A Paz nas mãos dos povos

04 de julho 2022 - 13:42

A Mesa Nacional do Bloco de Esquerda aprovou este domingo uma resolução temática sobre as questões da paz e da segurança na Europa e no mundo no atual contexto. Leia aqui o texto da resolução.

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Foto de Paulete Matos

1- Desde a sua fundação, em 1999, que o Bloco de Esquerda rejeita a proposta de inclusão da Federação Russa num sistema de segurança coletiva na Europa. Essa intenção percorreu quase todos os partidos europeus à esquerda da social-democracia. Foi consagrada em muitas resoluções de partidos e também no Partido da Esquerda Europeia. Neste caso, com o voto contrário do Bloco. A que se deveu a objeção do Bloco? À perceção de que a Federação Russa tornou a democracia numa caricatura e queria jogar fortemente um papel imperialista como potência atrasada na disputa territorial, rica em matérias primas mas débil na economia de tecnologias avançadas. Para o Bloco de Esquerda, não era compreensível propor aos povos um sistema de segurança que excluía, e bem, os Estados Unidos da América mas se abriria a outro foco de militarismo e expansão. Na atual agressão imperialista à Ucrânia, Putin repete o padrão de barbárie que já tinha praticado na Chechénia, logo na viragem do século.

2 - A incompreensão da natureza imperialista da nova Rússia oligárquica enviesou a política de muitos setores de esquerda. Importa hoje que não se cometa a mesma perda de foco em relação à natureza imperialista da República Popular da China, mesmo que a própria se reclame socialista, ironia com que se cobre a segunda economia capitalista do planeta. O facto de os EUA estarem a tornar a China no inimigo principal do seu poderio económico e militar não torna defensável  o regime de partido único militarizado que domina a República Popular da China, um poder se projeta em ambição económica sobre vários continentes e que toma a "reunificação chinesa" como pretexto para a ameaça militar. Tal como no tempo da Guerra Fria, o sentido da liberdade dos povos não pode combater uma superpotência apoiando outra.

NATO: aliança agressiva no centro da estratégia imperialista de Washington

3 -  Sob a presidência de Joseph Biden, os EUA reassumiram a NATO. Esta organização político-militar atravessava uma crise de existência. Donald Trump considerava a NATO um fardo para os EUA e defendia a lógica unilateral de confrontações ou entendimentos diretos com as outras grandes potências. O "regresso" da NATO foi aclamado como multilateralismo, embora seja uma visão centrada na Europa e que exclui grande parte do mundo. Biden politizou a nova missão da NATO, que vai além do “combater o terrorismo”, como se proclamava desde a queda da URSS. Agora desfralda-se a bandeira da democracia contra as autocracias. Essa demagogia cai por terra quando entre os seus membros e aliados se contam pavorosas autocracias. Nada de novo, ou não tivesse o fascista Salazar sido chamado à fundação da aliança. O objetivo é outro: formular um argumento político para a confrontação com a China e, secundariamente, com a Rússia. Não é possível aceitar uma ordem internacional em que o polícia do mundo pretende mudar os regimes de outros estados. Sabemos em Portugal que a democracia é um objetivo dos povos que implica longas lutas, avanços e recuos, e que nunca cai do céu em obuses. Nenhuma das tragédias do Médio Oriente e do Norte de África dos últimos vinte anos fez crescer democracias em lado nenhum, apesar das mortíferas invasões. Somos solidários com as oposições democráticas aos regimes da República Popular da China e da Federação Russa, por muito heterogéneas que sejam. Pelo contrário, acenar com uma guerra nuclear não é uma via para a democracia, mas apenas para formas de controlo geopolítico e de vantagem económica e tecnológica.

O reconhecimento mútuo e o relacionamento pacífico, consagrados na Carta das Nações, são a via política alternativa à da NATO. Basta o risco de retorno da extrema-direita ao poder na Casa Branca para fazer a Europa refletir sobre as fraquezas das democracias e das suas intermitências, quer na potência americana, quer em vários estados europeus. Biden deveria preocupar-se com a democracia norte-americana.

4 - A contestação permanente da NATO é um traço da identidade partidária do Bloco. Desde os documentos da fundação que o Bloco denuncia o caráter militarista de aliança ofensiva que a NATO corporiza. Se até à queda do Pacto de Varsóvia, alguns setores de opinião ainda alimentavam dúvidas sobre os objetivos ofensivos da NATO, o reforço e expansão da NATO, depois do fim da URSS, só significou a expansão da potência norte-americana. Nestes últimos trinta anos, passámos do combate ao terrorismo para o combate às autocracias como o mais recente pretexto. Na verdade, protegem-se fontes energéticas para multinacionais ocidentais, petróleo, gás e outros minérios. Agora a tarefa é eliminar a competição tecnológica chinesa para não enfraquecer a superioridade militar americana. Agressões à ex-Jugoslávia, ao Afeganistão, ao Iraque, à Síria e à Líbia tiveram o apoio ou a intervenção direta da NATO. Milhões de mortos e feridos, milhões de refugiados, destruição de zonas civis, catástrofes ambientais - estes foram os resultados dessas guerras conduzidas pelo imperialismo americano. O padrão de barbárie que os EUA aplicaram no Vietname replicou-se no Iraque. Dizendo-se defensiva, a NATO alargou o seu âmbito de intervenção, formalmente, a todo o globo e não apenas ao território dos seus membros. António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa, por estes dias, esforçam-se por declarar que a NATO é apenas defensiva, colaborando numa falsidade para dourar o Império. Jorge Sampaio não pensou assim aquando da invasão do Iraque. Repudiou uma invasão à margem da Carta das Nações. O Bloco de Esquerda sugeriu desde 2004 que um sistema de segurança coletiva mundial deveria ter a sua matriz na Carta das Nações e o seu eixo na Organização das Nações Unidas.

Europa: colosso militar, miniatura política

5 - Nas eleições europeias de 2009, o Bloco defendeu a necessidade de tratados de não-agressão entre estados europeus, que pudessem conduzir a uma situação de neutralidade ativa europeia quanto às disputas das outras potências. Lamentavelmente, a   compreensão da necessidade de cooperação europeia na defesa foi atravessada por uma polémica negativa entre os defensores da hegemonia única da NATO, matizados entre atlantistas e partidários de um exército europeu instalado como braço "europeu" da NATO, política que o Bloco sempre rejeitou. Essa contradição resolveu-se depressa porque a Inglaterra e a França, potências nucleares, entre outros estados, não querem dividir a chefia militar com terceiros. Esse debate fechou espaço a uma cooperação europeia de estados soberanos. Curiosamente, agora, a Inglaterra, fora da UE, anda a ultimar tratados bilaterais de cooperação de defesa. Acaba de fazê-lo com a Suécia, a Finlândia e também com Portugal. A cooperação em defesa não anula as forças armadas de cada país nem as põe a reboque de interesses militares de terceiros. Contudo, a subserviência em relação aos EUA só deixou como perspetiva válida o alargamento da NATO que tem sucedido.

6 - Um dos maiores embustes da propaganda é o de que a Europa deixou para os EUA a despesa militar e o armamentismo, livrando-se desse encargo. Há que desmentir essa invenção. Isso aconteceu apenas no período de reconstrução da Europa, após a Segunda Guerra Mundial. Desde há muitas décadas que assim não é. O conjunto dos países da União Europeia (excluindo todos do antigo Bloco de Leste, exceto a Polónia) têm mais militares no ativo que os EUA ou a Rússia, e os seus orçamento de Defesa, somados, sendo inferiores ao dos EUA (que é uma enormidade), são superiores ao da Rússia e próximos do da China. Os europeus também contam com arsenais nucleares. A absurda subida das despesas militares serve apenas para capitalizar os negócios da indústria militar. Se os países da Europa pretendessem fazer frente a qualquer ameaça, atuando em conjunto, teriam os meios e as capacidades de defesa exigidas pelos padrões dos estrategas americanos. Essa propaganda da Europa como uma miniatura militar serve duplamente para amedrontar as populações e vender armas, aumentando as despesas militares em detrimento das despesas do Estado Social. Significativamente, o lobby das armas insiste na exclusão das despesas militares do cálculo do défice nos critérios de Bruxelas.

7 - O Bloco de Esquerda tem uma posição de abertura a uma cooperação de defesa europeia inter-estados. Por agora, essa possibilidade, sem maiorias para avançar nos diversos estados, é apenas uma hipótese, depende de um distanciamento face à NATO e do abandono de intervencionismos como o inglês, no Iraque, ou o francês, no Médio Oriente e em diversas regiões africanas.

A Organização para a  Segurança e Cooperação Europeia (OSCE), que teve como projeto inicial a colaboração europeia, diluiu esse foco ao integrar a Rússia e os Estados Unidos da América. A Rússia foi agora excluída e os EUA e o Canadá também deveriam sê-lo. Os EUA constituem a principal potência imperialista agressiva do mundo. A OSCE, herdeira dos Acordos de Helsínquia de 1975, de não agressão e inviolabilidade de fronteiras, acabou condicionada pela Guerra Fria. Afastar a OSCE desse passado é uma necessidade dos povos europeus a ocidente da Rússia. A OSCE tem existido em paralelo com o Conselho da Europa, órgão garante dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais. Ambos constituem instituições internacionais de referência sem qualquer vínculo à União Europeia. Há mais Europa política para além do ordenamento de Bruxelas.

O direito à autodeterminação dos povos, marca da revolução portuguesa

8 - Há mais de cinquenta anos que toda a esquerda portuguesa reconhece o direito de resistência e insurreição dos povos oprimidos. Não poderia ser de outro modo, depois das lutas de libertação nacional das antigas colónias portuguesas. Aquando da sua fundação, o Bloco participou nas jornadas pela independência de Timor-Leste e foi solidário com as FALINTIL. O desejo da Paz não anula a legítima defesa dos povos. A nossa oposição à corrida aos armamentos e à militarização do planeta e do espaço não exclui mínimos para defesa da integridade territorial de um país e de um povo. Ao longo dos anos, o Bloco opôs-se aos programas militares dos governos portugueses, destinados ao equipamento para as aventuras da NATO. No entanto, votámos especificamente a favor da construção dos navios patrulha essenciais para vigiar as águas territoriais. Votámos a favor de um navio logístico para meios de apoio a situações de catástrofe ou de helicópteros essenciais. Apoiamos a intervenção humanitária e militar das Nações Unidas em Timor-Leste e, em situações do mesmo tipo, não nos opomos a intervenções, sob a autoridade da ONU, para proteção de povos. Depois da independência de Timor, já defendemos intervenções noutras situações. O direito de resistência e insurreição recebeu natural acolhimento na Constituição da República. Essa foi uma marca da revolução democrática.

9 - As alianças pela Paz têm sido bem mais vastas do que as alianças político-sociais das esquerdas. Esse é um fator positivo no isolamento dos círculos belicistas e dos Estados agressores. Tal como o antifascismo não se confunde com o anticapitalismo, embora se possam enlaçar, o antimilitarismo não é apenas a oposição ao mercado da guerra: é a defesa da ecologia humana e portanto implica alianças amplas, nacionais e internacionais, para o desarmamento controlado e a erradicação das armas de destruição massiva. Na luta contra o terror atómico, nenhum sectarismo político é válido. Desde as ruas, sobretudo nos países agressores, até à diplomacia, todas as trincheiras são úteis. As articulações abrangem setores laicos e religiosos, dissidentes do militarismo e partidários da paz, forças políticas e movimentos sociais, figuras públicas e massas populares, artistas, académicos, cientistas e outros profissionais. Ninguém está a mais quando se tenta impedir catástrofes. A luta pela segurança não é estritamente contra a violência dos exércitos, estendendo-se à segurança económica e social, à segurança das identidades culturais. Neste sentido, articular simples mobilizações populares, de natureza internacionalista e intercultural na Europe e no mundo, para responder aos quotidianos incertos e às angústias populares é o que é verdadeiramente importante e alternativo ao militarista.

10 - As graves consequências da crise climática são um elemento novo no conflito entre a guerra e a paz. Tornou-se evidente nas últimas décadas a necessidade de alteração dos modos de produção e de consumo para evitar a catástrofe climática. Essa tornou-se a agenda maior dos nossos dias e uma preocupação central das classes trabalhadoras. A extensão de guerras e os astronómicos orçamentos militares atrasam a descarbonização das economias, para além de agravarem os défices ambientais. Partidos como o Bloco de Esquerda salientam a interação destes fenómenos, ao lado de ecologistas que assumem o combate pela paz e de muitos outros movimentos sociais.

11 - Na defesa da saída da NATO e da neutralidade ativa de Portugal, expomos a nossa primeira tarefa na defesa da Paz. A Constituição não permite referendar a desvinculação de tratados internacionais, exceto, em certas condições, os tratados referentes à União Europeia. Assim, a estratégia é constituir uma maioria parlamentar para o fazer. A tarefa de virar a opinião pública contra a NATO para assegurar essa maioria parece hoje ciclópica e muito inoportuna. Mas tem adiante os seus tempos, em que expressará o repúdio popular pelos crimes da aliança atlântica. Assim foi no passado, quando, por exemplo, o Bloco apresentou uma moção de censura ao governo de Durão Barroso/Paulo Portas pelo envolvimento de Portugal na invasão do Iraque. A iniciativa foi muito popular e a restante oposição apresentou moções semelhantes (derrotadas também pela maioria de direita). Assim, a firmeza de posição deve aliar-se ao esclarecimento continuado e à denúncia do caráter agressivo da NATO, numa longa batalha em que importa evitar o isolamento social.

12 - A Cimeira da NATO em Madrid alterou o conceito estratégico da organização, ou seja, redefiniu os inimigos. Graças à guerra lançada por Putin no leste europeu, a NATO aproveitou a onda de inquietação, fez uma pequena inflexão nas propostas anteriores e tornou a Rússia no inimigo principal e a China no inimigo secundário, trocando as posições. Decidiu-se  o reforço aéreo e naval e o reforço em armas nucleares táticas, além do aumento do dispositivo militar em efetivos (de 40 mil para 300 mil tropas). Portugal deve rejeitar a integração de militares portugueses nesses contingentes. A utilização de 2% do PIB dos países membros para despesas militares passou a ser considerado como mínimo e não como máximo. As indústrias militares, em particular as americanas, agradecem. Seguem-se os planos para o “flanco sul”, isto é o médio oriente e África e também para o Indo-Pacífico. Não há qualquer dúvida sobre o caráter global desta organização militar ofensiva. Lamentavelmente, o governo português acompanha todas as orientações e compromete-se a subir as despesas militares, embora tenha ficado no grupo de 5 países que não depositaram uma data para o cumprir. A negociação mais vergonhosa da Cimeira prendeu-se com o levantamento do veto da Turquia à entrada da Finlândia e da Suécia. A Suécia abandonou os seus refugiados curdos, hoje sujeitos a medidas policiais, concordou com a extradição de militantes curdos e  mancha uma política internacional conhecida pela defesa dos direitos humanos. A Turquia ganhou respaldo e aviões para massacrar os curdos no norte do Iraque. Em tudo isto o europeísmo desapareceu. Biden deu as cartas e recolheu o baralho.

13 - No país ou no exterior, estaremos com aqueles que combatem todos os imperialismos, quer quando se unem contra os povos, quer quando se digladiam entre si. Todos aqueles que querem reduzir o anti-imperialismo à oposição aos Estados Unidos não só se equivocam como facilitam as vitórias de Washington. A NATO pode agradecer a Putin (e às suas ameaças de recurso à arma atómica) ter-lhe entregado de bandeja o alargamento nórdico, à Suécia e à Finlândia. Ora, a NATO não é solução para a segurança. O Bloco opor-se-á sempre a qualquer alargamento da organização. A rejeição dos imperialismos e a opção pelo não-alinhamento está ao nosso alcance. A paz está nas mãos dos povos.