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Porque é que há uma revolta no Senegal?

O país tem vindo a ser sacudido por uma onda de protestos. Cresce um discurso anticolonial e contra o sistema político, mas que se combina com dirigentes acusados de crimes graves. Por Julieta Bugacoff e Federico Muiña.
Manifestantes no Senegal. Foto NUSO.
Manifestantes no Senegal. Foto NUSO.

Desde que conseguiu a sua independência, em 1960, o Senegal possui uma tradição democrática ininterrupta: 14 eleições, entre presidenciais e parlamentares, quatro presidentes, duas primeiras-ministras, nenhum golpe de Estado e quase todos os instrumentos internacionais de direitos humanos assinados e ratificados.

É a primeira vez que um discurso anti-Françafrique – a continuação dos vínculos diplomáticos, comerciais, culturais e linguísticos com França – e anticolonialista penetra tão profundamente na população. A detenção de Ousmane Sonko, o líder do partido da oposição, Patriotas do Senegal pelo Trabalho, a Ética e a Fraternidade (PASTEF) gerou uma onda massiva de protestos durante uma semana e tornou evidente a fragilidade do governo e a perda de populariade do presidente Macky Sall. O saldo dos protestos foi sete mortos e 240 feridos. Depois de ter sido libertado “sob controlo jurídico” devido à acusação de violar uma massagista, o deputado de 46 anos e único opositor com importância eleitoral, convocou a manutenção das mobilizações “de forma pacífica”.

Os vestígios da herança colonial no Senegal são claros e mantêm-se até hoje: o idioma oficial é o francês, a educação é feita nesta língua, a imprensa escrita e na sua maioria a falada também e a moeda nacional é o Franco de África Ocidental (CFA). Ainda que a língua nacional seja o wolof, a Constituição explicita que, para aceder à presidência, um dos requisitos é conseguir falar francês de forma fluente. Tendo em conta que a taxa de escolarização do nível secundário não supera os 28%, a imposição do francês como condição para aceder a cargos públicos implica que grande parte da população – a que pertence às classes populares – carece de uma representação equitativa.

A história do Senegal rompe com os paradigmas e os estereótipos das ex-colónias francesas. Em 1960, declarou a sua independência com a figura do poeta e político Léopold Sédar Senghor como líder e principal dirigente do país por mais de vinte anos. Foi um dos poucos processos de independência em que não houve derramamento de sangue nem confrontos. É importante lembrar que, nesse mesmo ano, na Argélia, Frantz Fanon publicava Os Condenados da Terra, cujo primeiro capítulo acentua a necessidade de responder com violência à ocupação francesa.

Por outro lado, não houve um único golpe de Estado, com exceção de uma tentativa falhada no início da primeira presidência de Senghor. E, apesar de 90% da população praticar o islamismo sunita, a Constituição explicita que se trata de um país laico.

O Partido Socialista Senegalês dominou a cena política do país durante quarenta anos. Em 2000 produziu-se uma mudança de hegemonia com a chegada ao poder do até então opositor Abdoulaye Wade, pertencente ao Partido Democrático Senegalês. Desde o início do século XXI, o país africano virou progressivamente para um liberalismo económico, próprio dos dois governos de Wade e dos dois de Macky Sall, o atual presidente, que chegou ao poder com a proteção de Wade como primeiro-ministro entre 2004 e 2007 e a seguir formando a Aliança para a República, com a qual obteve a presidência.

Nesse sentido, a figura de Ousmane Sonko é um catalizador de toda uma série de problemáticas que afligem a população senegalesa desde há vinte anos. À já mencionada falta de escolarização na educação secundária e universitária, somam-se as taxas de desemprego que rondam os 7% e mais de 50% da população a viver abaixo do patamar da pobreza.

No Senegal descobriram-se jazidas de petróleo e gás nos últimos anos, há uma inflação muito baixa e espera-se que os seus índices económicos cresçam devido à multiplicidade de recursos que o país possui. Contudo, muitos senegaleses – homens na sua maioria – decidem emigrar para a Europa ou América Latina como consequência da falta de oportunidades de trabalho. Segundo os dados das Nações Unidas, o Senegal tem 693.000 emigrantes.

Ao contrário de Sall, o currículo político de Sonko não se enquadra nos cânones da política senegalesa tradicional – militar num partido e ir escalando posições até, por exemplo, ser primeiro-ministro e depois Presidente – mas conjuga uma família de origem humilde, uma pessoa trabalhadora e um self-made man que cativa os seus seguidores, em grande medida jovens, ainda que também haja adultos desencantados com a casta política que classificam como mafiosa. Estudou direito, foi inspetor fiscal, fundo o PASTEF em 2014 e, em meados de 2016, começou a sua carreira política. Obteve um lugar na Assembleia Nacional (o Senegal tem um sistema parlamentar unicameral desde 2012) em começos de 2017 e partir daí começou a acusar as manobras de corrupção do presidente e do seu irmão Aliou por beneficiar a Petro Tim, a empresa de exploração de hidrocarbonetos do magnata romeno Frank Timiș, e por favorecer vários funcionários do Estado com esses contratos. De facto, em 2017, e antes de ganhar o lugar na Assembleia, Sonko publicou o seu livro Petróleo e gás no Senegal, no qual denuncia todas estas manobras.

Nas eleições de 2019 – com a maior percentagem de eleitores da história do país, 66% - Sall obteve um segundo mandato e ganhou com 58% dos votos. Em segundo lugar, o ex-primeiro-ministro Idrissa Seck (do Partido Democrático) obteve 20% dos votos e, em poucos meses, Seck juntou-se à coligação de Sall. Em terceiro lugar, com quase 16% dos votos, ficou Sonko. Cabe destacar que, ao contrário das eleições de 2012, em que um saliente Wade enfrentava uma crise institucional devido às suas intenções de poder aceder a um terceiro mandato e com protestos que deixaram vários feridos e mortos, a única controvérsia dos comícios de há dois anos foi que sete candidatos foram descartados pelas autoridades eleitorais por estarem acusados de desvio de fundos.

Há onze anos, Sall conseguiu algo que parecia impossível: passou de ter 26% na primeira volta para ter mais de 65% na segunda. Hoje, dois anos depois de renovar o mandato com uma percentagem esmagadora, enfrenta uma crise institucional gerada por um outsider da classe política senegalesa.

Durante a campanha eleitoral de 2019, os comícios de Sonko foram os mais numerosos e com maior presença de jovens. Eliminar o CFA, moeda que o Senegal compartilha com outros sete países que são ex-colónias de França; renegociar contratos com empresas estrangeiras; descentralizar o país; gerar contratos e favorecer empresas nacionais; e sobretudo criar emprego (em 2019, 40% da população ativa estava desempregada), foram algumas das suas promessas. É importante lembrar que a moeda senegalesa mantém no nome “África Ocidental”, termo que se utilizava para se referir às colónias africanas de França durante a primeira metade do século XX.

Apesar das suas diferenças, pode-se traçar um paralelismo entre Sonko e Sall: ambos representavam a rutura com a política tradicional e a forma de fazer política da primeira vez que se candidatavam, uma vez que Sall, distanciado do Partido Democrático de Wade nos comícios de 2012, começou a denunciar manobras fraudulentas do seu mentor, separou-se do seu antigo partido e forma a sua própria Aliança para a República. E, apesar de ter um vincado discurso anticolonial, anti-establishment, de nacionalização da produção e de criação de emprego – que muitos poderiam classificar como populista – Sonko tentou realizar um acordo eleitoral com o idoso ex-presidente Wade. Contudo, foi este quem se encarregou de o enterrar.

No processo eleitoral de há dois anos, o líder do PASTEF viu-se envolvido no que os seus partidários denunciam como operações de fake news. Primeiro, tentaram demonstrar que o financiamento da sua campanha vinha de “lugares indecentes e estranhos”, sem dar nenhuma especificação. Depois, que o ex-inspetor fiscal queria instalar uma teocracia islâmica e que era um islamita radical ligado ao Estado Islâmico. Malick Ndiaye, chefe de comunicação do PASTEF, foi a pessoa encarregue de desmentir todas as acusações, o que mostrava o incómodo que geravam Sonko, os seus seguidores e o novo partido.

Segundo os seus partidários, os seus homens de confiança e, claro, ele próprio, a acusação de ter violado uma massagista numa casa de massagens em que era cliente habitual devido a “problemas de saúde”, parece ir pelo mesmo caminho que as fake news mencionadas antes. Sonko acusa o governo de “fomentar uma conspiração” para deixá-lo sem possibilidade de apresentar-se às eleições de 2024 nas quais, se se cumprir o estabelecido na política senegalesa – crescimento de votos, possibilidade de forçar a uma segunda volta tendo ficado em segundo e ganhar – poderia chegar à presidência.

Mesmo que as conjeturas de que Sall queira rever a Constituição para se poder candidatar a um terceiro mandatos estejam corretas, poderia acontecer uma situação semelhante à de 2012.

A acusação é, contudo, suficientemente grave para não a descartar com ligeireza. Não houve nenhuma manifestação a favor da liberdade de Sonko – o que finalmente conseguiu – sem uma boa quantidade de mulheres que erguiam a sua voz contra o silenciamento e as acusações de falsidade da denúncia.

Algumas asseguraram que agora passará a ser mais difícil denunciar, uma vez que num caso como de um político, os seus militantes e seguidores negarão as acusações e politizarão o assunto. A militante feminista Aissatou Baldé assegurou que a mulher que denunciou o caso “foi linchada pela sociedade”, numa referência clara aos manifestantes que apenas viram na detenção de Sonko uma jogada política para afastá-lo da corrida eleitoral.

A detenção de Sonko aconteceu a 3 de março, quando o poder judicial lhe deu ordem para apresentar-se para prestar declarações. Dias antes, o líder do PASTEF tinha dito que não o faria porque não confiava na “máfia judicial” do Senegal. Apesar disso, e aconselhado em grande medida pelo seu líder espiritual, decidiu ir, mas fê-lo acompanhado pelos seguidores numa caravana gigantesca. Para o governo e para as autoridades, isto foi tomado como uma provocação, uma potencial alteração da ordem pública e uma convocatória para a desobediência civil. Por esse motivo – e não pelo que o levou a prestar declarações – é que foi detido.

Desde que foi encarcerado até que foi libertado “sob controlo judicial” a de março (o que implica que não pode falar com a imprensa sobre este processo judicial e tem que provar uma vez por mês que continua a viver no país), os manifestantes ocuparam as ruas de Dakar, saquearam supermercados franceses, atacaram canais de televisão franceses e enfrentaram a polícia para pedir a liberdade do seu líder.

Na campanha nas redes sociais e nos dois meios nos quais o idioma escrito e falado é o wolof (Walf TV e Sen TV) podiam observar-se lemas como #FreeSenegal ou faixas a convocar a desobediência civil. O que o governo temia e tentou evitar, converteu-se em realidade. Durante a semana de protestos morreram sete pessoas – ainda que diversas organizações sociais e o próprio PASTEF denunciem que esse número é mais próximo de 15 – e houve mais de 240 feridos.

No livro Dramas sociais e metáforas rituais, Victor Turner desenvolveu o conceito de “drama social”. O termo apoiava-se, pelo menos em parte, nas suas observações num trabalho de campo realizado em África durante o processo de descolonização. O texto do antropólogo escocês afirma que os “dramas sociais” são unidades de processos harmónicos ou não harmónicos que surgem em situações de conflito e se dividem em quatro etapas. Em primeiro lugar, ocorre uma quebra nas relações sociais normais e governadas por normas entre pessoas ou grupos dentro de um mesmo sistema de relações sociais. Depois, há uma fase de crise crescente na qual – a menos que a quebra possa ser isolada numa zona determinada – os questionamentos tendem a expandir-se até ser coextensiva com alguma instituição dominante. Em terceiro lugar, ocorre uma ação de desagravo na qual – para limitar a extensão da crise – os membros dirigentes colocam em marcha determinados mecanismos de ajuste e de reparação. Por último, produz-se uma reintegração do grupo social perturbado ou o reconhecimento social e a legitimação de uma lacuna irreconciliável entre as partes em disputa.

Tendo a conta a tipificação elaborada por Turner, é possível afirmar que o governo presidido por Macky Sall encontra-se na terceira fase. Por sua vez, Ousmane Sonko é a figura que condensa uma série de dramas sociais. Alguns, como o desemprego e o destino da produção de hidrocarbonetos, dizem respeito apenas ao Senegal, enquanto que outro, em particular a continuidade da Françafrique, são partilhados com o resto do continente. Seguindo este raciocínio, se o esquema colocado por Turner se cumprir, num futuro próximo, o poder executivo do Senegal ver-se-á perante uma cruzilhada: reprimir e censurar Sonko, o PASTEF e os seus apoiantes, ou reconhecê-los como sujeitos políticos e enfrentar uma lacuna irreconciliável nas eleições de 2024, defendendo a transparência do processo eleitoral. Por agora, o governo parece ter optado pela segunda opção.


Julieta Bugacoff é mestranda em Jornalismo Documental na Universidad Nacional de Tres de Febrero, na Argentina, e publica em órgãos de comunicação social como o Página/12, Infobae e AWID. Federico Muiña é jornalista e publica em órgãos de comunicação social como El Cohete a la Luna, Sudestada e Tiempo Argentino. Investiga a comunidade senegalesa da Argentina.

Texto publicado na Revista Nueva Sociedad. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.

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