Passe Ferroviário Verde - um presente envenenado para a CP

por

Igor Constantino

21 de outubro 2024 - 12:38
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Não faltam comentadores todas as semanas nas televisões a clamar pela urgente privatização da TAP e da CP, porque isso iria, segundo eles, melhorar espetacularmente os serviços. Só falta explicarem porquê.

Alfa pendular
Alfa pendular. Fotografia de Nelson Silva.

Por ter trabalhado nas oficinas da CP e feito parte de uma Subcomissão de Trabalhadores, acompanho as queixas constantes do pessoal da manutenção dos comboios suburbanos de Lisboa. Falta de pessoal, de peças, material obsoleto, infraestruturas do século antepenúltimo, problemas das oficinas que os passageiros nem imaginam. Ainda há pouco, a actual administração da CP se queixou da dificuldade em contratar dados os baixos salários oferecidos, estando a voltar a empregar reformados(!). São inúmeros os constrangimentos de infraestrutura, obras adiadas para as calendas, estações decrépitas, um sem fim de problemas. Qual não é o meu espanto quando leio que, perante o anúncio de um novo Passe Ferroviário Verde, e do expectável aumento da procura, a administração acha que tem financiamento suficiente da parte do governo e condições para pôr os comboios nos carris a tempo e horas, e a afirmar que a Comissão de Trabalhadores que representa quem efectivamente os põe a rolar, afinal está mas é a mentir e a inventar problemas. O que se passa?

Vem tudo isto a propósito das anunciadas mudanças ao “Passe Ferroviário Nacional” agora “Verde”. Já desde 2023 que este existe por 49€ mensais e apenas para comboios regionais. O primeiro-ministro anunciou em Agosto que passaria a custar 20€ e a ser válido em praticamente todos os comboios, tendo sido depois esclarecido que incluirá o Intercidades, mas não o Alfa-Pendular.

A nossa ferrovia tem um atraso colossal quando comparada à da vizinha Espanha, e também ao resto da Europa. E muito, mas muito mais face ao que é necessário fazer perante a urgência em travar as alterações climáticas. Assim, poderia parecer estranho que uma medida tomada, supostamente, para incentivar o uso do comboio tenha recebido críticas da CT e não só. Mas vindo de quem vem, da Direita que anseia por privatizar a CP, só se pode desconfiar. A CT critica e bem esta medida, sim, por ser nestes moldes, e por não vir acompanhada do necessário reforço do financiamento.

É neste cenário de enorme dificuldade em manter os serviços existentes e em que os trabalhadores da CP fazem o possível e o impossível para fazer render os meios disponíveis, que ouvimos a administração criticar a CT e dizer que a compensação pelo anunciado passe foi “rigorosamente calculada”. Não sei se esta mudança de tom é uma tentativa de evitar as tradicionais mudanças na direção de empresas públicas quando mudam os governos, mas não precisamos procurar muito para ouvir vozes dissonantes não da CT, nem de sindicatos ou partidos de esquerda. Carlos Barbosa, quadro dirigente da CP, hoje deputado do PS e figura conhecida no meio ferroviário, disse-o no parlamento: esta compensação financeira de 19M€ é muito insuficiente, e quem fez as contas tê-las-á feito apenas para agradar ao Ministro. Carlos Barbosa não é conhecido como uma voz “do bota abaixo” na CP, antes pelo contrário, sempre falou muito dos méritos e pouco dos imensos problemas dos ferroviários, estando constantemente a valorizar o esforço hercúleo realizado nos últimos anos para colocar mais comboios a circular, recuperando composições abandonadas e deixadas a apodrecer pelo governo de Passos Coelho e Paulo Portas. Relembra e bem que se alguns serviços de Intercidades já estão a 80% de capacidade, como poderá funcionar este prodigioso passe?

A alemã Deutsche Bahn (empresa ferroviária pública da Alemanha) deu o exemplo com a criação de um passe nacional de 9€/mês no Verão de 2022, seguida também pela França. Uma medida louvável por fazer com que imensos alemães usassem os comboios nas férias. Mas, até na poderosa DB, com uma capacidade incomparável à da CP (mesmo ajustando ao tamanho e população do país), o aumento da procura que se verificou especialmente nos comboios rápidos de longo curso (os Intercity-Express ou ICE, que funcionam num regime de reserva de lugar facultativa), fez com que houvesse imensos constrangimentos, com comboios acima da capacidade, e com que o novo passe mensal (de 49€ e disponível todo o ano) seja agora válido em serviços de transporte locais e regionais, mas não no longo curso, para trazer mais gente para os comboios, mas sem comprometer a sustentabilidade da empresa e do serviço. Ora a CP não é a DB nem a SNCF nem nada que se pareça. No entanto, o governo quer com este passe tirar-lhe a principal fonte de receita.

Não faltam comentadores todas as semanas nas televisões a clamar pela urgente privatização da TAP e da CP, porque isso iria, segundo eles, melhorar espetacularmente os serviços. Só falta explicarem porquê. Todas as grandes companhias aéreas europeias obtiveram ajuda financeira estatal durante a pandemia, não apenas a TAP. Países com excelentes redes ferroviárias como a França, Espanha, Áustria, ou até os “liberais” Países Baixos ou EUA, possuem empresas públicas de comboios com forte financiamento estatal e com a maioria da quota de mercado. Em Espanha, as redes de alta velocidade foram desenvolvidas tendo primeiro um serviço de alta velocidade robusto, assegurado pela pública Renfe, e só depois, em 2021, foi aberta a porta a privados para o serviço de alta velocidade nos trajectos mais movimentados, havendo capacidade para tal na infraestrutura. os beneficiários foram empresas “privadas” como a Ouigo ou a Iryo que, curiosamente, são maioritariamente propriedade de empresas públicas de outros países, como a SNCF francesa, acusada agora pela Renfe de dumping nos preços. Já Portugal hoje, com a CP sem qualquer possibilidade de explorar as novas linhas sem novos comboios, prepara-se para entregar de mão beijada um colossal investimento em obras públicas a entidades privadas sem experiência no sector e que não terão inicialmente capacidade para garantir os serviços. Nos países que privatizaram a maior parte da rede ferroviária como o Reino Unido o serviço só piorou, tornou-se mais caro, com mais custos para o contribuinte levando até a graves acidentes devido à privatização da gestão das linhas.

São desonestas as comparações da CP com a Fertagus quando esta opera exclusivamente o troço mais lucrativo do país com comboios alugados ao Estado, enquanto a CP tem a obrigação de prestar serviço em zonas menos movimentadas com anos de subfinanciamento crónico. Os comboios de longo curso Alfa-Pendular e Intercidades com bilhetes de 1ª e 2ª classe são uma grande parte da receita da CP (43 e 45M€ face aos 29M€ do serviço regional, referido na intervenção de Carlos Barbosa), e é precisamente esta receita que este passe vai comprometer. O preço de uma viagem de IC ou de Alfa será superior ou pouco inferior aos 20€ deste passe, deixando assim muita gente de comprar bilhete para comprar apenas o passe, que até pode só usar uma vez, ou fazer as reservas e não aparecer. Como podem os 19M€ de compensação colmatar esta perda do IC e até do Alfa?

Há que somar tudo isto ao facto de que o Ministro Miguel Pinto Luz “cortou as pernas” à CP na compra de comboios que estava prevista para operar nas novas linhas de Alta Velocidade, dizendo que a CP tem de “encolher” para não prejudicar os privados (que ainda nem existem nem têm comboio nenhum!). Assim, percebemos que por si só e sem aumentar drasticamente o financiamento e a oferta, o aumento da procura que um passe deste tipo pode provocar apenas terá um efeito semelhante ao fim da publicidade na RTP: degradar ainda mais o serviço, para depois justificar melhor a privatização e desmembramento da CP. Não nos deixemos enganar.