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Nas eleições brasileiras, as massas se revoltam. E elegem seus algozes

O candidato a ditador teve votação estrondosa em bairros populares das grandes metrópoles. Estranho? Sim. Mas vivemos tempos estranhos e é preciso que a esquerda os entenda se quiser ter um futuro. Artigo de Reginaldo Moraes para esquerda.net.
Um clip de propaganda termina com a evidente entronização do anjo salvador – dois anjos, na verdade, Moro e o capitão
Um clip de propaganda termina com a evidente entronização do anjo salvador – dois anjos, na verdade, Moro e o capitão

Nas eleições presidências brasileiras, vence um candidato de ultradireita, que promete repressão, censura, venda da soberania nacional e destruição de direitos sociais duramente conquistados. Não colheu apenas os votos dos ricos, mas seduziu visivelmente amplos segmentos dos despossuídos, do andar de baixo da estrutura social. O candidato a ditador teve votação estrondosa em bairros populares das grandes metrópoles. Estranho? Sim. Mas vivemos tempos estranhos e é preciso que a esquerda os entenda se quiser ter um futuro. Comecemos por esse exercício de compreensão. Peço a paciência do leitor, mas o texto precisa ser longo.

O que se deve explicar? As causas pelas quais os oprimidos se revoltam? Ou talvez fosse melhor explicar porque não se revoltam mais frequentemente, diante de tantas e tão frequentes injúrias. Essa questão já foi formulada muitas vezes. E talvez tenha tido uma resposta inesperada nas eleições presidenciais do Brasil. Afinal, ali parece ter ocorrido uma revolta, um grito de “basta!” singular, diferente daquele que a esquerda esperava ou desejava.

No cenário das eleições, as forças conservadoras e partidos tradicionais, autores do golpe-impeachment, preparavam seus candidatos “normais” e comportados, previsíveis e controláveis. Talvez fosse o tucano Geraldo Alckmin, governador de São Paulo. Talvez o banqueiro Meirelles, ministro da Fazenda. De início e durante muito tempo, o ex-capitão de ultradireita, Jair Bolsonaro, não figurava entre os candidatos palatáveis da direita “moderada”. Por tudo isso, era tratado como o “patinho feio” da campanha. Servia, talvez, como espantalho. Seu tempo de propaganda na TV era reduzido, sua estrutura partidária era frouxa, os empresários que o apoiavam estavam longe de ser os tradicionais compradores de campanhas e modeladores de candidaturas, os bancos, as empreiteiras, as grandes e tradicionais corporações. Pelo contrário, eram empresários aventureiros, aqueles que operam quase que no limiar da legalidade e que, justamente por isso, estão igualmente dispostos a operar com a mesma desenvoltura quase criminosa no “negócio da política”.

Pois foi esse outsider que resultou como a última esperança branca. Ou seja, aquilo que restou aos conservadores brasileiros e seus aliados ianques para conquistar a cadeira presidencial.

No calor da disputa, ficamos conhecendo a relevância de instrumentos especiais de controle de comportamento, as técnicas associadas a Steven Bannon e à Cambridge Analytics, que já haviam operado com sucesso no Brexit e na eleição de Trump.

A técnica é conhecida. Trata-se da coleta de informações de cidadãos com base em plataformas da internet (Facebook, principalmente) e em bases de dados de consumo (cartão de crédito, grandes redes, consultas no Google, etc.). Com essas informações – cruzadas com sua distribuição nos espaços regionais e indicadores de renda, educação, etc. – é possível constituir grupos determinados de pessoas e imaginar as mensagens que mais as seduziriam. Quem quiser ver uma exposição didática sobre a coisa, acione este link: https://vimeo.com/295576715.

Mas seria equivocado atribuir os resultados ao uso dessa tecnologia, por mais relevância que tenha para influir sobre a eleição. É preciso pensar nessa tecnologia como um catalisador importante para atuar em situações criticas, de disputa equilibrada, cabeça a cabeça. Ainda assim, ela não explica nem condiciona o cenário fundamental de que depende. E esse cenário parece ser o que podemos denominar de mudança fundamental na base social da esquerda política, se por esquerda entendemos algo tão amplo que inclua a social democracia europeia ou o liberalismo avançado (reformista) norte-americano, herdeiro do New Deal rooseveltiano. O “caso brasileiro”, afinal, talvez seja um exemplo mais de algo que se vem notando na América de Trump, na França de Le Pen ou em outras sociedades atingidas pelo terremoto da desindustrialização, da fragmentação do proletariado, da desagregação social. E, claro, das políticas de austeridade neoliberal.

Em suma, a tecnologia agressiva de Bannon e seus comparsas aplicou-se a um cenário fértil, que ocorre um pouco em cada canto do planeta. Mas o caso do Brasil, ainda que talvez tecnicamente menos sofisticado, parece mais grave, com efeitos imediatos bastante sérios. A tecnologia do engodo “científico” não apenas conseguiu influir decisivamente sobre o resultado da eleição, como nos outros casos. Está promovendo ou aprofundando um fenômeno social de desintegração. E provocando a emergência de verdadeiros tiroteios – infelizmente, já em sentido literal. Guardadas as proporções, podemos ter diante de nós uma balcanização da sociedade, com algo que se aproxima de um cenário hobbesiano, de guerra interna.

O caso do Brexit e mesmo o de Trump mostram que o procedimento de Bannon e seu grupo tem efeitos espantosos, mesmo em pessoas "normais" ou "equilibradas”. Em certos casos – em que há longos períodos de incerteza econômicas, desagregação social, desesperança coletiva - ele tem efeito multiplicador. É mais ou menos como gritar "fogo!" em um cinema lotado. Mesmo pessoas "equilibradas" e informadas reagem instintivamente (e de modo suicida).

O caso brasileiro tem alguns traços extremos, aparentemente mais agudos do que na Grã Bretanha do Brexit e nos Estados Unidos de Trump. O país foi submetido a quatro anos de massiva dissolução de esperanças, de desemprego e instabilidade. O cerco de sabotagem ao governo Dilma - desde o segundo semestre de 2013 - foi criando uma permanente sensação de impasse. Um impasse que congela, impede qualquer previsão de vida sadia, de esperança. Alguns podem conviver com isso. Mas apenas alguns. A maior parte das pessoas vai se exasperando com essa possibilidade, com essa ideia de "sem luz no fim do túnel". Dai, agarram o que lhes apresentam como "a mudança que vai regenerar tudo e fazer tudo voltar aos bons tempos". É essa a sementeira do capitão-candidato, não é o “antipetismo”, é o fruto da austeridade e da desagregação social e psicossocial dela resultante. As pessoas se tornam disponíveis para qualquer ideia maluca não por causa da idéia maluca – a idéia pode ser até mesmo uma grande asneira. A situação dramática e prolongada engendra multidões disponíveis para bodes expiatórios, teorias exóticas, mentiras obvias. Assim, há um percentual dos seguidores do capitão que podemos supor como fascistas fanáticos, quase doentes. Mas há uma enorme massa, aquela que o fez superar a faixa dos 15 ou 20%, que é outra coisa. É a multidão dos “disponíveis do desespero”.

"A condição para abandonar as ilusões sobre sua condição é abandonar uma condição que necessita dessas ilusões". O jovem Marx até que acertou...

 

A fábula educativa da nova direita

 

O conteúdo das explosões, seu sentido político, depende da capacidade de liderança e organização de quem as canaliza, pauta, dirige. O surto recente, com essa enxurrada de votos e a emergência de atitudes agressivas, de fato vinha sendo orquestrado homeopaticamente, há anos, pelos instrumentos de difusão majoritários no país, todos eles alinhados à direita. Temas da sinfonia se destacavam – o tema da corrupção, do aparelhamento do estado (por parte dos petistas, por suposto), o tema da imposição de uma régua moral “pervertida”, das políticas de concessão a “pobres que não merecem”. Mas a orquestração das idéias e sentimentos – modelando corações e mentes – apenas pontualmente resultava em manifestações públicas. No geral, ela seguia contida, silente, ou apenas murmurada. Era apenas um mau-humor latente, à espera de explodir. O homem providencial encarna essa aspiração de estouro. Os seguidores do capitão o chamam de “Mito”. Não por acaso, os homens do poder- aqueles da mídia e aqueles da toga - tiraram de cena o único personagem que podia disputar esse papel, o papel de sinalizar um futuro. Ele foi confinado a uma cela, sua voz e sua imagem foram simplesmente proibidas de aparecer em público. Esse sequestro da esperança era indispensável, para que um impostor aparecesse como o “anti-sistema”. Anti-sistema? Sim, é essa a imagem que o candidato fardado procura cultivar. Uma das mensagens do grupo fascista, pelas redes é esta: o sistema está agonizante, vamos derrotá-lo. Muito claro. E está claro, também, que se trata de um impostor – é tão evidente essa caracterização que o candidato-mito precisa evitar uma identidade. Precisa não falar. Precisa “mitar”.

Essa não é uma performance nova. Já vimos algo assim em um clássico da ficção política. Em Metropolis, o filme de Fritz Lang (1926), os chefões da sociedade percebem que os trabalhadores, esfolados, admiram e veneram uma professorinha. Uma idéia luminosa ocorre ao capitalista-mor: que tal sequestrar a professorinha e substituí-la por um robô que pregue a obediência, a subordinação? Tentam. Um cientista do mal constrói o engenho. Contudo, o robô se descontrola e começa a pregar o ódio, a falar o que não deve, a estimular a destruição de tudo e todos. Quando tudo parece ruir, quando os trabalhadores, sem sonhos e sem perspectivas, ameaçam detonar a cidade, aparece um salvador, um jovem dos segmentos superiores, bem intencionado, caridoso, que quer ser o “Intermediador”, aquele que concilia os dois lados e evita que a sociedade seja mergulhada no caos. Consegue – o filme celebra o aperto de mãos do capitalista e do líder da revolta. O nosso problema, hoje, é que o robô está enlouquecido, mas é ele que encarna o desejo dos de cima e, por ironia trágica, também o desespero dos debaixo. Na situação em que vivemos, o robô deu certo. Mas é louco.

O candidato-mito fala pouco. Apenas expõe clichês, sinais de clarim para a tropa, aqueles que julga mais estimulantes para manter eletrizadas as suas milícias. Alguns de seus seguidores, porém, acabam por dar forma ao plano. Expõem o apocalipse iminente e o evangelho da nova ordem.

É o que vemos em um clip de campanha. A peça de propaganda foi contestada pela equipe do capitão, parece ter suscitado incômodos nessa equipe. Talvez por isso sua campanha tenha entrado com pedido de suspensão – alega ser “fake”, ainda que tenha sido cuidadosamente produzida por apoiadores “bem intencionados”. É o hábito. Faz parte da estratégia de campanha do capitão: “tudo é fake, não fomos nós, não somos responsáveis por aquilo que fazem, a violência vem mesmo do outro lado”. O certo é que o clip, feito por “simpatizantes” que o candidato “não controla”, já se multiplicou no Youtube e em muitos outros canais de reprodução. O pedido do capitão ao TSE talvez o livre preventivamente de processos... De resto, o importante é o que essa "narrativa" revela. E o que ela revela é terrível. Você pode ver o filme neste link:

 

 

A gestação da serpente e sua mensagem sedutora

O clip começa louvando as grandezas do país, sua natureza fértil, seu povo trabalhador e criativo. Seu potencial. Em seguida, enuncia as razões pelas quais esse potencial é seguidamente frustrado. Aparecem os vilões. Importante destacar: o clip não poupa quase ninguém, inclusive os antigos aliados do capitão (ou atuais, a rigor). O candidato-mito precisa ser descolado do meio em que se criou. O PT, claro, é o vilão maior. Mas entram também os políticos dos partidos do golpe... toda a coalizão que fez o impeachment e compõe o governo Temer. Inclui também – importante – o Supremo (com algumas figuras selecionadas, destaque para Gilmar Mendes). Em suma, um clip de oposição, de terra arrasada, de “que se vayan todos”. E não menciono esse “que se vayan todos” sem motivo – mostra como um lema impreciso e apressado “de esquerda” é facilmente apropriado pela direita. E não foi o único. O clip termina com a evidente entronização do anjo salvador – dois anjos, na verdade, o juiz Sérgio Moro e o capitão. 

O tom da mensagem é esse: o Brasil está desgovernado, destruído por gente mal intencionada, corrupta, acomodada. O sistema. Daí, a conclusão parece impositiva: precisamos de alguém para botar o país nos trilhos. O recurso retórico é incisivo: retrata o desespero e oferta a salvação. Amém.

A mensagem enraivecida tem a forma de uma pinça. Explora a ojeriza dos de cima pelos de baixo, o nojo de pobre. E explora o ressentimento dos de baixo com os de cima, identificados como os “perfumados”, os educados, os engravatados que roubam e esnobam aqueles que trabalham.

O discurso do capitão anima suas tropas de choque mais fiéis, com muito ânimo para “derrubar as paredes”, quebrar “o sistema”. Algumas dessas tropas são recrutadas nos segmentos mais vulneráveis e mais angustiados pela incerteza reinante. E, ironia das ironias, essa incerteza insuportável é em grande parte aprofundada, precisamente, pelos autores da mensagem, através das políticas de austeridade. Uma parte dessa incerteza, aliás, é mais do que realidade, é o que se chama de “pós-verdade”, uma percepção da realidade cuidadosamente manufaturada. Milton Friedman, conhecido apologista das reformas neoliberais, costumava dizer que o melhor modo de fazê-las palatáveis era criar uma crise ou aprofundar uma crise. Acrescentemos uma outra possiblidade, a de ampliar a percepção de crise. Esta operação ideológica é uma arma fundamental para implantar soluções impensáveis em “tempos normais”. No caso brasileiro (e no americano também) há um movimento pensado e bem articulado de mídias e outras organizações de modelagem de ideias e sentimentos (como igrejas) no sentido de desenhar um mundo em decomposição, sob ataque de forças do mal, a requerer uma intervenção quase-divina, a intervenção do Mito, aquele que vem.

Paralelos históricos são sempre perigosos, simplificam, abusam das semelhanças sem levar em conta os contextos. Por outro lado, podem evidenciar possibilidades latentes. O paralelo que sugiro, apenas como provocação, por enquanto, é o das SAs nazistas. No movimento nazi, as SAs eram a agremiação mais fervorosa, popular e “socialista”. Ou “populista” – encarnavam o ressentimento dos debaixo com os de cima. Serviram bem a Hitler no inicio de sua ascensão. Propagavam a ideologia do ódio, atemorizavam os adversários, vandalizavam sedes de sindicatos e partidos, dissolviam reuniões. Mas viraram um risco, no momento em que o poder hitlerista se estabilizava. Quando esse momento chegou, as SAs foram liquidadas sangrentamente, massacradas pelo exército e sua SS. Não estou descrevendo esse fato gratuitamente. O movimento “irresistível” do nazismo é construído em torno de um Mito salvador, única fonte de certeza e segurança dentro de um mundo apodrecido, em torno de um conjunto de “certezas” imunes a argumentos, evidências, lucidez. Querer mostrar evidências a um nazi inflamado é quase inútil – cada argumento é tomado como um insulto. Desperta ainda mais violência.
 

Para onde vão o capitão, seu general e seus pastores?

 

Mas, como se disse, há uma hora para as SAs, no momento da subida. E há um momento para enquadrá-las, quando já cumpriram seu papel. O nazismo mobiliza gente de baixo – desempregados, subempregados, a classe média baixa insegura. Mas seu arsenal é pago por gente de cima, bem de cima. E, no caso de países-quintais, países de interesse de grandes potencias, conta com suporte de gente de fora – a famosa aliança da Casa Grande com a Casa Branca. Passado o momento da conquista – que precisa de mobilização do ódio – vem o momento da ocupação para a esfola cotidiana. O nazismo se transforma de movimento ruidoso em bonapartismo organizado, burocratizado, preferencialmente fardado.

Um outro elemento preocupante surge com essa analogia histórica. Depois de “pacificar” o interior do país, algo mais anima o líder, um celerado, mas racionalmente orientado pelos seus economistas. Ele precisa ativar a sociedade, criar empregos e dirigir as energias para outro inimigo, o externo. Ocupar regiões vizinhas, em outros países, onde residem minorias nacionais supostamente oprimidas. Por exemplo, digamos, o leste do Paraguai, onde há empresas e fazendas de brasileiros. Ou esterilizar países perigosos, que criam vermes – Bolívia, Venezuela. Um dos filhos do capitão já mencionou a necessidade de “dar uma lição a Maduro”. Uruguai, como sabemos, já foi território “brasileiro” – nada mal que se junte ao Rio Grande do Sul. Se uma aventura guerreira é inventada – e há loucos para isso – sabemos quem é a bucha de canhão. E quem sustentará o esforço de guerra patriótica. Os filhos do capitão – eles também envolvidos faz tempo nos partidos de ultradireita – já fizeram tais alusões seguidas vezes. E agora se acena com “parcerias” para tais aventuras no subcontinente: Trump estaria inclinado a “terceirizar” sua politica anti-Venezuela para os aliados Brasil e Colômbia.

O quadro é pavoroso. Talvez seja exagerado, não? Nunca vivemos tal pesadelo, ainda mais com o cenário de uma guerra estúpida contra os vizinhos. Sim, pode ser exagerado, mas a guerra “interna” não tem nada de imaginário – os tiroteiros, literais, como disse, já surgiram. Já vivemos os chamados anos de chumbo, os da ditadura militar. E já estamos no limiar de outra tentativa – os vencedores da eleição fazem questão de acenar com todos os símbolos das prisões e da tortura. Não me importa exagerar um pouco. Melhor contar com o pior, se queremos obter o inverso. O monstro ainda está em gestação, melhor saber disso.

Artigo de Reginaldo Moraes para o esquerda.net

(atualização da versão do artigo a 7 de novembro de 2018, às 16 h)

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