O Peru viveu na terça-feira uma crise política e institucional profunda, com dois presidentes reivindicando o poder e um Parlamento que para uns fora dissolvido, mas para outros permanecia em funções. Estes últimos, a maioria parlamentar, recusavam-se a sair da sede do Congresso; mas uma manifestação popular cercava o edifício e exigia a sua dissolução.
Esta situação de confronto das instituições acabou com a renúncia da presidente “eleita” pelo Congresso. O seu “mandato” durou apenas um dia. Mas a crise política do país está longe de resolvida.
O pano de fundo de toda esta confusão é a situação criada nas eleições de 2016 que tiveram resultados contraditórios: para a Presidência foi eleito o empresário e banqueiro Pedro Pablo Kuczynski, que derrotou Keiko Fujimori, na segunda volta, pela margem mínima de 40 mil votos. Mas no Parlamento, o partido fujimorista, Fuerza Popular, (que, apesar do nome ,é de direita) e seus aliados conseguiram maioria.
Lava Jato no Peru
Para complicar mais, as investigações da Operação Lava Jato no Brasil puseram em evidência um ramo peruano da corrupção praticada pela empresa de construção brasileira Odebrecht. As malhas desta rede de corrupção atingiram tanto o governo quanto a oposição de direita: levaram à renúncia do presidente Kuczynski, em março de 2018, acusado de lavagem de dinheiro e de receber luvas da Odebrecht, assumindo o seu vice, o atual presidente Martín Vizcarra. Mas Keiko Fujimori também foi acusada de ter recebido financiamento da Odebrecht à sua campanha, acusação que se estendeu a quatro ex-presidentes do Peru, um dos quais, Alán Garcia, se suicidou antes de ser preso.
Atualmente, Keiko Fujimori está em prisão preventiva. Assinale-se que Keiko é filha de Alberto Fujimori, que presidiu o Peru entre 1990 e 2000. Fujimori está preso, condenado a 25 anos de cadeia por atentados aos direitos humanos (entre os quais a responsabilidade direta pelo sequestro e assassinato de opositores) na sua Presidência, e por corrupção.
Entre suspensões e dissoluções
A crise desta semana explodiu na segunda-feira, quando os fujimoristas e aliados, valendo-se da maioria do Congresso, tentaram nomear um juiz para o Tribunal Constitucional que mudaria a seu favor a relação de forças no próprio tribunal.
Para impedi-los, o presidente Martín Vizcarra dissolveu o Congresso e convocou eleições parlamentares (e não presidenciais) para janeiro. O Congresso não aceitou a dissolução, acusou o presidente de golpe de Estado, aprovou a sua suspensão por um ano, e nomeou presidente provisória, já na noite de segunda-feira, a vice-presidente Mercedes Aráoz.
O presidente Vizcarra, porém, demonstrou ter ao seu lado as Forças Armadas e os governadores das províncias, além de contar com o apoio de manifestantes a seu favor que cercaram o congresso. Assim, na noite de terça-feira, a presidente provisória renunciou, admitindo que “hoje em dia boa parte do Peru odeia-me.”
Entretanto, Vizcarra aproveitou para remodelar o seu governo, nomeando um novo primeiro-ministro e mantendo apenas sete dos anteriores ministros. A nomeação da jovem economista de 34 anos María Antonieta Alva está a ser vista como uma reafirmação da política neoliberal do governo.
Por seu lado, os fujimoristas jogam agora a carta da batalha judicial no Tribunal Constitucional para anular a dissolução do Congresso. A verdade é que dos dois lados parece ter havido alguma interpretação particular dos mecanismos constitucionais, mas é pouco provável que o TC reverta a decisão de Vizcarra.
À esquerda
À esquerda, o Movimento Novo Peru e a Frente Ampla participaram nas manifestações de apoio à decisão de dissolver o Congresso e convocar novas eleições. Para Verónika Mendoza, líder do Novo Peru, a dissolução foi o primeiro passo para a recuperação das instituições e da democracia: “Estamos celebrando esta vitória que nos custou organização e mobilização ao longo dos anos”, disse, acrescentando que a “mafia política” (o fujimorismo) vai “entrincheirar-se para defender os seus currais e a sua imunidade” e chamou a um grande bloco para impulsionar um processo de transição democrática e “recuperar o Estado para pô-lo ao serviço do povo”.