Horkheimer, que escreveu em 1939: “Quem não estiver disposto a falar de capitalismo também não deve falar do fascismo.” (Horkheimer 2005). Ele sublinhou que o fascismo não é apenas um desvio aleatório do padrão ou um defeito na aliança que ocorre naturalmente entre democracia liberal e capitalismo. O fascismo está na sombra de uma consequência oculta das contradições da lógica da produção capitalista aguardando pela sua oportunidade. A radicalização de indivíduos e de sociedades inteiras é afetada por muitos fatores, no entanto, estes estão frequentemente relacionados à crise sistémica da acumulação de capital e crescimento económico, que são vitais para a estabilidade do capitalismo.

Tal como Horkheimer, que procurou as causas sistémicas do fascismo, podemos também pensar noutros problemas igualmente sérios no mundo de hoje, tais como as mudanças climáticas ou a chamada “produção animal”, fortemente ligada ao capitalismo. À primeira vista, pode pensar-se que o título deste texto combina dois temas absolutamente diferentes e não relacionados nas nossas vidas. Portanto, vamos clarificar gradualmente a legitimidade dessa reivindicação e esclareceremos o impasse entre capital e pecuária intensiva. Mas, para isso, devemos começar na antiguidade.

Domesticação como profanação

A relação entre humanos e outros animais mudou radicalmente com a domesticação

Segundo muitos arqueólogos e historiadores, o primeiro animal domesticado foi um cão. Alguns autores afirmam que isso aconteceu há 15 mil anos, mas também existem dados que vão muito para além disso. A maneira dominante de obter alimento durante esse período foi a caça e a colheita. Isso mudou durante a era neolítica, há cerca de 10 mil anos. Os humanos passaram gradualmente de caçadores e coletores a agricultores, e foram domesticando ovelhas, cabras, porcos, vacas ou cavalos para alimento, para realizarem trabalho, ou para produção de materiais. No entanto, a relação entre humanos e outros animais mudou radicalmente com a domesticação. Não era apenas o amansar de um animal para um determinado objetivo; pela primeira vez, o animal passou a ser propriedade de uma pessoa que, graças a este poder, começou a controlar os animais, a trocá-los e transformá-los em proveito próprio. Então, as forças evolutivas da natureza foram substituídas por atividades direcionadas pela mão humana, enquanto a humildade para com os outros animais foi-se gradualmente transformando em superioridade (DeMello 2012).

Em geral, existe a crença de que, sem domesticação, a civilização humana não teria um desenvolvimento tão rápido como teve até aos dias de hoje. Os animais foram uma fonte estável de alimento, um meio de transporte e uma ferramenta de trabalho, mas também nossos companheiros próximos e protetores. A combinação desses fatores com outros resultou também no aparecimento dos primeiros centros de troca e cidades-estado (DeMello 2012). Além dos benefícios para a civilização humana, esse desenvolvimento também era supostamente positivo para o reino animal. Esta relação é também denominada como uma cooperação mutualista, benéfica para ambas as espécies, especialmente no caso do gado - os animais trocam a obtenção de segurança e alimento pela sua vida, em condições controladas. No entanto, esta forma de pensamento é consideravelmente “ahistórica” e olha para o passado sob uma certa ideologia. Além disso, é uma história escrita do ponto de vista das pessoas.

 

Com base em sua análise histórica, o sociólogo americano David Nibert descreveu contextos completamente diferentes resultantes dos efeitos da domesticação animal. De acordo com este autor, a ideia de domesticação como cooperação mutualista é muito inadequada. Ele considera as práticas de subjugação associadas à domesticação como um distúrbio profundo na vida dos seres sencientes. Portanto, ele refere-se ao processo de domesticação como um processo de “profanação por domesticação” (“domesecration”). É a “prática sistémica de violência na qual os animais são escravizados e manipulados biologicamente, resultando na sua objetificação, subordinação e opressão. Através desta prática, muitas espécies de animais que já viviam na terra há milhões de anos, incluindo várias espécies de grandes mamíferos da Eurásia, passaram a ser consideradas meros objetos, a sua própria existência reconhecida apenas em relação à sua exploração como “animais para alimentação” ou semelhantes posições, socialmente construídas, refletindo várias formas de exploração” (Nibert 2013).

 

Este rebaixamento, segundo Nibert, também teve um impacto negativo no mundo humano. A implementação do controlo de animais minou a possibilidade de criação de uma sociedade justa e pacífica. De facto, a posição hierárquica e a violência contra os animais foi muitas vezes transformada em violência entre as pessoas. A “desumanização” levada à perfeição em animais foi executada nos humanos em fenómenos como o tráfico de escravos, a colonização ou a estigmatização dos “outros” - mulheres, pessoas de raças diferentes ou possuidoras de deficiência física ou mental. No entanto, não somos capazes de explicar suficientemente a repressão sistemática gradual de pessoas e outros animais sem abordar as relações sociais que levaram à situação. A institucionalização da opressão tem sido frequentemente ligada aos interesses materiais das elites, para os quais o Estado e suas possibilidades repressivas e ideológicas têm sido um bom parceiro.

Os animais, especialmente aqueles que usamos para trabalho e alimentação, nunca estiveram tão bem nas sociedades humanas. Uma história contada do ponto de vista dos animais seria muito diferente do que pode ser encontrado na história escrita por seres humanos. Nessa história imaginária, dois momentos cruciais seriam destacados. O primeiro seria a domesticação como um período de privação da liberdade evolutiva de milhares de espécies animais. O segundo ponto negro nesta história indicaria um período com início por volta dos séculos XVIII e XIX. O seu sofrimento intensificou-se muitas vezes com o desenvolvimento global do modo de produção capitalista.

Capital como morte

Embora a domesticação tenha profanado animais, o capital drenou também o que restava das suas vidas. Como Marx disse: “o capital pinga da cabeça aos pés, por todos os poros, com sangue e sujidade” (Marx 1985). Para o capital existir como capital, ele necessita de crescer constantemente e expandir. O seu objetivo não é dar resposta às necessidades, mas produzir bens para venda no mercado com perspectiva de lucro, independentemente do impacto no meio ambiente e nas vidas das pessoas e dos outros animais. Na lógica do capitalismo de Descartes, um animal na pecuária industrial é apenas uma máquina em máquinas, um corpo irracional, um bem para venda, para consumo e para subsequente lucro. A este processo da chamada mercantilização não escapou nada vivo ou mesmo morto. Animais individuais são simplesmente intercambiáveis por outros pedaços de animais anónimos. O seu valor e importância são determinados por um cálculo económico sem coração.

um animal na pecuária industrial é apenas uma máquina em máquinas, um corpo irracional, um bem para venda, para consumo e para subsequente lucro

Os métodos de produção intensiva de alimentos foram totalmente desenvolvidos no século XX. Foi assim que surgiu um modelo historicamente específico de preparar alimentos. A maioria das pessoas estão afastadas do processo de produção, bem como do contacto direto com as espécies que comem. No entanto, para alcançar a produção mais rápida e económica de “alimentos de origem animal”, é lógico que algo mais será negligenciado e que surgirá uma consequência negativa em algum lado.

Por exemplo, um dos resultados é o crescimento anormalmente rápido de animais graças ao uso de hormonas e antibióticos, além do encurtamento da sua curta vida e limitação de movimentos. Além do ambiente artificial, o controle absoluto é garantido também pela manipulação genética e clonagem dos animais “mais produtivos”. A ideia é manter os custos o mais baixo possível e puxar a produtividade para cima. Este sistema também não pode ser "humanizado" introduzindo práticas para melhorar o bem-estar animal. Os animais ainda são reduzidos a bens e propriedades. Contudo, a pecuária intensiva não afeta apenas a vida dos animais dentro desses edifícios escuros. A indústria animal tem uma participação significativa no aumento de gases de efeito de estufa na atmosfera, contribuindo assim significativamente para as alterações climáticas (FAO 2006). É também assinalável a poluição de águas subterrâneas, para onde vão os excrementos dos animais, bem como o uso intensivo de recursos naturais e muitos outros efeitos adversos na natureza em redor.

Henry Ford inspirou-se num sistema de matadouros em Chicago

Henry Ford inspirou-se num sistema de matadouros em Chicago

Obviamente, a racionalização da produção e automatização na criação e abate de animais também teve impacto nas pessoas que trabalham nas quintas e matadouros. Os trabalhadores estão igualmente sujeitos à maximização da produtividade. Desde o aparecimento dos primeiros pavilhões, os trabalhadores que lá trabalhavam eram na sua maioria imigrantes e de vários grupos socialmente marginalizados, vivendo na miséria e sem a possibilidade de se sindicalizar. Padrões de segurança baixos ou inexistentes, trabalho acelerado com objetos afiados, contacto com animais infetados, o ar cheio de pó e sujidade - tudo isto contribuiu para que o trabalho na indústria do processamento da carne se tornasse um dos trabalhos mais perigosos e mentalmente adversos de sempre. Para muitos será uma surpresa que a linha de desmanche nos matadouros tenha contribuído para a criação das primeiras linhas de montagem. Henry Ford, conhecido por ter inaugurado a produção em massa de carros com redução de custos, inspirou-se num sistema de matadouros em Chicago.

O trabalho foi dividido em secções sequenciais, onde os trabalhadores executavam uma tarefa simples e onde as máquinas ajudavam a levantar os pesados corpos dos animais. Muitas inovações industriais surgiram dos aperfeiçoamentos feitos no abate de animais. O historiador Charles Patterson até defende no seu livro Eternal Treblinka (2003) que estas técnicas, juntamente com a simpatia conhecida de Ford pelo regime nazi, levou indiretamente à morte em massa de judeus. Não foi por acaso que Theodor Adorno, colega de Horkheimer na Escola de Frankfurt, que também tinha raízes judaicas, proferiu a seguinte frase famosa: “Auschwitz começa onde quer que alguém olhe para um matadouro e pense: são apenas animais” (Patterson et al. 2003).

 

A indústria dos laticínios e do processamento de carne é uma das mais poderosas e mais ricas do mundo, e é também fortemente subsidiada pelo Estado

Ao longo da história da humanidade, é inédita a frequência da carne no menu do dia-a-dia da forma como tem sido desde o século XX. Para além dos graves impactos ambientais, isto está diretamente relacionado com o desenvolvimento das chamadas doenças de civilização. Quando nos colocam a questão sobre o motivo de as pessoas comerem tanta carne, somos tentados a responder que é por causa da expansão das quintas e, portanto, da maior acessibilidade à carne. No entanto, a pecuária não surgiu porque houve uma procura inicial de carne, leite e ovos. Bem pelo contrário, as quintas expandiram-se principalmente porque o desenvolvimento dos métodos de produção intensiva permitiu o surgimento da automatização, resultando na geração de enormes lucros para um grupo restrito de pessoas. A indústria dos laticínios e do processamento de carne é uma das mais poderosas e mais ricas do mundo, e é também fortemente subsidiada pelo Estado. Como resultado, existe necessariamente um receio de perder esta posição. Os lucros dos produtores estão fortemente dependentes de as pessoas consumirem o suficiente do que produzem. Os enormes recursos destas empresas são portanto usadas para influenciar os hábitos do consumidor por meio de publicidade e lóbi político1. Eles depois também, direta e indiretamente, financiam a pesquisa e desenvolvimento de métodos para uma exploração economicamente mais eficiente.

 

A antropóloga Barbara Noske focou-se na longa evolução destas relações e procedimentos e introduziu o conceito chamado complexo animal-industrial, mais tarde desenvolvido por Richard Twine (Twine 2012). Eles apontaram a questão do uso dos animais para obtenção de alimentos não como um problema puramente ético, mas como uma parte mais ampla dos mecanismos associados ao capitalismo, que permite a morte em massa e a normalização. A situação atual do gado e de outros animais existe principalmente devido aos interesses financeiros e de poder dos agentes de mercado. Além das explorações pecuárias, agricultores, criadores, e proprietários de matadouros, de restaurantes de fast-food, várias instituições financeiras, lobistas e governos estão envolvidos. Juntos, eles formam um forte rede de interesses pelo aumento do consumo de animais para alimentação. Claro que isso não significa que outros fatores não sejam significativos, mas o princípio da acumulação de capital é unificador e um imperativo orientador em segundo plano.

O ciclo de vida e morte na pecuária intensiva é uma metáfora para o ciclo de acumulação de capital. Uma vaca nasce apenas para criar lucro para o seu dono. Ela é sugada até ao ponto de não criar um valor maior ao custo de manter essa vaca viva. Depois vem a morte. Entretanto, a vaca foi fecundada artificialmente várias vezes e deu origem a outras rodas nesta máquina. Esta é uma realidade diária para milhares de milhões de animais que vai continuar até que a lógica da acumulação de capital seja substituída pelo princípio de atender às necessidades de animais humanos e não-humanos simultaneamente.

 

Destruição/desconstrução como renascimento

A pecuária intensiva não surgiu do nada. A sua história de crueldade está ligada à história da domesticação, ou ao processo de profanação animal, e intensificou-se com o desenvolvimento global dos modos de produção de mercadoria. Nem todos os abusos de animais são uma consequência da pressão do capital, mas as atividades do capital têm sempre efeitos extremos nos animais dentro e fora das quintas. A normalização da nossa relação para com os animais como sendo recursos para as necessidades humanas é, pela sua própria natureza, omnipresente no capitalismo. Este é sem dúvida um grande problema ético mas ao mesmo tempo, apesar das suas causas socioeconómicas, é um problema insolúvel. Contudo, superar o capitalismo por si só não é uma condição suficiente para acabar com a pecuária intensiva. Para além disso, é necessário confrontar a aparente neutralidade e a natureza abrangente da lógica industrial de produzir os produtos necessários para responder às necessidades. Também é importante mudar a nossa relação com a comida. Uma parte essencial desta transformação é o nosso entendimento sobre o papel dos animais no processo revolucionário como parceiros iguais e como testemunhas do poder destrutivo do capital e de seu estado.

A análise do capitalismo aprofunda a compreensão das relações que levaram ao início da pecuária intensiva e refina a crítica da simple frase paternalista até à transformação radical da relação entre humanos e outros animais. É apenas superando a perceção de alienação dos próprios seres humanos e do seu trabalho que as pré-condições sistémicas, para superar a alienação das pessoas em relação à natureza e aos seus outros habitantes, podem ser garantidas. Por outras palavras, livrarmo-nos do especismo e das dinâmicas estruturalmente condicionadas de opressão e exploração dos animais é impossível sem nos livrarmos da superioridade do capital sobre as pessoas. Por isso, insisto na elegibilidade do título que escolhi para este ensaio. Quem não estiver disposto a falar sobre o capitalismo (e superá-lo) também deve ficar quieto sobre a pecuária intensiva. Afinal, até Horkheimer entendeu a emancipação da sociedade como a mudança em relação aos animais também.

Talvez seja mais claro agora o porquê de ter mencionado o impasse entre capital e pecuária intensiva na introdução. Marx falou de capital como trabalho morto, que, tal como um vampiro, vive apenas sugando o trabalho dos vivos. Para viver, o capital tem de parasitar os outros. A destruição/desconstrução da natureza do sistema desta mercantilização da vida é um bom ponto de partida para escrever uma nova crónica da história animal - uma história sem pecuária intensiva. Após a sua profanação e morte, tanto metafórica como real, podia acontecer um renascimento que eliminasse o parasita e restaurasse a vida em todas as dimensões na sociedade planetária global. O sociólogo americano Steven Best chama a esta visão, que entende a relação de diferentes tipos de opressão, uma política de libertação total (Best 2016), a visão do mundo, onde não existe a morte dos proletários de diferentes raças, religiões e espécies animais, é (e por algum tempo, provavelmente permanecerá) uma utopia. Não obstante, penso que tentar alcançar o ideal de libertação total não é em vão.

Artigo de Patrik Gažo*, publicado originalmente em agosto de 2019 no site do Institut Uzkosti.  Tradução para português de Hugo Evangelista para esquerda.net

Bibliografia:

BEST, Steven. Politics of total liberation: revolution for the 21st century. New York: Palgrave Macmillan, 2016. ISBN 978-1-349-50086-4.

DEMELLO, Margo. Animals and society: an introduction to human-animal studies. New York: Columbia University Press, 2012. ISBN 978-0-231-15294-5.

FAO. Livestock’s long shadow [online]. Roma: Food and Agriculture Organization of the United Nations Rome, 2006

HORKHEIMER, Max. The Jews and Europe. In: Eduardo MENDIETA, ed. The Frankfurt

School on religion: key writings by the major thinkers [online]. New York: Routledge, 2005. s. 225–241. ISBN 978-0-415-96696-2.

MARX, Karl. Kapitál. Kritika politickej ekonómie. Prvý zväzok. Bratislava: Nakladateľstvo, Pravda, 1985

NIBERT, David Alan. Animal oppression and human violence: domesecration, capitalism, and global conflict. New York: Columbia University Press. Critical perspectives on animals: theory, culture, science, and law, 2013. ISBN 978-0-231-15188-7.

PATTERSON, Charles, KAPLAN, Lucy Rosen a FAKTOR, Viktor. Věčná Treblinka: ve vztahu ke zvířatům jsme všichni nacisté. Praha: Práh, 2003. ISBN 80-7252-084-9.

TWINE, Richard. Revealing the ‘Animal-Industrial Complex’ – A Concept & Method for Critical Animal Studies?, Journal for Critical Animal Studies, 2012, roč. 10, č. 1, s. 28.

1 A passagem directa dos negócios para a política também não é exceção, como no caso do primeiro-ministro checo e dono da Agrofert, Andrej Babiš.

* Patrik Gažo é estudante de doutoramento no Departamento de Estudos Ambientais na Masarykova Univerzita, Brno, República Checa. A sua investigação centra-se nas contradições e relações entre interesses dos trabalhadores e alterações climáticas.

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