Obituário

Pepe Mujica (1935-2025): o guerreiro que gastou a vida a lutar pela igualdade

13 de maio 2025 - 21:00

Foi guerrilheiro dos tupamaros, passou uma década preso em regime de solitária e tornou-se Presidente do Uruguai e uma das referências da esquerda. Feroz crítico da sociedade de consumo e do “deus mercado”, José Mujica defendia que “a única coisa que não se pode comprar é a vida, a vida é para gastar”.

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Pepe Mujica
Pepe Mujica em 2012. Foto Presidência do Uruguai.

O ex-Presidente do Uruguai faleceu esta terça-feira aos 89 anos, após um ano de luta contra um cancro no esófago. Em janeiro, tinha anunciado que o seu estado de saúde se agravara e que não iria fazer mais tratamentos por também ser portador de uma doença auto-imune. "Estou a morrer. Só quero que não me peçam mais entrevistas, nem mais nada. Acabou o meu ciclo. Um guerreiro tem direito ao seu descanso”, afirmou a um semanário do seu país. Agora, foi o presidente que José "Pepe" Mujica ainda ajudou a eleger em novembro passado, Yamandú Orsi, a anunciar a notícia do seu óbito nas redes sociais: "É com profundo pesar que comunicamos o falecimento do nosso camarada Pepe Mujica. Presidente, militante, dirigente e líder. Vamos sentir muito a tua falta, Velho querido. Obrigado por tudo o que nos deste e pelo teu profundo amor pelo teu povo".

Descendente de imigrantes bascos por via paterna e italianos por via materna, José Mujica nasceu em maio de 1935 em Montevideo. Perdeu o pai aos seis anos e os estudos após o liceu ficaram-se pela preparação para o curso de direito que não chegou a concluir. Sobrava tempo para o ciclismo, tendo corrido por vários clubes e conhecido boa parte do país na companhia dos amigos do bairro onde nasceu e cresceu e perto do qual viveu com a companheira Lucía Topolansky, também ela ex-guerrilheira dos Tupamaros que se tornou autarca de Montevideo, senadora e por essa via vice-presidente do país em 2017, substituindo o titular que renunciou ao cargo.

Da resistência armada aos catorze anos na prisão

A política corria no sangue da família de Mujica, com um avô materno autarca e um tio nacionalista e peronista. Mujica aproxima-se de Enrique Erro, que foi ministro do Trabalho do Partido Nacional em 1958, antes de ambos saírem para fundar a União Popular numa aliança com os socialistas em 1962. Dois anos mais tarde, Mujica junta-se ao Movimento de Libertação Nacional - Tupamaros, uma união de grupos dispersos da esquerda uruguaia em resposta a ataques da extrema-direita e que se organiza enquanto grupo guerrilheiro inspirado na Revolução cubana. O aumento da violência e da repressão leva Mujica para a clandestinidade. Nessas duas décadas de resistência armada foi atingido seis vezes por balas em confrontos, foi preso quatro vezes e fugiu duas vezes da prisão, onde passou ao todo catorze anos, treze dos quais na última detenção entre 1972 e 1985, quase todos em regime de solitária. Mujica foi um dos dirigentes tupamaros que o regime selecionou como seus “reféns”, ao prometer executá-los caso o grupo voltasse a atacar.

Com o regresso à democracia e a lei da amnistia, Mujica é libertado em 1985 e retoma a atividade política, com alguns dos companheiros dos tupamaros e outros grupos, criando o Movimento de Participação Popular (MPP), uma fação da Frente Ampla. Em 1994 é eleito deputado por Montevideo e em 1999 senador, com as eleições de 2004 a darem uma enorme votação ao MPP, que se consolida como a primeira força dentro da Frente Ampla. Graças a essa vitória eleitoral, entra no Governo como ministro da Agricultura. Mais do que as suas medidas nessa pasta, é o seu estilo franco e fora do comum na política uruguaia que atrai as atenções e o torna num importante protagonista político. Quatro anos depois regressa ao Senado e a possibilidade de uma candidatura presidencial passa a ser tema constante do comentário político. Em 2009 vence facilmente as primárias na Frente Ampla e a primeira volta das presidenciais, obtendo 54,6% na segunda volta contra o ex-Presidente uruguaio entre 1990 e 1995, Luis Alberto Lacalle.

O mandato progressista na Presidência

José “Pepe” Mujica presidiu ao Uruguai entre 2010 e 2015, num mandato em que deixou a sua marca progressista, com a descriminalização do aborto, a aprovação do casamento homossexual ou a legalização da canábis num modelo único no mundo, em que o Estado concessiona a produção e regula o consumo através de um registo obrigatório dos consumidores.

“Reconhecemos o matrimónio igualitário porque acontece em todo mundo e é estúpido não reconhecê-lo. Tratamos de combater o narcotráfico pela via da regulamentação do mercado, não que estejamos de acordo com o consumo de droga. Porém, pior que a canábis, é o narcotráfico... Esse critério, tratamos de abrigar em todas as políticas, reconhecer a realidade, por mais que não agrade, porque reconhecê-la é tratar de retirar os efeitos negativos que aquela realidade pode ter. Olhe, isso nem é de esquerda, isso deveria ser o senso comum”, afirmou Mujica em entrevista no final do mandato.

Manteve em traços gerais a política económica seguida pelo antecessor Tabaré Vásquez, que aumentou o salário mínimo e diminuiu o desemprego. A Confederação Sindical Internacional apontou o Uruguai como o país mais avançado na América Latina no respeito pelos direitos fundamentais do trabalho. O governo definiu como objetivo principal a redução da pobreza, lançando um ambicioso plano de habitação para famílias pobres com participação dos habitantes e financiado com contribuições de empresas privadas.  Após a passagem pela Presidência foi ainda senador, chegando a presidir à Câmara de Senadores até se afastar definitivamente dos cargos políticos em 2020, durante a pandemia.

Mas para além das iniciativas políticas, talvez a maior marca deixada por Mujica e que o tornou uma referência no mundo tenha a forma como aplicou a sua filosofia de vida ao exercício do cargo, recusando-se a trocar a sua quinta num bairro rural de Montevideo, onde cultivava flores, pelo palácio presidencial e doando 90% do salário a organizações não-governamentais.

“Passei dez anos na solitária, estive sete anos sem ler um livro e tive muito tempo para pensar. E descobri isto: ou consegues ser feliz com pouco, com pouca bagagem, porque a felicidade está dentro de ti, ou não o consegues com nada. Isto não é uma apologia da pobreza, é uma apologia da sobriedade”, resumia Mujica no documentário Human.

Pela felicidade e contra o “Deus Mercado”

No plano da política externa, enquanto Presidente do Uruguai manteve relações de proximidade com os chefes de Estado da esquerda na América Latina e aproveitou os discursos na Assembleia Geral da ONU para criticar o sistema capitalista.

“Temos sacrificado os velhos deuses imateriais, e ocupamos o templo com o Deus Mercado. Ele organiza a economia, a política, os hábitos, a vida e até mesmo nos financia em parcelas e cartões, a aparência de felicidade. Parece que nascemos só para consumir e consumir e, quando não podemos, há a frustração, a pobreza e a autoexclusão”, afirmou no discurso em Nova Iorque em 2013.

Essa crítica à sociedade consumista, “em que a economia tem de crescer porque senão é uma tragédia”, era acompanhada de outra reflexão: “Quando compramos alguma coisa não pagamos com dinheiro, pagamos com o tempo de vida que tivemos de gastar para conseguir esse dinheiro. Mas há um detalhe: a única coisa que não se pode comprar é a vida, a vida é para gastar. E é lamentável gastar a vida para perder a liberdade”.

Sobre a importância da utopia no seu trajeto político, Pepe Mujica fazia questão de sublinhar que ela nunca pode ser desligada das lutas concretas. Para ele, “a utopia é um caminho. É como uma luz no horizonte que nos ajuda a percorrer esse caminho, e eu diria: que caminho longo... Porém, é um caminho a ser feito. Não podemos nos esquecer dela, mas a vida concreta não é utopia, é luta. Não devemos substituir a luta tendo como consolo ser fiéis à utopia, porque, senão, acabamos por ser charlatães”.