Internacional

"Quase toda a oposição está fora da Nicarágua". Entrevista a Matthias Schindler

14 de outubro 2024 - 10:30

Do sandinismo ao orteguismo, a história da revolução na Nicarágua é, sobretudo, a história da libertação de um povo contra a ditadura e do regresso progressivo ao autoritarismo. Nesta entrevista exclusiva ao Esquerda, Matthias Schindler, que participou no movimento de solidariedade com a Nicarágua durante 40 anos, fala das transformações do regime.

porDaniel Moura Borges

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Matthias Schindler
Matthias Schindler. Fotografia de João Azevedo

A revolução na Nicarágua foi marcada por uma participação civil e política intensa, que marcaram a democracia do país. País não-alinhado com o bloco da NATO ou com o bloco soviético, a Nicarágua teve, de qualquer das formas, de combater a ingerência estadunidense que financiou a organização militar Contra.

Mas o regime foi-se transformando, primeiro com a vitória eleitoral dos liberais, depois com o retorno de Daniel Ortega, que começou a implementar um regime cada vez mais autoritário e que forçou a oposição a fugir do país. 

Matthias Schindler é técnico de construção de máquinas reformado e politógo, que participou no movimento de solidariedade com a Nicarágua durante mais de quarenta anos e esteve por várias vezes no país, incluindo durante a revolução. Em entrevista exclusiva ao Esquerda.net, Matthias explica os processos que levaram à degeneração do regime democrático na Nicarágua e descreve os atuais mecanismos autoritários do regime orteguista.


O Nicarágua tem andado longe da agenda mediática, apesar do crescente autoritarismo do regime. Porquê?

Há muitas coisas importantes e muito graves que acontecem, como a guerra na Ucrânia a guerra em Gaza. Por outro lado, nos anos 80, o Nicarágua foi uma revolução que entusiasmou a esquerda de todo o mundo, porque apareceu um novo modelo de revolução. E agora não há nada disto. A ditadura não é um assunto que aparece muitas vezes nas notícias, porque há ditaduras em todo o mundo.

Mas há mesmo de um escalar da repressão dentro do regime. Estamos a falar de que tipo de medidas?

Estão a chegar a acordos quase diários sobre novas medidas repressivas. A última foi uma lei que ameaça de prisão quem fala contra o regime e quem se pronuncia a favor das sanções. Essa lei não só se aplica a pessoas que vivem na Nicarágua, mas também a pessoas que vivem fora de Nicarágua. Quando eu digo que Ortega e a sua mulher são assassinos e têm de ser sancionados, eu arrisco uma condenação, quando voltar ao Nicarágua. Apesar de agora não me deixarem entrar por razões políticas. Os poucos opositores que ficam na Nicarágua também não se expressam porque a ameaça do orteguismo não só contra a pessoa, mas contra toda a família.

Quando Ortega volta ao poder e começa então a aumentar a repressão, não há um choque com a sociedade nicaraguense?

Quase toda a oposição está fora do país. Os que lá vivem têm medo. Significa que Ortega e Rosário Murillo conseguiram estabelecer um regime tão horroroso que agora já não há nenhum movimento vivo. Isso significa que quando vês agora o país, vais ver um país tranquilo, porque ninguém se expressa. Em 2018 começa a repressão a sério, mas não foi de repente. Foi um processo muito vagaroso, passo a passo, sempre com passos pequenos. O princípio do autoritarismo está alicerçado nos anos 80, na revolução. Foi uma revolução altamente democrática, com uma participação entusiasmante de todo o povo, mas o centro do poder sempre foi a direção da Frente Sandinista. E a esse centro do poder nunca chegou a democracia. E embora isso tenha sido, na altura, um elemento minúsculo da realidade social, foi aumentando cada vez mais.

Mesmo quando a Frente Sandinista perdeu as eleições?

Quando os sandinistas perderam as eleições em 1990, abusaram da sua centralidade para um primeiro passo no enriquecimento da cúpula sandinista. Isto significa que eles negociaram com o novo governo a entrega do poder mas com cedências de riqueza para os sandinistas. E depois, em 1997, chegou ao governo um presidente absolutamente corrupto, Arnoldo Alemán, que acabou por ir para a prisão. Mas antes disso, como ele não tinha condições para governar, fez um pacto com Ortega, no qual dividem o poder, mas Ortega e os amigos recebem qualquer coisa. Em 2006, Ortega chega novamente ao poder através de eleições, mas só depois de uma revisão constitucional que permitia formar governo com menor percentagem dos votos. Aí já tinha entrado num pacto com um reacionário corrupto e mudou a política dele, já não era um “militante revolucionário”, mas um homem religioso que ia governar para todos.

E quando começa a violência?

Começa em 2008. As eleições municipais já eram uma fraude grande com muita violência. Estive lá, vi e falei com as pessoas que participaram nessas eleições. Fizeram ataques físicos mas ainda sem armas. Não mataram, mas já havia grupos de choque e queimaram os carros dos dirigentes da oposição. E a partir daí foram aumentando a violência. E enquanto o preço do petróleo estava alto Ortega tinha o apoio de Chavez, o que lhe possibilitava ter uma política social que ainda tinha algum apoio da população. Mas quando caiu o preço do petróleo, houve um movimento contra Ortega e contra toda a política repressiva. Isto foi em 2018 e a resposta do regime foi atroz. Violência com armas, com franco-atiradores. Mataram mais de 300 pessoas que protestavam na rua.

Ainda sobre repressão, o Nicarágua está usar o mecanismo de classificação de “agente estrangeiro”, que também tem sido usado na Rússia e na Hungria. Em que é que isso se traduz?

A lei na Nicarágua é uma cópia da lei da Rússia. Existe, mas essa lei juridicamente não está dirigida contra a oposição. Diz que qualquer pessoa ou associação que ajude financeiramente alguém na Nicarágua tem de declarar-se como agente estrangeiro e tem de pedir permissão para receber estes fundos. Eu sou o fundador de uma associação de solidariedade com a Nicarágua e temos uma repartição na Nicarágua, reconhecida como associação. E os nossos representantes tinham que ir ao Ministério Público declarar-se como agentes estrangeiros. Eu oponho-me a essa situação. Depois de 40 anos de trabalho de solidariedade não me vou declarar como agente estrangeiro, como um terrorista.

Disseste que a revolução em si teve um modelo único para uma revolução socialista. Porquê?

Porque o primeiro ponto dos princípios do governo revolucionário era pluralismo político. Significa que eles queriam construir uma sociedade com vários partidos políticos e um intercâmbio, uma discussão livre de todas as posições políticas. Foi uma clara divergência do sistema soviético e também do sistema cubano. Foi fundamental e funcionou durante muitos anos. Havia partidos conservadores, liberais, cristãos, socialistas, comunistas e maoistas. Existia durante a revolução um pluralismo político. Um segundo aspeto muito importante, foi a reconciliação do marxismo com o cristianismo. Existia uma participação significativa de cristãos e padres, mesmo na luta armada. Terceiro ponto é a economia mista que rejeitava o sistema petrificado e autoritário, que não funcionou, de mandar na economia de forma militar como acontecia na União Soviética. Economia mista significava que tinham três setores da economia: estatal, privada e corporativa.

Sendo uma revolução de caráter socialista, como é que lidava com um setor privado?

Depois da revolução, era absolutamente claro que o poder real – político, institucional e militar - estava nas mãos da Frente Sandinista. Somoza reprimiu uma parte da oligarquia tradicional e a Frente Sandinista colaborou e teve o apoio de uma parte significante do grande capital de Nicarágua. Porque esse grande capital sofreu muito sobre a repressão de Somoza. Muitos dos dirigentes da Frente Sandinista são filhos da oligarquia e lutaram pela liberdade, mas não queriam reproduzir o modelo capitalista, queriam construir uma sociedade nova. E a revolução precisava da produção do café, a produção de cana de açúcar para a exportação e para a construção do país, para estabelecer um regime social forte na Nicarágua. Então existia uma colaboração mas com o poder político claramente nas mãos da Frente Sandinista.

E no meio disto tudo havia a Contra. Que impacto teve na revolução?

O impacto foi mortal. A Contra tinha como base uma parte da população camponesa que estava um pouco fora do processo da revolução e que estava disposta a aceitar a propaganda anti-comunista dos Estados Unidos. Há camponeses pobres que entraram na Contra, mas sem a organização e o financiamento e abastecimento com armas pelos Estados Unidos da América, estes grupos que estavam insatisfeitos nunca teriam existido assim. A Contra tinha mais ou menos 15.000 pessoas armadas. Mas armas de guerra, armas que vinham dos Estados Unidos. Se aqui em Portugal houvesse um exército de 50.000 pessoas altamente armadas a lutar contra o governo, como se resolveria a situação? A destruição era incrível. A infraestruturas, hospitais, escolas. E isso significava que os sandinistas tinham de dedicar uma parte grande do orçamento ao exército, não tinham que chegasse para a infraestrutura. E depois de 10 anos, o povo estava cansado. Elegeram outro partido para acabar com a guerra.

Então dirias que os sandinistas sacrificaram a revolução pela paz?

Eles fizeram um acordo com a oposição para acabar com a guerra, e a oposição insistiu em eleições. E os sandinistas, um pouco prepotentes e arrogantes, estavam seguros que iam ganhar as eleições com 60% ou 70%. Isso também é expressão de que a cúpula sandinista já se tinha alienado da realidade do país. Eles claro que não queriam perder as eleições, mas porque estavam tão seguros com a sua posição, aceitaram essas eleições e organizaram-nas de maneira exemplar. O resultado foi que a oposição ganhou e os sandinistas aceitaram o papel da oposição.

Mas a ingerência americana é usada para justificar o atual autoritarismo do regime. Como é que se desmente isso?

Nem é um argumento, é uma figura verbal sem significado nenhum. Para que serve a proibição do aborto para defender uma revolução? Para que serve não dar cuidado médico ao próprio irmão de Ortega? É absurdo que tenha que ver com a defesa da revolução. Para que serve oprimir partidos políticos e sindicatos? Não tem sentido nenhum. Não há nenhuma medida repressiva que tenha aumentado a capacidade da revolução para a sua defesa.

A Nicarágua tomou uma posição de não-alinhamento com o bloco americano e com o bloco soviético. Como é que se toma essa decisão no contexto da América do Sul, onde a ingerência americana tem um papel histórico?

Primeiro, a maioria dos países nem pertenciam ao bloco Soviético, nem ao bloco da NATO, mas ao movimento dos países não-alinhados. Cuba também era parte desse movimento e muitos países da África e da Ásia. E isto também tinha uma mensagem política para os Estados Unidos. Era de que ao não ser parte do bloco soviético, não iam ser um perigo para os Estados Unidos. Não iam fazer nenhuma provocação porque estavam no terceiro campo. Nicarágua separou-se do comunismo estalinista e fizeram uma coisa nova. Só depois da revolução, com a falta de apoio internacional, é que começaram a ter relações com a União Soviética através de Fidel Castro.

A revolução sandinista é conhecida pela sua mobilização popular muito forte, das organizações mas também do povo a sair à rua. Que contornos é que teve essa mobilização e como é que se expressou no regime político?

Foi uma mobilização incrível. As pessoas, na sua maioria, estavam a favor da revolução. Trabalhavam, no campo ou na cidade, numa oficina ou na administração, e depois iam às reuniões, faziam o trabalho voluntário, à noite faziam a vigilância. As pessoas estavam em vários organismos, sindicatos, comités de defesa sandinista, nas milícias. Eu acho que a mobilização na Nicarágua, principalmente nos primeiros anos da revolução, só é comparável com a situação aqui em Portugal, durante 1974 e 1975. Estive aqui nessa altura, vi manifestações todos os dias, discussões em todos os partidos, foi uma politização, uma participação pública visível e todos podiam sentir esse entusiasmo de construir o país como realmente queriam.

Daniel Moura Borges
Sobre o/a autor(a)

Daniel Moura Borges

Militante do Bloco de Esquerda.