De dedo em riste, João Paulo II recusou benzer o homem que se ajoelhava perante si no aeroporto de Manágua a quatro de março de 1983. Exigiu-lhe que “antes se reconciliasse com a Igreja”. Com isso queria dizer que Ernesto Cardenal não podia ocupar o cargo de ministro da Cultura da Nicarágua. Como ele continuou, foi suspenso “a divinis” da Igreja.
Ernesto Cardenal, figura importante da Teologia da Libertação, não desistiu daquilo em que acreditava. A fevereiro de 2019, o Papa Francisco levantou a sua suspensão. Já então se encontrava hospitalizado devido aos problemas renais que o vitimaram nesta madrugada, aos 95 anos.
Foi a sua colaboradora de longa data, Luz Marina Acosta, quem transmitiu a notícia: “partiu numa paz absoluta, não sofreu”, disse à AFP.
Poeta e revolucionário
Ernesto Cardenal não foi apenas religioso. Antes disso, estudou Filosofia e Literatura na Universidade de Columbia nos Estados Unidos e no México. Viveu num mosteiro trapista nos EUA. Lutou contra a ditadura somozista e apoiou a Frente Sandinista de Libertação Nacional durante o período revolucionário de 1979 mas, escreveu nas suas memórias, já se tinha “tornado revolucionário muito antes do surgimento da FSLN”. “Foi Cristo que me conduziu a Marx”. Era assim que interpretava o cristianismo, como uma teoria e prática revolucionária, segundo as bases da Teologia da Libertação.
Foi o primeiro ministro da Cultura depois da revolução sandinista. Tomou como prioridade política a democratização da cultura. Em 1987, o cargo foi extinto numa reestruturação ministerial.
Nos anos noventa foi crítico do autoritarismo de Daniel Ortega. Dizia que a revolução sandinista falhou mas que se mantinha revolucionário. Numa entrevista ao New York Times, em janeiro de 2015, respondia: “a Bíblia está cheia de revoluções. Os profetas são pessoas com uma mensagem de revolução. Jesus de Nazaré pega na mensagem revolucionária dos profetas. E nós também continuamos a tentar mudar o mundo e a fazer a revolução. Estas revoluções falharam mas outras virão.”
Apesar do tom crítico ao regime, a sua influência ditou que o atual governo que não poupava marcou três dias luto nacional.
Foi nomeado para o Nobel da Literatura em 2005. “Hora Cero”, “Oracion por Marilyn Monroe y otros poemas” e “Epigramas” são apenas alguns dos seus vários livros. Na sua poesia, tanto a experiência íntima quanto a ciência tinham lugar.