As eleições legislativas para a Duma Estatal, a câmara baixa da Assembleia Federal da Rússia, realizadas sexta, sábado e domingo, saldaram-se por mais uma vitória fácil do partido Rússia Unida, do presidente Vladimir Putin, que, apesar de ter perdido alguns pontos, mantém a maioria esmagadora no Parlamento. A oposição contesta os resultados, acusando o governo de numerosas fraudes eleitorais.
Um sistema presidencialista
A Rússia possui um sistema presidencialista, assentando o poder no Presidente do país, algo que se acentuou com a subida ao poder de Putin.
É eleito para um mandato de seis anos, num sistema maioritário a duas voltas, tal como sucede entre nós. De acordo com a Constituição, não pode exercer mais de três mandatos consecutivos. Contudo, após a revisão constitucional de 2020, o Parlamento aprovou uma proposta da antiga cosmonauta Valentina Tereshkova, deputada do partido de Putin, para que tal disposição só se aplicasse a partir do mandato corrente, de forma a que o atual presidente se pode manter no cargo até 2036.
O executivo é de nomeação presidencial, incluindo o respetivo primeiro-ministro.
O Parlamento, denominado Assembleia Federal, é bicameral, sendo constituído pela Duma Estatal, a câmara baixa, e o Conselho da Federação, a câmara alta.
A primeira é constituída por 450 membros, maiores de 21 anos, eleitos para um mandato de cinco anos, por sufrágio universal, direto e secreto, através de um sistema eleitoral misto.
A Duma tem de aprovar a nomeação do primeiro-ministro e dos respetivos ministros (exceto das pastas consideradas de importância estratégica para a segurança nacional), podendo, igualmente, votar moções de censura ao governo. Desde a referida revisão constitucional, caso rejeite por três vezes o nome proposto ou aprove duas moções de censura ao executivo na mesma legislatura, a assembleia será dissolvida e haverá lugar a eleições antecipadas. Possui, ainda, o poder de nomear o governador do Banco Central, o vice-presidente e metade dos auditores do conselho orçamental e o provedor dos Direitos Humanos, bem como decretar amnistias. Em caso de “impeachment” do presidente, é a ela que começa o processo.
A segunda é constituída por 200 membros, maiores de 30 anos, dos quais 170 representam os 85 sujeitos territoriais da Federação Russa e 30 são de nomeação presidencial. Os primeiros têm de residir no território que representam há, pelo menos, cinco anos. Em cada um deles, um dos senadores é eleito pela respetiva assembleia legislativa regional, sendo outro nomeado pelo governador do território, a partir de uma lista de três elementos propostos por si quando apresenta a sua candidatura à liderança do território. Dada a diferente realidade dos vários sujeitos federativos, os mandatos dos senadores podem ter durações diferentes. Os nomeados pelo presidente são-no por seis anos, podendo ex-presidentes ou outras figuras de reconhecido mérito (até um máximo de sete) ser objeto de nomeação vitalícia. Embora os senadores sejam, na sua maioria, membros de diferentes partidos, o Conselho da Federação não se organiza, formalmente, em grupos parlamentares. É a ele que cabe ratificar alterações aos limites das entidades federadas, declarar a lei marcial ou o estado de emergência, bem como a participação de tropas no estrangeiro, marcar a data das eleições presidenciais e votar o “impeachment” do chefe do Estado. Também lhe compete ratificar as nomeações presidenciais dos membros dos tribunais superiores (incluindo o Constitucional), do procurador-geral e do presidente e metade dos auditores do conselho orçamental.
Para entrar em vigor, uma lei necessita da aprovação das duas câmaras. O início do processo legislativo cabe sempre à câmara baixa, mesmo que a legislação seja proposta pela câmara alta. Contudo, para as leis ordinárias, é necessária a aprovação das duas câmaras. A legislação enviada pela Duma não pode ser emendada pelo Conselho da Federação, apenas tendo este a possibilidade de a aprovar ou reprovar no prazo de 14 dias. Findo este sem que a segunda a vote, considera-se tacitamente aprovada. Caso seja “chumbada”, haverá lugar à constituição de um comité de conciliação. Se não houver acordo, a câmara baixa pode levantar o veto por maioria de 2/3 dos deputados em efetividade de funções. No caso de leis constitucionais, a sua aprovação depende de uma maioria qualificada de 3/4 dos membros da câmara alta.
A federação é, como referimos, constituída por 85 sujeitos federativos (a república da Crimeia e a cidade de Sebastopol, territórios anexados em 2014 e internacionalmente reconhecidos como ucranianos, incluídos). Dependendo dos diferentes graus de autonomia ou apenas por tradição, estes dividem-se em 46 “oblasts” (regiões administrativas), 22 repúblicas, 9 “krais” (territórios), 4 “okrugs” autónomos (distritos autónomos), 3 cidades federais autónomas (Moscovo, São Petersburgo e Sebastopol), e 1 “oblast” autónomo (região autónoma).
Um sistema eleitoral misto
O sistema eleitoral utilizado nas eleições para a Duma é o voto paralelo. Trata de um sistema misto, onde uma parte dos parlamentares é eleita por sistema maioritário e outra através da representação proporcional, sem que haja uma relação direta entre ambas as votações.
Assim, 225 deputados são eleitos em círculos uninominais, através do sistema maioritário a uma volta, podendo concorrer também candidatos independentes. Contudo, estes têm de ser propostos por um mínimo de 3% dos eleitores recenseados na circunscrição ou, caso esta tenha menos de 100 mil inscritos, 3000.
A eleição dos restantes 225 ocorre a nível nacional, através de um sistema de representação proporcional, sendo reservada aos partidos. As listas por estes apresentadas podem ter entre 200 e 400 pessoas e pelo menos metade destas tem de ser constituída por membros da força política que apresenta a lista. Esta deve ser dividida em duas partes: regional, onde têm de estar representados, pelo menos, 35 sujeitos da federação, e federal, em número não superior a 15 (eram sete, até à revisão constitucional). Para o apuramento dos mandatos, é utilizado o método de Hare-Niemayer (quociente eleitoral simples, com os mandatos remanescentes a serem atribuídos aos maiores restos). Para aceder à representação parlamentar por esta via, as forças políticas têm de ultrapassar a cláusula-barreira, correspondente a 5% dos votos expressos.
Este sistema eleitoral, adotado a partir das últimas eleições, favorece o partido presidencial, não apenas por ser o maior do país, mas também por ser o único cuja organização se estende por todo o seu extenso território, cooptando a esmagadora maioria dos caciques locais.
O contexto político
Logo, apesar de toda a esta arquitetura constitucional e da existência de um sistema pluripartidário, a Rússia é, na prática, um Estado autoritário, onde o presidente Putin detém o essencial do poder.
Para além da prisão do seu mais conhecido e encarniçado opositor, Alexei Navalny, e da ilegalização da Fundação Anticorrupção (FAK), uma organização por ele fundada e considerada “extremista” pelo governo, todos os seus membros ou pessoas que tivessem sido sinalizadas pelos serviços secretos (o FSB, sucessor do KGB) como tendo estado presentes em reuniões ou outras atividades por ela desenvolvidas foram consideradas igualmente “extremistas” e proibidas de concorrer às legislativas. Para além disso, vários candidatos oposicionistas (desde liberais a comunistas e alguns independentes) foram, igualmente, impedidos de se apresentar a sufrágio.
Entretanto, a imprensa livre praticamente desapareceu, com a maioria da comunicação social controlada ou “domesticada” pelo Kremlin, além de haver uma cada vez maior censura sobre a Internet. Um exemplo foi o barramento, nas redes sociais, de uma aplicação elaborada pelos partidários de Navalny, denominada Voto Inteligente, que auxiliava o eleitorado a votar no candidato oposicionista mais bem colocado para derrotar os “putinistas”.
Por outro lado, para além do partido presidencial, a maioria das restantes forças políticas autorizadas a concorrer às eleições, em especial as mais representadas no Parlamento, são leais a Putin, exceção ao Partido Comunista e um outro pequeno partido liberal ou verde, que constituem a oposição tolerada. O próprio Kremlin é acusado de formar partidos de diferentes áreas ideológicas para dividir o eleitorado oposicionista e de apresentar, nos círculos uninominais de resultado mais incerto, candidatos com nomes semelhantes aos dos das formações da oposição, de forma a confundir o eleitorado.
As atuais eleições ocorriam num momento em que a popularidade de Putin, ainda que elevada, se encontrava num dos seus pontos mais baixos. Se a anexação da Crimeia lhe aumentou aquela, o que explica o seu êxito nas eleições de 2016, a reforma regressiva do sistema de pensões, com aumento da idade de acesso à aposentação, provocou um forte descontentamento popular, em especial entre os mais idosos, levando mesmo a várias manifestações de protesto. Para controlar os danos, no início de 2020, Putin demitiu o primeiro-ministro Dmitry Medvedev, ex-presidente e seu fiel aliado, substituindo-o por Mikhail Mishustin. Acresce, ainda, a pandemia da covid-19, que registou um aumento de casos nos últimos tempos.
Os resultados eleitorais
Como habitualmente, o Rússia Unida (ER), partido do presidente Putin, foi o esperado vencedor, tendo obtido 49,8% dos sufrágios e eleito 324 dos 450 lugares. Destes, 126 foram eleitos na lista partidária, enquanto que, nos círculos maioritários, arrebatou 198 dos 225. Contudo, registou um recuo face ao seu resultado de 2016, quando chegou aos 54,2%, que lhe valeu a conquista de 343 representantes.
Para além do nacionalismo autoritário, do conservadorismo nos costumes, dada a sua ligação à Igreja Ortodoxa, e da defesa de um capitalismo de Estado de cariz oligárquico, o ER não tem uma ideologia definida. O seu objetivo principal é a manutenção do poder, oferecendo uma base organizada de apoio ao presidente Putin. Basicamente, é dirigido a partir do Kremlin, não tendo um líder formal.
Dada o contexto político, previa-se uma penalização significativa do partido, mas esta acabou por ser bastante atenuada. Porém, a quase ausência de observadores internacionais, não autorizados pelo governo russo, leva a considerar credíveis as acusações dos meios oposicionistas, que acusam o poder de fraude eleitoral, irregularidades diversas e intimidação dos eleitores, em especial fora dos grandes centros, práticas, aliás, habituais na Rússia de Putin.
Em segundo lugar, ficou o Partido Comunista da Federação Russa (KPRF), que obteve importantes avanços, conseguindo 18,9% dos votos e a eleição de 57 deputados (48 a nível nacional e nove nos círculos maioritários), quando, há cinco anos, se ficara por 13,3% e 42 representantes.
O partido, desde sempre liderado por Gennady Zyuganov, apresenta-se como o sucessor do antigo partido comunista soviético, embora afirme que defende uma versão renovada do comunismo, em especial no que respeita ao sistema democrático e à existência de pequena e média propriedade privada, defendendo apenas a nacionalização das grandes indústrias, dos recursos naturais e da agricultura e um conjunto de medidas de caráter social. Contudo, é, igualmente, nacionalista, defensor da herança soviética, e, ao nível dos costumes, é acentuadamente conservador.
Nestas eleições, beneficiou do facto de ser a única das grandes forças políticas a assumir-se como oposição efetiva a Putin, o que atraiu eleitores não comunistas, mas fartos do “putinismo”. A questão das reformas também lhe granjeou uma subida do apoio entre os mais idosos, onde se encontra a maioria da sua base de apoio.
A terceira posição em número de votos foi para o Partido Liberal Democrático da Rússia (LDPR), de Vladimir Zhirinovsky, que obteve 7,6% dos sufrágios e 21 eleitos (19 na representação proporcional e dois nos círculos uninominais), uma descida significativa face a 2016, quando conseguira 13,1% e a eleição de 39 deputados.
Ao contrário do que o nome indica, o LDPR não é nem liberal, nem democrático. Na verdade, é um partido da extrema-direita ultranacionalista, de caráter acentuadamente unipessoal. Considera-se anticomunista e antiliberal, afirmando-se defensor de uma economia mista, com forte intervenção do Estado. É defensor do autoritarismo, pondo sempre o acento tónico na defesa da lei e da ordem e no combate à criminalidade, sendo vulgares as declarações racistas do seu líder, associando esta aos povos do Cáucaso e da Ásia Central. Em matéria de costumes, é ultraconservador, afinando as suas posições pelas da Igreja Ortodoxa. Defende o regresso à Rússia dos territórios perdidos após o fim da URSS, a defesa das minorias russas no exterior, o pan-eslavismo e o que considera a defesa da civilização cristã ortodoxa dos seus inimigos.
Contudo, apesar de toda a retórica de Zhirinovsky, o partido vota quase sempre com o ER e Zhirinovsky é visto, por muitos, como um palhaço político que serve os propósitos de Putin, o que explicará as numerosas perdas que sofreu neste ato eleitoral.
Logo a seguir, vem o partido Rússia Justa – Pela Verdade (SP-ZP), que obteve 7,5% dos votos e elegeu 27 deputados. Apesar de ter obtido um pouco menos votos que o LDPR, conseguiu os mesmos 19 mandatos proporcionais, mas somou oito nos círculos maioritários. Uma pequena subida face ao resultado de há cinco anos, em que obtivera 6,2% e 23 parlamentares.
O partido, que tem como líder Sergey Mironov, afirma-se social-democrata, criticando tanto a burocracia e do regime soviético como o atual capitalismo oligárquico, afirmando defender um “Novo Socialismo”, tendo como referência o modelo do “welfare state” dos países nórdicos. Contudo, é também nacionalista e conservador nos costumes, embora seja mais moderado que os restantes partidos parlamentares. A sua posição face ao poder é algo ambígua. Assim, no passado, opôs a algumas medidas de Putin, mas apoiou a sua reeleição em 2018.
Neste ato eleitoral, acabou por beneficiar do voto daqueles eleitores mais moderados, descontentes com Putin, mas incapazes de votar nos comunistas.
A maior novidade deste ato eleitoral foi a entrada no Parlamento do partido Novo Povo (NL), que, ao obter 5,3% dos votos, ultrapassou a cláusula-barreira e elegeu 13 parlamentares, todos eleitos na lista partidária.
O partido, liderado pelo empresário Alexey Nechayev, fundador da maior empresa russa de cosméticos, afirma-se liberal, situando no centro-direita. Defende um maior apoio às empresas, em especial aos pequenos empresários, a redução da presença do Estado na economia, o investimento em novas infraestruturas e nas novas tecnologias. Ao nível político, afirma advogar uma maior autonomia para as regiões, a eleição direta da maioria dos cargos da administração e a defesa das liberdades, com o fim da censura e um maior controlo sobre a polícia e os serviços secretos.
Apesar das intenções que manifesta no seu programa, os analistas consideram que o NL foi formado pelo Kremlin, com o objetivo de atrair alguns setores do voto liberal, em especial dos mais jovens e urbanos.
As restantes forças políticas ficaram abaixo da cláusula-barreira, tendo somado, no conjunto 8,9% dos sufrágios. Apesar de os mais votados terem sido o Partido Russo dos Pensionistas pela Justiça Social (RPPSJ), com 2,3%, o liberal Yabloko e o radical Comunistas da Rússia (KR), ambos com 1,3%, e os Verdes (Zeleni), com 0,9%, os mais votados, nenhum conseguiu representação parlamentar, tal como o esquerdista Partido Russo da Liberdade e da Justiça (RPSS), com 0,8%, e a Alternativa Verde (ZA), com 0,6%.
Ao invés, o Rodina, da direita nacionalista, com 0,8%, os liberal-conservadores Partido do Crescimento (PR), com 0,5%, e Plataforma Cívica (GP), com 0,2%, elegeram, cada um deles, um representante nos círculos uninominais. O primeiro e o último mantiveram os seus lugares, enquanto o PG se estreia no Parlamento.
Foram, ainda, eleitos, nos círculos uninominais, cinco independentes, mais quatro que nas últimas eleições.
Por sua vez, os votos brancos e nulos somaram 2,0%
A participação eleitoral é tradicionalmente baixa e, desta vez, não fugiu à regra, não indo além de 51,7% do eleitorado. Apesar de tudo, foi maior do que há cinco anos, quando se quedou nos 47,9%.
A contestação aos resultados
Para já, a contestação aos resultados já começou. A oposição afirma que, em Moscovo, nos círculos uninominais, 15 dos seus candidatos iam à frente e acabaram derrotados após serem anunciados os dados do voto eletrónico.
Cerca de 200 manifestantes comunistas saíram à rua em protesto e o partido convocou manifestações de protesto para sábado, afirmando não reconhecer os resultados oficiais. Também apoiantes de Navalny falam de fraude massiva e consideram a possibilidade de sair, igualmente, à rua. Veremos o que os próximos tempos nos reservam, embora não pareça que o poder de Putin seja, para já, verdadeiramente abalado.