O Bloco de Esquerda está em crise. Esta é uma constatação óbvia quando observamos os debates internos, que procuram debruçar-se nas razões do enfraquecimento do partido, expresso com maior clareza nos recentes resultados eleitorais, mas que não se limitam a estes; e também nas saídas político-organizativas propostas por vários intervenientes.
Em nossa opinião, a política e a táctica de construção do partido implementadas pela direcção do Bloco são responsáveis pelo seu definhamento social e eleitoral. O Bloco esteve até agora a ser construído essencialmente como um partido eleitoral, baseado em figuras públicas intocáveis e que detinham sempre a última palavra, no qual a democracia interna era bastante restrita para militantes e tendências que criticavam ou se opunham à direcção. As políticas aplicadas ajustavam-se a essa estratégia maior de construir um partido eleitoral de massas. Um partido cada vez mais parlamentar e institucionalizado. Cada vez menos combativo e interventivo.
A implantação no movimento social e a intervenção sindical foram sempre secundarizadas e subordinadas à lógica eleitoral. A mesma lógica enquadrou quase todas as iniciativas políticas do partido. Foi assim no Acordo de Lisboa, em 2007, quando da aliança autárquica entre Bloco e PS; foi assim no apoio a Manuel Alegre, o mesmo candidato do PS no governo. Em ambos os casos, a política de alianças do partido limitou-se ao PS e à sua área de influência, o que compôs um perfil do Bloco, para boa parte do seu potencial eleitorado, como colateral do impopular partido do governo.
Por mais que agora preguem contra aqueles que abertamente defendem que a aproximação ao PS deve constituir a orientação central para o actual período político, na verdade os factos falam por si. O Bloco foi fortemente penalizado em 5 de Junho porque esteve de braço dado, objectiva e politicamente falando, ao lado do governo dos PECs e dos cortes salariais. Quando procuraram mascarar o facto, todos entenderam que era um “truque”. Inclusive a moção de censura e a reunião apressada com o PCP. Um truque e nada mais. Propaganda. como diria Francisco Louçã.
Na verdade, “cada um devia ir na sua bicicleta”, como uma dirigente do Bloco fez questão de reafirmar na convenção bloquista que antecedeu as eleições legislativas. Os resultados de toda esta orientação ficaram à vista. O Bloco reduzido a metade e com uma crise profunda. Não se pode dizer que não foram avisados e em sucessivas Convenções, pelo menos pela nossa sensibilidade que se reflectia nas moções C, apresentadas às três últimas convenções.
Até 2009, os bons resultados eleitorais e o crescimento do Bloco esconderam os problemas que estas opções já traziam para o partido. Os maus resultados das presidenciais e das legislativas, este ano, serviram como um choque de realidade para que esses problemas aflorassem e ficassem visíveis para o conjunto da militância bloquista e a sua área de influência.
O que fazer?
Cresce no interior do partido a exigência de uma convenção antecipada para discutir a situação do Bloco, as alternativas existentes para superar a crise interna e a resposta política aos violentíssimos ataques do governo da direita e da troika aos trabalhadores. Nessa discussão, o recente resultado eleitoral estará necessariamente incluído, mas não será o único nem o principal elemento. O que é preciso clarificar é que partido queremos construir e com que políticas, estando, como é lógico, uma definição estreitamente ligada à outra.
Plenários lotados, em que são apresentados balanços eleitorais, análises de conjuntura e críticas à direcção e à forma como o partido vem sendo construído, demonstram a avidez com que os militantes bloquistas querem discutir e a necessidade de uma convenção antecipada.
É nesse contexto que surgiram duas propostas que procuram, segundo os seus proponentes, resolver alguns problemas do Bloco, nomeadamente aqueles que têm a ver com a falta de democracia interna e a participação da base nas decisões do partido. Vejamos cada uma delas.
“Descorrentizar” o partido
O Fórum Manifesto (Política XXI), liderado por Miguel Portas, apresentou no texto “Em tempos de crise, um novo ciclo para o Bloco de Esquerda”, uma série de propostas políticas e organizativas para retirar o Bloco da crise. Esta corrente defende uma política de alianças que não deve afastar “qualquer um dos sectores do 'povo de esquerda' em nome de proclamações de princípio”, porque não desistiu da construção da “esquerda grande”, por, admite, “difíceis que tenham sido os primeiros ensaios”. Por “povo de esquerda” leia-se PCP e PS. Em relação a este último chega a afirmar que “é do interesse da resistência social que o PS seja, sempre que possível, subtraído ao sequestro a que o governo de direita o sujeita, em nome do Memorando de Entendimento que subscreveu”.
Portanto, trata-se da reedição, com a inclusão do PCP, da mesma política seguida pelo Bloco até agora, de alianças preferenciais com sectores do PS desde que não tão colados à política aplicada pelo ex-primeiro-ministro José Sócrates. Agora que o PS não está mais no governo – mesmo que não faça oposição ao essencial da governação de direita -, supostamente será mais “fácil” defender alianças com esse partido em torno, por exemplo, de um abstracto “Estado Social”.
Mas a proposta central dessa corrente refere-se à direcção. Defende a renovação da equipa dirigente e a extinção das correntes que integram a maioria (PSR, de Francisco Louçã, UDP, de Luís Fazenda, e inclusive a sua, Política XXI): de “forma articulada deveriam dar início a um processo em que os seus activistas se auto-inibem de concertar posições fora dos próprios órgãos do Bloco”. A dissolução dessas correntes seria necessária porque teriam exercido um poder “desproporcionado” que acabou por limitar o exercício da democracia e a renovação de quadros no interior do partido.
Em nossa opinião, é correcta essa crítica, que é também uma auto-crítica. As direcções dessas três correntes dirigiram o partido como uma fracção, sem qualquer inibições e por cima, inclusive, das suas respectivas bases militantes. A Moção C (composta pelo Ruptura/FER, de Gil Garcia) não foi a única vítima da falta de democracia, mas foi a principal. Chegou a ser dito publicamente, em plenária do Bloco em Lisboa, que os seus integrantes não poderiam figurar em lugares elegíveis nas listas eleitorais.
Mas a ausência de democracia interna é apenas uma parte – importante - do problema. A outra não figura no texto divulgado pelo Fórum Manifesto para explicar, por exemplo, porque o Bloco é um partido “com uma base militante demasiadamente reduzida para a sua influência política e social”. Em nenhuma linha desse texto aparece uma crítica à quase ausência de política do Bloco para intervir e se construir no movimento sindical e popular de forma autónoma do PCP; e não há referência alguma ao facto de a militância bloquista actuar quase que exclusivamente ao sabor do calendário eleitoral e das iniciativas da sua bancada parlamentar. Paulatinamente, a base bloquista desinteressou-se de uma militância reduzida praticamente à distribuição de panfletos e a servir de figurante nos comícios eleitorais.
É a ausência de democracia interna e a sua consolidação enquanto partido eleitoral – a par dos equívocos políticos – que explicam o esvaziamento do Bloco. A existência de tendências não impede, pelo contrário, o funcionamento democrático de qualquer partido. No caso específico do Bloco não foram as tendências em si, mas as suas direcções reunidas na Comissão Política que impuseram um funcionamento antidemocrático, em nossa opinião para impedir maiores contestações às suas orientações políticas. Nesse último aspecto nunca houve – e acreditamos que continue a não haver – divergências significativa entre as três correntes maioritárias: as suas direcções convergem e sempre convergiram politicamente no que era essencial: alianças preferenciais com o PS e afastamento total da sua ala esquerda (Ruptura/FER) de tudo o que era relevante para o Bloco.
Acorrentar o partido
Do lado da “outra” parte da maioria do Bloco também há propostas. O “independente”, como gosta de se apresentar, Fernando Rosas propôs, em entrevista ao Diário de Notícias, a 9 de Julho a formação de “uma nova grande corrente maioritária”. “Proponho que todos os militantes que se revêem na linha política que saiu da última convenção”, disse ele, “se juntem numa nova grande corrente maioritária e que as tendências que reflectem filiações passadas se apaguem. Não estou a fazer um discurso contra o direito de tendência que respeito, mas a tentar juntar uma grande maioria que abarque toda a gente quer faça parte de uma tendência ou seja independente, para que todos participem na discussão e na decisão. O debate interno deve trabalhar para essa unidade, para juntar as forças todas contra a tempestade económica e social que aí vem.”
Essa proposta é bastante semelhante à formulada na Resolução Política da UDP de 17 de Junho, publicada no seu site: “A criação da tendência maioritária é mais um passo no reforço das bases do Bloco de Esquerda. A tendência maioritária solidificará no BE a participação dos activistas da maioria política, criando novos espaços de responsabilização e debate política. Este será o espaço da renovação quadro dirigente BE, superando as lógicas de correntes na definição de direcções”.
Em síntese, a outra ala da direcção do Bloco quer aprofundar a falta de democracia no partido criando uma espécie de “Bloco paralelo”, em que os adeptos do “pensamento único” exercitariam a “sua” democracia, deixando de fora todos os que não concordassem com eles. E quem seriam esses infiéis impedidos de compartilhar com os eleitos o poder de discussão e decisão? A resolução da UDP esclarece: as oposições à maioria do Bloco, isto é, os “grilos falantes” do PS e os que querem “subjugar” o Bloco ao PCP. Independentemente do (pouco) valor desses rótulos, é possível, pela prática de ouvir calúnias e ofensas constantemente provenientes dessa ala da maioria, reconhecer a quem se referem. Os “grilos falantes” serão os da Política XXI. Os outros, a ala esquerda do BE, os de sempre – a Ruptura/FER e seus aliados.
Esta proposta só demonstra a arrogância – e o espírito suicida – de quem as formula. Diante do fracasso eleitoral e do legítimo questionamento da base bloquista, esse sector nega-se a ouvir a base e renuncia à democracia. Em vez de tentar clarificar o debate – através de uma nova convenção -, fecha-se cada vez mais para expurgar todos os que pensam diferente, na tentativa de evitar contaminações. Procura blindar uma maioria que já está, ela própria, minada pela desconfiança e pela vontade de discutir sem tabus o que está errado com o Bloco de Esquerda.
Reafirmamos a necessidade da realização de uma convenção nacional extraordinária ou antecipada, no máximo até ao primeiro trimestre de 2012, para discutir de forma democrática e sem sectarismos a situação do Bloco e a resposta que deve dar aos ataques da direita e da troika.