Estratégia para gestão de água

Os mitos da transição hídrica

16 de março 2025 - 11:39

Onde a Estratégia “Água que Une” é mais clara nos seus propósitos finais e nos mitos que propaga é com a necessidade de transvases (eufemisticamente designados ligações inter-bacias) e do aumento da capacidade de armazenamento.

porRui Cortes

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Alqueva
Fotografia de Paulo Valdivieso/Flickr

A transição hídrica, assim como a transição energética, visa adaptar o uso e gestão dos recursos hídricos para enfrentar desafios como a escassez de água e as mudanças climáticas. No entanto, esse processo também está cercado de simplificações e mitos que podem distorcer sua implementação ou seus impactos. Acresce que tais inverdades são propaladas pelas entidades oficiais no sentido de favorecer os investimentos privados no setor, desde a distribuição de água até ao agronegócio. Uma ilustração desta situação é bem vincada pela Estratégia “Água que Une”, apresentada há poucos dias pelo 1º ministro, no estertor dos seus últimos dias de governação, num plano de mais de 300 medidas, cozinhado nos bastidores, e que procurava atingir o absurdo financiamento de 5 mil milhões de euros.

Um dos mitos é que a dessalinização é a solução universal para a escassez de água, especialmente em regiões costeiras. Na verdade, embora a dessalinização seja uma tecnologia útil, ela é cara, energeticamente intensiva (com produção de gases de efeito de estufa) e pode gerar impactos ambientais, como a produção de salmoura (subproduto do processo) que tem efeitos perniciosos nos ecossistemas marinhos e, em particular, no setor das pescas, neste caso na costa Algarvia, onde se prevê construir pelo menos uma destas estruturas.

Outro mito é o de que a reutilização da água, seja para irrigação, ou para consumo humano, é a solução para o défice hídrico no sul do país. Embora a reutilização seja uma estratégia importante, especialmente em regiões áridas, não representa uma solução mágica. O tratamento e a reutilização da água são caros e exigem infraestruturas sofisticadas e uma regulação rigorosa para garantir a segurança. Além disso, o uso de água reciclada pode enfrenta resistência pública, especialmente quando se trata de água para consumo humano ou mesmo para rega (especialmente de hortícolas), além de implicar custos muito elevados a nível de tratamento.

Tanto num caso, como no outro, o aumento de disponibilidade de água é meramente local, tendo em conta os elevados custos de bombagem para levar a água zonas mais distantes.

Mas onde a Estratégia “Água que Une” é mais clara nos seus propósitos finais e nos mitos que propaga é com a necessidade de transvases (eufemisticamente designados ligações inter-bacias) e do aumento da capacidade de armazenamento. No 1º caso está prevista a ligação entre a Bacia do Tejo e do Guadiana e a ligação entre o Alqueva e a Bacia do Mira. No 2º caso, a pseudo estratégia, dita integrada, aponta para a construção de 13 barragens de grande dimensão e o alteamento de muitas outras. E é para aqui que é dirigida a maior parte do investimento.

Partindo do princípio que é tecnologicamente possível realizar estas transferências de água entre bacias, tal tem custos astronómicos, a serem pagos por todos os cidadãos nos respetivos impostos. Teoricamente, uma parte significativa terá de ser em túnel e com múltiplos dispositivos de bombagem para vencer as cotas, o que implica multiplicar os custos da água. Por outro lado, as questões ambientais são muito relevantes para a biodiversidade, com a destruição da fauna piscícola nativa e o aumento das espécies invasoras, além da degradação da qualidade dos recursos hídricos e da substancial redução do serviço de ecossistemas. Além do mais, não seria possível o cumprimento da Diretiva Quadro da Água, que obriga os estados-membros a atingir o designado Bom Estado Ecológico, do qual nos estamos cada vez mais a afastar. Do mesmo modo incumpriríamos a Estratégia Europeia do Restauro da Natureza, aprovada em 2024 pelo Parlamento Europeia e que aponta para a recuperação de habitats e para a diminuição da fragmentação dos cursos de água.

O objetivo destas medidas e do mito de que não há limites para o aprovisionamento é claro como água: favorecer o agro-negócio! Note-se que a agricultura representa já 74% dos consumos. Aliás, a Estratégia apresentada prevê fundos vultuosos para o aumento constante do regadio. Seria bem melhor que nas bacias deficitários do Algarve, bem como do Sado e Mira, as zonas mais críticas, se procurasse adaptar a agricultura para as condições climáticas existentes. E é esta a questão fulcral que os especialistas têm alertado: a questão do solo é prioritária e tem-se vindo a verificar uma diminuição da fertilidade (com reflexo na diminuição da produção de cereais e outras culturas temporárias), sendo essencial aumentar a matéria orgânica nos solos e apostar na agricultura regenerativa. É também necessário atrair gente para os territórios do interior, de modo a controlar os incêndios florestais e diminuir os riscos de perda de solo. Ora, estamos a caminhar para um modelo de “desenvolvimento” completamente ao arrepio dos cenários climáticos. E nesta situação é sempre necessário aumentar a capacidade de armazenamento e, se faltar a água na bacia em causa, vai-se buscar água a outra bacia mais a Norte e assim sucessivamente. O Vouga e o Douro já estão na mira também de futuras estratégias de transvases, aliás apadrinhadas pela CAP e todos os partidos de direita.

É também necessário aprender com Espanha (e outros países), onde os transvases têm vindo a ser fortemente limitados pela contestação das populações, nomeadamente no médio Tejo, onde as transferências para a Bacia do Segura (Múrcia) têm criado grande oposição e conflitos sociais. Esta situação, juntamente com a diminuição da precipitação, faz com que as transferências programadas para atingirem os 1.200 hm3, não passem atualmente de cerca de 300 hm3, prevendo-se ainda a sua redução em 40% nos próximos anos.

Não obstante, na mencionada Estratégia incluem-se alguns objetivos meritórios, como a redução das elevadas perdas no ciclo urbano da água (mais de 30%) e na agricultura (não se sabe com rigor por ausência de fiscalização, mas pode andar pelos 40%), bem como a promoção da água residual tratada, ou o reforço do controle dos consumos. Por isso o é justo questionarmo-nos sobre qual a necessidade de aumentar tão significativamente a capacidade de armazenamento e realizar transvases (que assumem a maior parte dos gastos) quando ao mesmo tempo se procuram adotar processos paralelos de aumentar a eficiência hídrica… E será possível aumentar esta eficiência quando a taxação da água no setor urbano e agrícola não cobre os custos? Daqui resultam dois aspetos: o não cumprimento do princípio do utilizador-pagador e a não renovação das redes de distribuição (no setor urbano rondam ao insignificância de 0,2% ao ano!). Por outro lado, os grande agrários (e as sociedades de capital de risco), nomeadamente no perímetro de rega do Alqueva agradecem, dado que não pagam a taxa de beneficiação, ou seja, os investimentos em infraestruturas. Esses são pagos por nós todos, os contribuintes do costume…

Mas não sejamos injustos: existe também um plano de ação para a reabilitação e o restauro de rios e ribeiras, anteriormente apresentado pela Ministra do Ambiente e Energia: são 14,5 milhões de euros, ou seja, 0,003% do investimento na Estratégia Água que Une. Tirem as vossas conclusões.

Rui Cortes
Sobre o/a autor(a)

Rui Cortes

Professor Catedrático da UTAD (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro) e membro do Conselho Geral da Universidade. Doutorado em Ciências Florestais.