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O momento Zemmour

O chefe de fila mediático da extrema-direita francesa é agora um dos favoritos à corrida presidencial. Stathis Kouvélakis explica como o momento Zemmour surgiu da derrota eleitoral de Le Pen nas eleições regionais mas não só.
"Zemmour... Marine [Le Pen]... Calem-se". Foto de Jeanne Menjoulet/Flickr.
"Zemmour... Marine [Le Pen]... Calem-se". Foto de Jeanne Menjoulet/Flickr.

O que aconteceu? Como chegámos a uma situação em que um destacado personagem mediático com opiniões fascistas se transforma num potencial candidato presidencial adorado por muitos dos principais meios de comunicação social? Como é que Zemmour se instalou nas terras da extrema-direita enquanto contornava a União Nacional de Le Pen, enfraquecida pela sua recente derrota eleitoral e desestabilizada internamente? É o que Stathis Kouvelakis analisa neste artigo, insistindo na recomposição desta extrema-direita, que se dividiu em duas, mas que de qualquer modo ancora a banalização do racismo estrutural e das posições neofascistas. O nível de penetração desta extrema-direita nas classes trabalhadoras é particularmente alarmante: requer lucidez e a construção de alternativas claras.


Por mais fulgurante que possa parecer, a ascensão de Éric Zemmour na cena política não caiu do céu. Como analisa Ugo Palheta, esta provável transferência (na altura da redação deste artigo) do principal peso pesado da extrema-direita nos meios de comunicação social para o campo da competição partidária concentra as tendências pesadas do período: é o seu “sintoma”, revela-as, no sentido dum processo químico. Vamos resumi-las brevemente: desde o período Sarkozy, o centro de gravidade da vida política e do debate público – ou melhor, do que o substitui – tem vindo a deslocar-se para a direita. Os temas, que costumavam ser levados apenas pela extrema-direita, estão a saturar o discurso político e mediático dominante, cobrindo um espaço que vai desde a esquerda (supostamente) "republicana" de Manuel Valls e Laurent Bouvet até à União Nacional, passando pela direita burguesa e os representantes do poder de Macron, que agora se mobilizaram para a luta contra o "islamo-esquerdismo" e o "separatismo". Articulam-se em torno dum racismo descomplexado, ferozmente islamófobo, que conduz ao mito, carregado de um potencial de violência exterminadora, da "grande substituição". Éric Zemmour é um dos nomes mais proeminentes desta dinâmica de fascização e a sua ubiquidade mediática é o culminar de um processo, que acontece há vários anos, acompanhando-o e acicatando-o simultaneamente.

Uma mudança de conjuntura

Por isso, é grande a tentação de o descartar como um epifenómeno, um efeito superficial, uma simples bolha nas sondagens ou um "artefato mediático". No entanto, a passagem do estatuto de polemista hipermediatizado ao de potencial candidato presidencial, suscetível mesmo de chegar à segunda volta de acordo com algumas sondagens, não é de todo óbvia. Há apenas alguns meses, quem teria pensado numa tal eventualidade? Quem previu que um Zemmour seria capaz de desestabilizar Marine Le Pen e o seu partido, a RN, firmemente enraizado no nicho eleitoral da extrema-direita há quatro décadas, tendo já chegado duas vezes à segunda volta das eleições presidenciais, e, de acordo com sondagens não tão antigas, até mesmo reduzindo a distância face a Macron, no caso duma segunda volta, em 2022? Por outras palavras, o fenómeno Zemmour seria incompreensível sem a dinâmica de longo prazo que lhe está subjacente mas ele não poderia enveredar pelo caminho propriamente político que parece estar a tomar se não tivesse ocorrido nos últimos meses uma mudança de conjuntura.

Pois "alguma coisa" aconteceu, ou mais precisamente tornou-se visível, durante as últimas eleições regionais, com o resultado pior do que o esperado da RN e a sua incapacidade de conquistar ou mesmo de disputar seriamente, uma única região. Tal fracasso – apesar dum resultado elevado a nível nacional – augurava um mau desfecho para as eleições presidenciais, ao deixar claro que, qualquer que seja a configuração da segunda volta, a União Nacional está destinada a perder. Tal descoberta assinala o fracasso da chamada estratégia de "desdiabolização" que a sua líder se tem esforçado por implementar, há vários anos, e que só faz sentido como "estratégia da segunda volta", visando reunir uma maioria por ocasião duma presença, tomada como certa, na segunda volta das eleições presidenciais.

Esta procura de respeitabilidade é, além disso, uma passagem obrigatória para qualquer formação que pretenda gerir o estado burguês e os assuntos do capital – daí as múltiplas promessas dadas nos últimos meses às classes dominantes francesa e europeia (abandono da saída do euro, compromisso de reembolso da dívida, reivindicação de compatibilidade da política de "prioridade nacional" e do quadro essencial da UE). No início de 2021, a RN parecia estar a caminho de ser bem sucedida na sua transformação num potencial "partido de governo" e a sua chegada ao poder, provavelmente em aliança com parte da direita burguesa, foi amplamente considerada uma hipótese credível.

O fraco resultado nas eleições regionais desestabilizou esta orientação, causando ou acelerando o abandono de representantes eleitos, de quadros do partido e de militantes. É então entendido que, apesar do que indicam as sondagens e da sua influência nos sectores mais decisivos do eleitorado (jovens, trabalhadores, classes trabalhadoras), a RN continua a ser modesta como máquina partidária e até como máquina eleitoral.

Por isso, um partido com estas caraterísticas é particularmente vulnerável a um revés eleitoral e isto atinge fortemente a figura da sua dirigente, a pedra angular duma corrente política centrada na figura do líder. O efeito é amplificado pelo amadorismo e nepotismo organizacional que caracterizam a gestão dos seus assuntos internos. Num contexto em que a possibilidade de ganhar o poder está em jogo, o (relativo) revés eleitoral torna-se um fracasso estratégico.

Entrar na arena

Mas como explicar este contratempo? É aqui que entra o "fator Zemmour", ou mais precisamente a sua passagem de um estatuto de campeão mediático de ideias de extrema-direita para um potencial ator no campo partidário. Zemmour faz uma análise pertinente, do ponto de vista do seu campo político, deste fracasso. Logo no dia seguinte às eleições, discerniu o efeito combinado da "normalização" do discurso Lepénista e do extremar à direita do campo político dominante: "Na verdade, já não há hoje qualquer diferença entre o seu discurso e o de Emmanuel Macron ou Xavier Bertrand… Marine Le Pen fala como Emmanuel Macron, Emmanuel Macron fala como Marine Le Pen, eles já estão na segunda volta, uma vez que não é suposto existir mais nada além dessa segunda volta, e podemos ver que os eleitores recusam estas cartas marcadas”. Ora esta trivialização dupla do discurso de Le Pen (ela fala "como todos os outros" tendo levado "todos os outros" a falar como ela), um efeito paradoxal da "lepenização das mentes" de que o Le Pen sénior outrora se orgulhava, mina seriamente a sua capacidade de canalizar a raiva e os diversos ressentimentos que ela tinha anteriormente conseguido cristalizar.

Esta é a explicação para o fracasso das eleições regionais: ao contrário de todas as expetativas, o eleitorado da União Nacional foi tão ou mais afetado pela abstenção do que o das outras formações (exceto o da França insubmissa, outro fracasso) [1]. Quanto aos quadros, ou pelo menos uma fração significativa deles, vendo escapar a perspetiva duma vitória eleitoral, estão cada vez mais inclinados a criticar o que percebem como um abrandamento e aburguesamento do seu partido. Como disse um antigo líder da federação de Deux-Sèvres: "O fosso foi-se alargando com o passar do tempo. Primeiro, fomos proibidos de ir à “Manifestação por todos”, depois de apoiar a Geração identitária. Marine Le Pen diz que a "grande substituição" é uma teoria da conspiração, que o Islão é compatível com a República, que ela não deixará Schengen ou a Convenção Europeia dos Direitos Humanos… Ela é uma esquerdista que cresceu num castelo e herdou a sucursal de Le Pen”.

É aqui que pode começar o “momento Zemmour” em termos políticos. Armado com esta constatação, apoiando-se na sua excecional visibilidade, que fez dele um dos mais eficazes meios de radicalização à extrema-direita do campo político, Zemmour parece ser capaz de tirar partido das dificuldades do, até agora, legítimo representante da extrema-direita. Pode agora apresentar-se como porta-voz legítimo no campo da competição política desta radicalização para a qual tanto trabalhou no terreno mediático.

Isto reflete-se nos dados qualitativos de algumas sondagens recentes, que indicam um aumento meteórico da sua possível candidatura. Zemmour consegue atrair intenções de voto tanto dos candidatos estabelecidos da extrema-direita (Marine Le Pen e o seu satélite Dupont-Aignan), como da direita clássica. Mais: ao contrário do que as primeiras sondagens sugeriam, também parece ser capaz de atrair uma parte substancial do eleitorado popular (e, em menor medida, jovem). Um eleitorado que, recorde-se, tem vindo a virar-se cada vez mais para a extrema-direita há vários anos – mesmo tendo em conta a elevada taxa de abstenção que afeta as suas fileiras. Mesmo antes da ascensão de Zemmour, as sondagens sugeriam um nível de penetração da extrema-direita nas classes trabalhadoras que parece ir mesmo além dos níveis recorde das eleições presidenciais anteriores: os três candidatos da extrema-direita tinham um total de cerca de 50% das intenções de voto nas categorias "trabalhadores" e "empregados", sendo o total dos candidatos da esquerda nestas mesmas categorias entre 22 e 25% [2].

A hipótese Zemmour delineia assim os contornos de um bloco potencialmente maioritário, juntando em torno de uma extrema-direita hegemónica, cujo campo de influência consegue alargar, uma parte da direita burguesa clássica. Se se confirmar, poderá acelerar o desmembramento desta última, uma parte da qual já se juntou a Macron ou prepara-se para o fazer no próximo período – é ao partido recém-criado de Édouard Philippe que parece reservado ao papel de recetáculo.

Uma transferência inacabada

Se o "momento Zemmour" é de facto um sintoma de um processo de radicalização fascizante do campo político, também indica que este processo está agora a ultrapassar, ou pelo menos a apanhar rapidamente, aqueles que têm sido os seus principais vetores e beneficiários no campo da representação política até agora. Mais do que uma "alternativa burguesa", como sugere Ugo Palheta, no sentido de que a burguesia teria forjado várias opções para poder escolher a melhor (de acordo com os seus interesses) quando chegar o momento, o fenómeno parece-nos ser uma forma de "autonomia do político", ou, dito doutra forma, um processo que escapa aos seus iniciadores. Ao fazê-lo, atua como um fator de aceleração da fragmentação, e portanto da instabilidade e da imprevisibilidade, de um campo político desestruturado – o que não é de todo o negócio da burguesia – que gosta da ordem e das alternâncias tranquilas.

Esta autonomia é, contudo, bastante relativa. E não apenas no sentido em que as opções políticas de Zemmour estão obviamente tão ao serviço dos interesses capitalistas como as dos outros representantes do bloco burguês. Para conseguir com sucesso a conversão do capital mediático para a competição política partidária, é preciso poder pagar a quota de entrada. E esta é elevada, especialmente para uma campanha presidencial: assinaturas, finanças, reuniões, obrigação de estar presente – mesmo que de forma limitada – no terreno.

A decadência dos partidos favorece certamente a entrada de estranhos no jogo político – a vitória-relâmpago de Macron é prova disso – ou o sucesso de campanhas conduzidas com um aparelho reduzido ao mínimo, como a de Mélenchon, em 2017. Mas em ambos os casos, os candidatos conseguiram mobilizar recursos importantes: vindos das elites económicas, no caso do atual presidente, capitalizando a longa história dentro da esquerda política, no caso do líder da França Insubmissa. Resta saber se Zemmour é capaz de desencadear uma mobilização deste tipo, e esta é sem dúvida a razão para o adiamento da sua decisão de se candidatar ou não à eleição presidencial.

Como expressão duma autonomia (relativa) da política, num contexto de crise orgânica de representação e da fascização progressiva, a emergência da hipótese Zemmour é um sinal tanto de força, como de fraqueza. A força reside no facto de mostrar que este processo de radicalização fascista está profundamente enraizado, que possui reservas e energias que vão para além das colocadas em ação por aqueles que têm sido os seus legítimos representantes até agora. Fraqueza porque fica por provar, por um lado, que um tal candidato é capaz de reunir mais pessoas do que uma Marine Le Pen e, por outro lado, que uma extrema-direita dividida em duas alas de dimensão eleitoral comparável é mais credível do que a configuração relativamente unificada que tem prevalecido até agora.

Nesse caso, a questão do cui bono surge inevitavelmente. No final de contas, pode muito bem ser que a dupla função – deliberadamente assumida ou simplesmente "objetiva" – deste personagem, que vem das entranhas da ala reacionária da direita burguesa, nomeadamente das colunas do Le Figaro, seja a de desestabilizar o único polo que, dada a atual decadência da esquerda, parecia ser capaz, até agora, de colocar em dificuldade (eleitoralmente) o campeão do bloco burguês, assegurando, ao mesmo tempo, que as suas ideias (fascistas) obtenham um nível de visibilidade e aceitabilidade sem precedentes.

Neste sentido, e mesmo que não vá até ao fim, Eric Zemmour já ganhou.


Stathis Kouvelakis é filósofo e professor de teoria política no King’s College de Londres. Fez parte da direção do Syriza e atualmente é membro da Unidade Popular.

Publicado originalmente na Contretemps. Traduzido por António José André para Esquerda.net


Notas:

[1] De acordo com a sondagem IFOP à boca das urnas, a abstenção afetou 71% do eleitorado lepenista de 2017 contra 48, 64 e 60% para, respetivamente, o eleitorado de Fillon, Macron e Hamon. Apenas o eleitorado de Mélenchon se absteve mais (75%).

[2] Segundo o inquérito IFOP de Outubro de 2021, que o coloca com 14% das intenções de voto, Zemmour obteria 18% do voto assalariado (Le Pen 29%, Dupont-Aignan 3%), 13% do voto operário (Le Pen 30%, Dupont-Aignan 6%), 20% dos titulares da CAP/BEP (Le Pen 27%), 15% dos funcionários do sector público (Le Pen 19%, Dupont-Aignan 2M), 10% dos menores de 35 anos (Le Pen 19%, Dupont-Aignan 3%) e 14% dos 35-49 anos (Le Pen 19%, Dupont-Aignan 3%). Em 2017, de acordo com a sondagem IFOP, à boca das urnas, a categoria "trabalhadores" votou 39% em Le Pen e 3% em Dupont-Aignan, e os "assalariados", respetivamente, 30% e 5%.

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