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O anti-imperialismo deles – e o nosso

O “campismo” mudou de uma lógica de “o inimigo do meu amigo (a URSS) é meu inimigo” para uma lógica de “o inimigo de meu inimigo (os EUA) é meu amigo”, que é uma receita para um cinismo vazio e leva ao apoio acrítico a regimes totalmente reacionários e antidemocráticos. Por Gilbert Achcar.
Protesto pela Síria em Bruxelas. Foto de Gwenael Piaser/Flickr.
Protesto pela Síria em Bruxelas. Foto de Gwenael Piaser/Flickr.

As últimas três décadas testemunharam uma crescente confusão política sobre o significado do anti-imperialismo, uma noção que, em si própria, não tinha sido tema de muito debate. Há duas razões principais para esta confusão: o fim vitorioso da maioria das lutas anticoloniais pós Segunda Guerra Mundial e o colapso da URSS. Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos e as potências coloniais ocidentais aliadas travaram diretamente várias guerras contra movimentos ou regimes de libertação nacional, juntamente com intervenções militares mais limitadas e guerras por procuração. Na maioria destes casos, as potências ocidentais enfrentaram um adversário local apoiado por uma grande base popular. Permanecer contra a intervenção imperialista e em apoio àqueles a quem ela visava parecia ser a escolha óbvia para os progressistas – a única discussão era se o apoio deveria ser crítico ou sem reservas.

A principal divisão entre os anti-imperialistas durante a Guerra Fria foi causada pela atitude em relação à URSS, que os partidos comunistas e seus aliados próximos consideravam como a “pátria do socialismo”; estes determinaram grande parte das suas próprias posições políticas alinhando-se com Moscovo e o “campo socialista” – uma atitude que foi descrita como “campismo”. Isto foi facilitado pelo apoio de Moscovo à maioria das lutas contra o imperialismo ocidental na sua rivalidade global com Washington. Quanto à intervenção de Moscovo contra as revoltas dos trabalhadores e dos povos na sua própria esfera de dominação europeia, os campistas colocaram-se ao lado do Kremlin, denegrindo estas revoltas sob o pretexto de que elas foram fomentadas por Washington.

Aqueles que acreditavam que a defesa dos direitos democráticos é o princípio primordial da esquerda apoiaram as lutas contra o imperialismo ocidental, bem como as revoltas populares nos países dominados pela União Soviética contra o domínio ditatorial local e a hegemonia de Moscovo.

Uma terceira categoria foi formada pelos maoistas que, a partir dos anos 60, rotularam a URSS como “social-fascista”, descrevendo-a como pior do que o imperialismo americano e indo ao ponto de alinhar com Washington em alguns casos, como a posição de Pequim na África Austral.

O padrão das guerras imperialistas exclusivamente ocidentais travadas contra movimentos populares no Sul Global começou a mudar, no entanto, com a primeira guerra desse tipo travada pela URSS desde 1945: a guerra no Afeganistão (1979-89). E embora não fossem travadas por Estados então descritos como “imperialistas”, a invasão do Vietname pelo Camboja em 1978 e o ataque da China ao Vietname em 1979 trouxe uma desorientação generalizada às fileiras da esquerda global anti-imperialista.

A próxima grande complicação foi a guerra liderada pelos EUA em 1991 contra o Iraque de Saddam Hussein. Este não era um regime popular embora ditatorial, mas um dos regimes mais brutais e assassinos do Médio Oriente, um regime que tinha até usado armas químicas para massacrar milhares de curdos do seu país – com cumplicidade ocidental, já que isso aconteceu durante a guerra do Iraque contra o Irão. Algumas figuras, que até então pertenciam à esquerda anti-imperialista, passaram nesta ocasião a apoiar a guerra liderada pelos EUA. Mas a grande maioria dos anti-imperialistas opôs-se-lhe, apesar de ter sido travada com um mandato da ONU aprovado por Moscovo. Faziam pouco gosto na defesa da posse do emir do Kuwait do domínio que lhe fora presenteado pelos britânicos, povoado por uma maioria de migrantes sem direitos. A maioria também não era adepta de Saddam Hussein: denunciavam-no como um ditador brutal enquanto se opunham à guerra imperialista liderada pelos EUA contra o seu país.

Uma outra complicação logo emergiu. Depois das operações de guerra lideradas pelos EUA terem cessado em fevereiro de 1991, a administração George H. W. Bush – tendo poupado deliberadamente a força de elite de Saddam Hussein por medo de um colapso do regime que poderia ter beneficiado o Irão – permitiu que o ditador a empregasse para esmagar uma revolta popular no sul do Iraque e a insurgência curda no norte montanhoso, deixando-o usar helicópteros no último caso. Isto levou uma onda massiva de refugiados curdos a cruzar a fronteira com a Turquia. Para detê-la e permitir o retorno dos refugiados, Washington impôs uma zona de exclusão aérea (NFZ) sobre o norte do Iraque. Não houve praticamente nenhuma campanha anti-imperialista contra essa NFZ, já que a única alternativa teria sido a repressão impiedosa dos curdos.

As guerras da NATO nos Balcãs nos anos 90 colocaram um dilema semelhante. As forças sérvias leais ao regime de Slobodan Milosevic estavam envolvidas em ações assassinas contra muçulmanos bósnios e kosovares. Mas outros meios para evitar massacres e impor um acordo negociado na ex-Jugoslávia tinham sido deliberadamente negligenciados por Washington, ansioso para transformar a NATO de uma aliança defensiva numa “organização de segurança” envolvida em guerras intervencionistas. O passo seguinte desta mutação consistiu em envolver a NATO no Afeganistão, após os ataques de 11 de setembro (2001), eliminando assim a limitação da zona atlântica originalmente restrita da aliança. Depois veio a invasão do Iraque em 2003 – a última intervenção liderada pelos EUA que uniu todos os anti-imperialistas nos termos da oposição a ela.

Enquanto isso, o “campismo” da Guerra Fria reemergia sob um novo disfarce: não mais definido pelo alinhamento por trás da URSS, mas pelo apoio direto ou indireto a qualquer regime ou força que seja objeto da hostilidade de Washington. Noutros termos, houve uma mudança de uma lógica de “o inimigo do meu amigo (a URSS) é meu inimigo” para uma lógica de “o inimigo do meu inimigo (os EUA) é meu amigo” (ou alguém que eu deveria, de qualquer forma, poupar a críticas). Enquanto a primeira levou a alguns companheiros de quarto estranhos, a segunda lógica é uma receita para um cinismo vazio: focada exclusivamente no ódio ao governo dos EUA, leva a uma oposição irrefletida a qualquer coisa que Washington empreenda na arena global e à deriva em apoio acrítico a regimes totalmente reacionários e antidemocráticos, tais como o governo bandido capitalista e imperialista da Rússia (imperialista por todas as definições do termo) ou o regime teocrático do Irão ou regimes como Milosevic e Saddam Hussein.

Para ilustrar a complexidade das questões que o anti-imperialismo progressista enfrenta hoje – uma complexidade insondável à lógica simplista do neocampismo –, consideremos duas guerras que surgiram a partir da primavera árabe de 2011. Quando as revoltas populares conseguiram livrar-se dos presidentes da Tunísia e do Egito no início de 2011, todo o espectro dos auto-proclamados anti-imperialistas aplaudiu em uníssono, já que ambos os países tinham regimes amigos do Ocidente. Mas quando a onda de choque revolucionária chegou à Líbia, como era inevitável para um país que dividia fronteiras tanto com o Egito quanto com a Tunísia, os neocampistas ficaram muito menos entusiasmados. Lembraram que o regime supremamente autocrático de Moammar El-Gadhafi tinha sido banido pelos Estados ocidentais por décadas – aparentemente sem entender que ele se tinha transformado espetacularmente para cooperar com os Estados Unidos e vários Estados europeus a partir de 2003.

Fiel ao seu género, Gadhafi reprimiu os protestos de forma sangrenta. Quando os insurgentes tomaram a segunda cidade da Líbia, Benghazi, Gadhafi – depois de descrevê-los como ratos e viciados em drogas e de jurar “purificar a Líbia polegada por polegada, casa por casa, rua por rua, pessoa por pessoa, até que o país esteja limpo da sujeira e das impurezas” – preparou uma investida contra a cidade, empregando todo o espectro das suas forças armadas. A probabilidade de um massacre de proporções massivas era muito alta. Dez dias após a revolta, o Conselho de Segurança da ONU adotou por unanimidade uma resolução referindo a Líbia ao Tribunal Penal Internacional.

A população de Benghazi implorou ao mundo por proteção, enfatizando que não queria botas estrangeiras no seu solo. A Liga dos Estados Árabes apoiou este pedido. Assim, o Conselho de Segurança da ONU adotou uma resolução autorizando “a imposição de uma NFZ” sobre a Líbia, bem como “todas as medidas necessárias… para proteger os civis… excluindo uma força de ocupação estrangeira de qualquer forma em qualquer parte do território líbio”. Nem Moscovo nem Pequim vetaram esta resolução: ambos se abstiveram, não dispostos a assumir a responsabilidade por um massacre previsível.

A maioria dos anti-imperialistas ocidentais condenou a resolução do Conselho de Segurança da ONU como uma reminiscência das que tinham autorizado o massacre contra o Iraque em 1991. Ao fazê-lo, ignoraram o facto de que o caso líbio tinha mais em comum com a NFZ imposta sobre o norte do Iraque do que com a investida geral contra o Iraque sob o pretexto de libertar o Kuwait. A resolução do Conselho de Segurança da ONU estava claramente cheia de falhas, amplamente aberta a interpretações que permitiam uma interferência prolongada das potências da NATO na guerra civil líbia. Contudo, na ausência de meios alternativos para evitar o iminente massacre, dificilmente poderia haver uma oposição à NFZ na sua fase inicial – pelas mesmas razões que tinham levado Moscovo e Pequim a abster-se.

Levou muito poucos dias para que a NATO privasse Gadhafi de grande parte da sua força aérea e tanques. Os insurgentes poderiam ter continuado sem envolvimento direto de estrangeiros, desde que lhes fossem dadas as armas necessárias para combater o arsenal restante de Gadhafi. A NATO preferiu mantê-los dependentes do seu envolvimento direto, na esperança de poder controlá-los. No final, frustraram os planos da NATO ao desmantelar completamente o Estado de Gadhafi, criando assim a atual situação caótica na Líbia.

O segundo caso – ainda mais complexo – é a Síria. Ali, a administração Obama nunca teve a intenção de impor uma NFZ. Por causa dos inevitáveis vetos russos e chineses no Conselho de Segurança da ONU, isso teria exigido uma violação da legalidade internacional como a cometida pelo governo George W. Bush ao invadir o Iraque (uma invasão a que Obama se opôs). Washington manteve um perfil discreto na guerra síria, intensificando o seu envolvimento somente depois do chamado Estado islâmico surgir e cruzar a fronteira com o Iraque e restringindo depois a sua intervenção direta à luta contra o ISIS.

No entanto, a influência mais decisiva de Washington na guerra síria não foi o seu envolvimento direto – o que é primordial apenas aos olhos dos neocampistas focados exclusivamente no imperialismo ocidental – mas sim a proibição imposta aos seus aliados regionais de entregarem armas antiaéreas aos insurgentes sírios, principalmente devido à oposição de Israel. O resultado foi que o regime de Assad gozou de um monopólio no ar durante o conflito e podia até mesmo recorrer ao uso extensivo de bombas de barril devastadoras lançadas por helicópteros. Esta situação também encorajou Moscovo a envolver diretamente a sua força aérea no conflito sírio a partir de 2015.

Os anti-imperialistas estavam amargamente divididos em relação à Síria. Os neocampistas – como, nos Estados Unidos, a United National Antiwar Coalition e o Conselho de Paz dos EUA – focaram-se exclusivamente nas potências ocidentais em nome de um peculiar “anti-imperialismo” unilateral, apoiando ou ignorando a incomparavelmente mais importante intervenção do imperialismo russo (ou então mencionando-a timidamente, enquanto se recusava a fazer campanha contra ela, como no caso da Stop the War Coalition no Reino Unido), já para não falar na intervenção das forças fundamentalistas islâmicas patrocinadas pelo Irão. Anti-imperialistas progressistas democráticos – este autor incluído – condenaram o regime assassino de Assad e os seus apoiantes imperialistas e reacionários estrangeiros, reprovando a indiferença das potências imperialistas ocidentais face ao destino do povo sírio enquanto se opunham à sua intervenção direta no conflito e denunciando o papel nefasto das monarquias do Golfo e da Turquia na promoção de forças reacionárias entre a oposição síria.

A situação complicou-se ainda mais, porém, quando um ISIS em ascensão ameaçou o movimento nacionalista curdo de esquerda sírio, a única força armada progressista então ativa em território sírio. Washington lutou contra o ISIS através de uma combinação de bombardeamentos e apoio sem embaraços às forças locais que incluíam as milícias alinhadas com o Irão no Iraque e as forças de esquerda curdas na Síria. Quando o ISIS ameaçou tomar a cidade de Kobanî, mantida pelas forças curdas, estas foram resgatadas pelos bombardeamentos americanos e pelo lançamento aéreo de armas. Nenhum setor dos anti-imperialistas se levantou significativamente para condenar esta flagrante intervenção de Washington – pela razão óbvia de que a alternativa teria sido o esmagamento de uma força ligada a um movimento nacionalista de esquerda na Turquia que toda a esquerda tinha tradicionalmente apoiado.

Mais tarde, Washington colocou tropas no terreno no nordeste da Síria para apoiar, armar e treinar as Forças Democráticas Sírias (SDF) lideradas pelo Curdistão. A única oposição veemente a este papel americano veio da Turquia, membro da NATO, o opressor nacional da maior parte do povo curdo. A maioria dos anti-imperialistas permaneceu em silêncio (o equivalente à abstenção), em contraste com a sua posição de 2011 sobre a Líbia – como se o apoio às insurreições populares de Washington pudesse ser tolerado somente quando estas fossem lideradas por forças de esquerda. E quando Donald Trump, sob pressão do presidente turco, anunciou a sua decisão de retirar as tropas americanas da Síria, várias figuras proeminentes da esquerda americana – incluindo Judith Butler, Noam Chomsky, o falecido David Graeber e David Harvey – emitiram uma declaração exigindo que os Estados Unidos “continuem a apoiar militarmente a SDF” (embora sem especificar que ela deve excluir a intervenção direta no terreno). Mesmo entre os neocampistas, muito poucos denunciaram publicamente esta declaração.

A partir deste breve levantamento das complicações recentes do anti-imperialismo, três princípios orientadores emergem. O primeiro e mais importante: posições verdadeiramente progressistas – ao contrário de apologias de ditadores pintadas de vermelho – são determinadas em função dos melhores interesses do direito dos povos à autodeterminação democrática, não por oposição irrefletida a qualquer coisa que uma potência imperialista faça sob quaisquer circunstâncias; os anti-imperialistas devem “aprender a pensar”. Segundo: o anti-imperialismo progressista exige a oposição a todos os Estados imperialistas e não colocar-se do lado de uns imperialismos contra outros. Finalmente: mesmo nos casos excecionais em que a intervenção de um poder imperialista beneficia um movimento popular emancipatório – e mesmo quando é a única opção disponível para salvar tal movimento da repressão sangrenta – os anti-imperialistas progressistas devem defender a desconfiança total relativamente ao poder imperialista e exigir a restrição de seu envolvimento a formas que limitem sua capacidade de impor a sua dominação sobre aqueles que pretende salvar.

Qualquer discussão que se mantenha entre os anti-imperialistas progressistas que concordam com os princípios acima citados será essencialmente sobre questões táticas. Com os neocampistas quase não há discussão possível: ofensa e calúnia são oseu modus operandi habitual, de acordo com a tradição de seus antecessores do século passado.


Texto publicado originalmente no The Nation. Tradução publicada pela Fundação Lauro Campos. Editada para português de Portugal pelo Esquerda.net.

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