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Os bancos e a nova doutrina «Too Big to Jail»

O facto de a especulação e os crimes financeiros terem causado a pior crise económica desde o século passado pesa muito pouco na balança da justiça.

É bem conhecida a máxima: «Demasiado grandes para falirem» («Too Big To Fail»). A forma como os governos geriram a crise provocada pelos bancos acabou por dar origem a uma nova doutrina que se pode resumir assim: «Demasiado grandes para serem condenados» |1|; ou «Demasiado grandes para serem presos», traduzindo à letra o novo adágio que floresce nos EUA e no Reino Unido: «Too Big to Jail» |2|, que rima com «Too Big to Fail». De facto, embora o governo dos EUA tenha deixado o Lehman Brothers falir, nenhum banco foi encerrado |3| ou desmantelado por decisão judicial, nenhum dirigente da banca foi condenado a uma pena de prisão. A única excepção no mundo ocidental vem da Islândia, onde a justiça condenou a penas de prisão três dirigentes da banca. Larus Welding, principal dirigente do banco Glitnir, que faliu em 2008 quando era o terceiro banco do país, foi condenado em finais de Dezembro de 2012 a nove meses de prisão. Sigurdur Einarsson e Hreidar Mar Sigurdsson, os dois principais dirigentes do banco Kauphing |4|, foram condenados respectivamente a cinco e cinco anos e meio de prisão em Dezembro de 2013 |5|.

No entanto, a justiça norte-americana e a europeia vêem-se confrontadas com delitos muito graves cometidos pelos maiores bancos: burla organizada contra clientes, os (pequenos) accionistas e os accionistas públicos, branqueamento de dinheiro proveniente do crime organizado, organização sistemática de fraude fiscal em grande escala, manipulação organizada das taxas de juro (Libor, Euribor, …), manipulação organizada dos mercados cambiais, falsificação de documentos, abuso de informação privilegiada, destruição de provas, enriquecimento ilegítimo, manipulação organizada do mercado de CDS, manipulação do mercado físico de commodities, cumplicidade em crimes de guerra |6|… e não acaba aqui a lista.

Eric Holder, procurador-geral dos EUA, quando inquirido em Junho de 2013 por uma comissão do Senado do seu país, resumiu claramente o fundamento da doutrina «Demasiado grandes para serem condenados». Declarou ele a propósito dos grandes bancos que «essas instituições são tão grandes que se torna difícil submetê-las à justiça, e se o fizéssemos, dar-nos-íamos conta que efectivamente inculpá-los de actividades criminosas poderia ter repercussões negativas na economia nacional, ou mesmo mundial» |7|.

As consequências desta posição são claras. O facto de a especulação e os crimes financeiros terem causado a pior crise económica desde o século passado pesa muito pouco na balança da justiça. Apesar de esses excessos estarem associados a uma epidemia de fraudes |8|, a todos os níveis das operações dos bancos dos EUA, essas instituições estão autorizadas a prosseguir as suas operações. Basta-lhes entrar num acordo com a justiça a fim de pagarem uma multa para evitarem uma condenação. Imaginem a seguinte situação: após um mês de investigação, a polícia descobre que uma certa pessoa roubou um milhão de euros. Essa pessoa, no momento em que é detida, declara ao juiz de instrução e à polícia: «Proponho pagar 2000 euros de multa e vocês deixam-me ir em liberdade e não fazem avançar o processo. De acordo?» O juiz e o polícia dizem-lhe: «Ok, não há problema, e desculpe o incómodo. Boa continuação. Faça por não ser apanhado da próxima vez, está bem?» O tratamento de favor ao qual têm direito os bancos responsáveis por delitos e crimes financeiros em nada difere desta situação imaginária e Bertold Brecht tinha toda a razão em perguntar: «Quem é o maior criminoso: aquele que rouba um banco ou aquele que funda um banco?» |9|.

As consequências directas das malfeitorias dos bancos são particularmente graves: 14 milhões de famílias nos EUA foram expulsas das suas habitações entre 2007 e 2013 (ver quadro abaixo), entre as quais se estima que pelo menos 495.000 tenham sido desalojadas de forma perfeitamente ilegal |10|, milhões de pessoas perderam o emprego, uma parte das quais caiu abaixo do limiar de pobreza, a dívida pública explodiu e os fundos de pensões dos países desenvolvidos perderam perto de 5,4 biliões de dólares |11|.

Penhoras imobiliárias nos Estados Unidos e em Espanha

 

EUA

Espanha

2005

532.833

 

2006

717.522

 

2007

1.285.873

 

2008

2.330.483

49.848

2009

2.824.674

59.632

2010

2.871.891

81.747

2011

1.887.777

94.825

2012

1.836.634

76.724

Total

14.287.687

362.776

Fontes: Para os EUA, para Espanha.

O papel dos bancos privados é manifestamente tão importante e indispensável ao sistema capitalista, que o seu funcionamento transcende os constrangimentos legais e constitucionais das sociedades modernas. Daí que a justiça olhe para o lado quando colocada perante delitos e crimes cometidos pelos bancos e seus dirigentes, a fim de não ter de condená-los nem que seja a um só dia de prisão. Trocado por miúdos: não podemos processar um dirigente duma instituição bancária, que «se limita a fazer o trabalho de Deus» |12|, para citar Lloyd Blankfein, patrão da Goldman Sachs.

A declaração que acabamos de transcrever seria caso para rir se não se desse o caso de as relações entre os bancos e as autoridades judiciais ou de controlo confirmarem regularmente a aplicação da doutrina «demasiado grandes para serem condenados», dos dois lados do Atlântico. Os casos sucedem-se e a justiça teima em passar multas que geralmente representam uma ínfima parte dos proveitos das actividades ilegais, sem que algum dirigente seja molestado. Quando muito comparecem perante os tribunais uns testas de ferro como Jérôme Kerviel, mas nunca os patrões que os incentivaram a aumentar os lucros da empresa recorrendo a todas as tramóias possíveis e imagináveis.

Seis exemplos bastam para testemunhar a situação actual:

  • 1. Os acordos entre os bancos dos EUA e diferentes autoridades do país a fim de evitar uma condenação em tribunal no caso dos empréstimos hipotecários abusivos e dos despejos ilegais de habitação (foreclosures);

  • 2. O HSBC (1º banco britânico) sujeito a multa nos EUA por branquear dinheiro dos cartéis mexicanos e colombianos da droga;

  • 3. A manipulação das taxas de juro interbancário e das taxas sobre os derivados, conhecida por «caso Libor»;

  • 4. O escândalo dos «empréstimos tóxicos» em França;

  • 5. As actividades ilegais do Dexia em Israel;

  • 6. A evasão fiscal intercontinental organizada pelo principal banco suíço UBS.

Ao longo desta série de textos analisaremos estes seis exemplos.

Conclusão

Torna-se evidente que os bancos e outras grandes instituições financeiras de dimensão mundial, agindo como bandos organizados (em cartel), dão mostras de um nível invulgar de cinismo e abuso de poder. Actualmente, desde que os EUA puseram o dinheiro público à disposição de entidades financeiras cujas apostas especulativas deram para o torto, os magistrados encarregados de aplicar a lei esmeram-se por proteger os responsáveis dessas entidades e banalizam assim, leia-se justificam a posteriori, a sua conduta ilegal ou criminosa.

Este contexto de impunidade encoraja os dirigentes das firmas financeiras a levar cada vez mais longe o abuso e os riscos. Os bancos não são condenados enquanto instituições e a maioria das vezes nem sequer são levados a tribunal.

Esses bancos descarregam inteiramente as responsabilidades para traders como Jérôme Kerviel e outros que tais e conseguem que os tribunais os condenem por lhes terem provocado prejuízos.

A situação dos principais dirigentes dos bancos é totalmente diferente: o montante dos seus bónus cresce com o aumento de lucros do banco (não raro o bónus aumenta mesmo em caso de baixa de rendibilidade do banco), independentemente da origem ilegal das fontes de rendimento ou de provirem de actividades financeiras especulativas extremamente arriscadas. No pior dos casos, se forem descobertos, basta-lhes abandonar a instituição (frequentemente com um pára-quedas dourado); não serão processados pela justiça e conservarão intactos, nas suas contas bancárias, os benefícios recebidos.

Enquanto este tipo de dispositivo perverso é mantido, os abusos e pilhagens dos recursos públicos por parte do sistema financeiro hão-de prolongar-se a perder de vista.

Além dos altos dirigentes, é preciso sublinhar a impunidade dos próprios bancos, a quem as autoridades aplicam a doutrina «demasiado grande para serem presos». Trata-se duma teia apertada que une as direcções dos bancos, os grandes accionistas, os governos e os diferentes órgãos vitais dos Estados.

Em caso de falhas graves, é preciso pôr em prática uma solução radical: retirar a licença bancária aos bancos culpados de crimes, proibir definitivamente algumas das suas actividades, levar a tribunal os dirigentes e grandes accionistas. É preciso também impor indemnizações aos dirigentes e grandes accionistas.

Por fim, é urgente dividir cada banco em várias entidades, a fim de limitar os riscos, socializar esses bancos e pô-los sob controlo cidadão e criar assim um serviço público bancário que dê prioridade à satisfação das necessidades sociais e à protecção da natureza.


Publicado em cadtm.orgTradução: Rui Viana Pereira. Revisão: Maria da Liberdade

Notas

|1| O autor agradece a Daniel Munevar, economista do CADTM, que produziu uma primeira síntese concisa muito útil sobre o tema e autorizou a sua utilização livre. O autor completou depois consideravelmente a pesquisa. Ver o artigo original de Daniel Munevar, «La doctrine “trop grandes pour être condamnées” ou comment les banques sont au-dessus des lois», 20-09-2013, www.cadtm.org/La-doctrine-trop-grandes-pour-etre

|2| Os meios de comunicação anglo-saxónicos utilizam regularmente esta expressão há dois anos: ver por exemplo: Abcnews, «Once Again, Is JPMorgan Chase Too Big to Jail?», 7-01-2014, http://abcnews.go.com/Blotter/madoff-ponzi-scheme-prosecutors-find-jpmorgan-chase-big/story?id=21448264 ou Forbes, «Why DOJ Deemed Bank Execs Too Big To Jail», 29-07-2013, http://www.forbes.com/sites/tedkaufman/2013/07/29/why-doj-deemed-bank-execs-too-big-to-jail/

|3| Outra maneira de dizer que nenhum banco perdeu a licença bancária. De facto, para manter as operações bancárias, uma instituição financeira tem de obter uma licença bancária.

|4| A falência da filial Icesave no Reino Unido e na Holanda provocou uma crise internacional entre estes dois países e a Islândia. Esta crise prossegue ainda em 2014, porque o Reino Unido e a Holanda recorreram da sentença do tribunal de arbitragem que deu razão à Islândia em Janeiro de 2013. Ver Financial Times, «Iceland premier repels Icesave lawsuit», 12-02-2014.

|5| Como escreveu o Financial Times: «Iceland, almost uniquely in the western world, has launched criminal cases against the men who used to lead its three main banks that collapsed after the global financial crisis in 2008 after collectively becoming 10 times the size of the island’s economy.» 13-12-2013. Ver: http://www.ft.com/intl/cms/s/0/eab58f7e-6345-11e3-a87d-00144feabdc0.html#axzz2thdbsViQ

|6| Ver mais adiante a acção do Dexia nos territórios palestinianos ocupados por Israel.

|7| Huffingtonpost, “Holder admits some Banks too big to jail”, disponível em: http://www.huffingtonpost.com/2013/03/06/eric-holder-banks-too-big_n_2821741.html Nesse sítio podemos ver e ouvir parte do testemunho do procurador-geral dos EUA, que declara: «I am concerned that the size of some of these institutions becomes so large that it does become difficult for us to prosecute them when we are hit with indications that if you do prosecute, if you do bring a criminal charge, it will have a negative impact on the national economy, perhaps even the world economy,…». Duração do vídeo: 57 segundos – mas vale a pena.

|8| Um estudo recente sobre as práticas de crédito dos bancos nos EUA assinala que apesar da sua heterogeneidade, as irregularidades e burlas estão presentes em diversos graus em todas as instituições financeiras analisadas. Ver «Asset Quality Misrepresentation by Financial Intermediaries: Evidence from RMBS Market», em http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2215422

|9| Bertold Brecht, A Ópera dos Três Vinténs. A Ópera dos Três Vinténs é uma comédia musical de Bertold Brecht (música de Kurt Weil), apresentada pela primeira vez a 31-08-1928 no Theater am Schiffbauerdamm de Berlim, e depois em versão francesa a 14-10-1930 no teatro Montparnasse.

|10| The New York Times, «Banks to pay $8,5 billion to speed up housing relief», 7-01-2013, http://dealbook.nytimes.com/2013/01/07/banks-to-pay-8-5-billion-to-speed-up-housing-relief/?_php=true&_type=blogs&_php=true&_type=blogs&_r=1

|11| OECD (2010), «The Impact of the Financial Crisis on Defined Benefit Plans and the Need for Counter-Cyclical Funding Regulations», http://www.oecd.org/pensions/private-pensions/45694491.pdf

|12| The Wall Street Journal, «Goldman Sachs Blankfein: Doing Gods work», 9 novembre 2009, http://blogs.wsj.com/marketbeat/2009/11/09/goldman-sachs-blankfein-on-banking-doing-gods-work/

Eric Toussaint, docente na Universidade de Liège, preside do CADTM Bélgica. É autor do livro Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011. Este último recebeu o Prémio do Livro Político na Feira do Livro Político de Liège, http://www.cadtm.org/Le-CADTM-recoit-le-prix-du-livre.

Próximo livro a sair em Abril 2014: Bancocratie, ADEN, Bruxelas, http://www.chapitre.com/CHAPITRE/fr/BOOK/toussaint-eric/bancocratie,58547448.aspx

Este estudo prolonga a série «Bancos contra povos: os bastidores de um jogo manipulado», publicada em 2012-2013 no www.cadtm.org e, sob outra versão, na série «Et si on arrêtait de banquer?» http://cadtm.org/Et-si-on-arretait-de-banquer

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Sobre o/a autor(a)

Politólogo. Presidente do Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo
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