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Os últimos passos de Héctor Oesterheld

Héctor Oesterheld foi torturado e assassinado há 40 anos pela ditadura militar argentina. Luiz Bernardo Pericás escreve sobre a obra do argumentista.
Héctor Germán Oesterheld e exemplares do seu Hora Cero.
Héctor Germán Oesterheld e exemplares do seu Hora Cero.

Durante alguns minutos, foi-lhe permitido ficar sem o capuz que cobrira a sua cabeça, pouco tempo antes. Só então percebeu que estava na companhia de vários homens, tão magoados quanto ele. Era noite de Natal. Cumprimentou os prisioneiros, um a um. E ainda cantou “Fiesta”, de Joan Manuel Serrat. Depois disso, nunca mais seria visto.

As garotas nasceram todas nos anos cinquenta: Estela Inés, Diana Irene, Beatriz Marta e Marina. As suas filhas, quatro meninas lindas, sorridentes, amorosas. As fotos não mentem: aquele era um lar feliz.

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Os militares argentinos não perdoavam quem levantava a voz contra a ditadura. Em 1977, o general Ibérico Saint Jean, então governador da Província de Buenos Aires, diria:

“Primero mataremos a todos los subversivos; luego mataremos a sus colaboradores; después, a sus simpatizantes; enseguida, a aquellos que permanecen indiferentes y, finalmente, mataremos a los tímidos”.

Inspirados pelas técnicas de tortura usadas pelos franceses na Argélia, pela Escola das Américas e até mesmo pelo que fazia o exército brasileiro nos anos de chumbo, eles não poupariam quem entrasse à frente deles. Em torno de 30 mil pessoas seriam eliminadas...

Héctor Germán Oesterheld e exemplares do seu Hora Cero.
Héctor Germán Oesterheld e exemplares do seu Hora Cero.

 

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Beatriz foi a primeira a desaparecer, em meados de 1976. Tinha apenas 19 anos. A única que teve o corpo recuperado… Em seguida, Diana, grávida de quatro meses (e mãe de um menino, Fernando), sequestrada, junto com o parceiro, Raúl, em San Miguel de Tucumán. Marina, também grávida a próxima, em novembro daquele ano. E, finalmente, Estela. Casada, tinha um filho de três anos de idade. Foi levada por agentes do Estado no final de 1977. Todas, militantes dos montoneros.

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El viejo. Assim o chamavam na prisão. Havia sido sequestrado em 27 de abril de 1977. Os problemas na pele eram visíveis: perebas e espinhas surgiam no rosto e na cabeça. Estava estraçalhado, arrebentado pela ação dos verdugos. As costas doíam-lhe: dormia no duro piso de madeira. Antes, gostava de jogar ténis, ver jogos de futebol e fazer longas caminhadas, solitário. Agora, só andava a passos curtos, dentro da sua cela apertada. Arrastava-se. Mas o pior de tudo não foi a tortura. Foi quando os captores lhe mostraram fotos das filhas executadas. A sua vida, naquele momento, também havia acabado.

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Estivera em diferentes centros de detenção: Campo de Mayo, Vesubio e Sheraton. E sofreu as amarguras e humilhações do cárcere. Isso foi naquela época, final da década de 70. Agora, é o número 7.546 da lista da Comissão Nacional dos Desaparecidos. Acredita-se que tenha dado o último suspiro em 1978, em Mercedes. Até hoje o seu corpo não foi encontrado.

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Héctor Germán Oesterheld foi um dos maiores nomes das HQs argentinas. Para não falar da literatura de ficção científica. E mesmo da própria “literatura” do seu país. Nascido em 1919, em Buenos Aires, filho de pai judeu alemão e de mãe basca, quando era criança gostava de sonhar com as aventuras de Salgari, Verne, Melville, Conrad, Defoe e Stevenson. “Sempre fui fascinado pela história de Robinson Crusoé. Deram-me o livro quando era muito pequeno, e devo tê-lo lido mais de 20 vezes”, diria ele.

 

Geólogo da YPF em Comodoro Rivadavia na juventude, logo abandonaria a profissão para se tornar escritor e roteirista de comic books. Publicou o seu primeiro conto para crianças, “Truilla y Miltar”, aos 23 anos, no diário La Prensa. E voltaria a morar na capital portenha. Especializar-se-ia numa literatura folhetinesca, daquelas vendidas em quiosques e bancas de jornais, narrativas de aventuras, recheadas de temas bélicos, westerns e science fiction (chegou a escrever mais de 150 histórias).

 

Oesterheld passaria por diferentes editoras, como Abril, Codex, Columba e Record, fundando, em 1956, a Frontera, com seu irmão Jorge. E colaboraria com várias revistas: Más Allá, Cinemisterio, Misterix, Fantasía, El Tony, Skorpio, Zig Zag (do Chile), Gente e o diário montonero Noticias, além de Hora Cero e Frontera (estas duas, idealizadas por ele).

 

 

Casado com a companheira inseparável, Elsa Sánchez, criou algumas das personagens mais emblemáticas da banda desenhada rioplatense, como o “Sargento Kirk” (uma espécie de alter ego de Martín Fierro, mas situado no Velho Oeste), “Ticonderoga” e o correspondente de guerra “Ernie Pike” (todos com o traço do genial desenhista italiano Hugo Pratt); “Bull Rocket” (pelas mãos de Paul Campani); o boxeador “Índio Suárez” (através da pena de Carlos Freixas); “Sherlock Time” (em parceria com Alberto Breccia); assim como “Rolo, o marciano adotivo” e o icónico “Eternauta”, ambos transportados para as tirinhas pelo lendário ilustrador Francisco Solano López. Os faroestes teriam destaque no seu catálogo, títulos como Randall, Verdugo Ranch, Hueso clavado, Leonero Brent, Tom de la pradera, Doc Carson, Watami e Loco Sexton.

Ainda assim, o Eternauta, sem dúvida, foi a sua maior obra, considerado a “livro sagrado” e o “grande clássico” da banda desenhada argentina. A história, protagonizada por Juan Salvo, começou a ser publicada em 1957 e teria uma segunda série, mais politizada e crítica, nos anos 70. Em 1969, apareceria uma nova versão na revista Gente, em estilo ousado e vanguardista, desenhada por Breccia. Os editores não gostam, encurtam a narrativa, param de editar o trabalho. Em 1976, vem a continuação da “aventura”, uma “parte dois”, desta vez, na revista Skorpio, com o traço do amigo Solano López. Parecia uma provocação. As referências políticas e insinuações contra a ditadura eram evidentes. Ele diria: “O verdadeiro herói de O Eternauta é um herói coletivo, um grupo humano… o único herói válido é o herói ‘em grupo’, nunca o herói individual, o herói solitário”. Oesterheld terminaria o roteiro na clandestinidade.

 

A situação de HGO complicava-se. Vale lembrar que, naquele mesmo ano, o guionista já estava envolvido com os montoneros, juntamente com as filhas (seria chefe de imprensa da organização). Alguns anos antes de ser apreendido em La Plata, publicaria outros trabalhos emblemáticos, talvez os mais polémicos. Em 1968, poucos meses após o assassinato de Guevara em La Higuera, Bolívia (ou no início de 1969, segundo alguns autores), HGO preparou La vida del Che, uma biografia do guerrilheiro (no Brasil, o livro só seria publicado em 2008, com o título Che: os últimos dias de um herói, em belíssima edição lançada pela Conrad Editora). A arte ficou a cargo do colega Alberto Breccia e do seu filho Enrique (aparentemente, os trechos mais ousados e esteticamente interessantes foram feitos pelo jovem, então com 22 anos). A obra teve um êxito imediato, e esgotou depressa.

 

O Che era umas das principais referências da esquerda latino-americana. A sua trajetória política e o seu ideário eram recorrentemente discutidos pelos militantes do continente. Guevara, por certo, inspirava as novas gerações. Também entusiasmou Oesterheld. Certa vez, o roteirista disse: “Se me perguntassem qual é o melhor escritor argentino, para mim é o Che. É um dos intelectuais que mais defendo. É o sujeito mais lido na Argentina e o autor mais tradicional. O mais comentado e o mais estudado”. Mais tarde, o livro foi proibido de ser editado e vendido no país.

Entre 1973 e 1974, seria publicada em El Descamisado, órgão montonero, a série América Latina: 450 años de guerra, desenhado por Leopoldo Durañona, um ataque contundente de HGO ao imperialismo. Não seria perdoado.

Nunca é tarde para se conhecer a obra de Oesterheld, que infelizmente ainda é pouco divulgada no Brasil. Por isso, a sugestão é procurar os trabalhos deste grande mestre. E envolver-se com as suas histórias, polémicas, provocadoras e sempre atuais.

 

[Poster de Felix Saborido publicado no número 5 da Revista Feriado Nacional em 27 de Outubro de 1983]
[Poster de Felix Saborido publicado no número 5 da Revista Feriado Nacional em 27 de Outubro de 1983]

Texto originalmente publicado no Blog da Boi Tempo 

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