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Meia dúzia de questões para pensar o Bloco

Contributo de José Soeiro

O processo de discussão lançado pela Mesa Nacional do Bloco tem mostrado uma organização viva, de militantes críticos e com vontade de pensar em conjunto o futuro do movimento.

Um colectivo militante e uma organização política, sabemo-lo pela experiência, não se constrói em torno de consensos sobre o passado, mas em torno de sínteses em relação ao futuro. Olhar para estes onze anos de Bloco vale a pena para percebermos onde fizemos melhor e onde ficámos aquém. Reflectir sobre o que correu mal não deve paralisar a acção. Pelo contrário, o debate é sobre os caminhos para a frente, no contexto de uma direita que tem todo o poder (pela primeira vez, uma maioria, um governo e um presidente), de um Governo agressivamente liberal, de uma era dos credores que amarra não apenas o governo mas uma parte da oposição que assinou do acordo com a troika, de um gigantesco processo de transferência de riqueza e ataque ao trabalho, de uma sociedade contaminada pela hegemonia da inevitabilidade, de um movimento social frágil para a dimensão das necessidades da luta. O debate é por isso sobre os caminhos da esquerda e os desafios do movimento popular. Só desses caminhos decorrem as discussões da forma e da organização.

Os partidos são todos iguais?

Para muita gente, dos que se envolveram no passado e se cansaram, mas também dos que saíram agora à rua por estarem à rasca, os partidos não têm nenhum encanto especial. São organizações burocráticas, com reuniões tendencialmente chatas, onde se despende muita energia na disputa de poder interno e onde grande parte da intervenção externa é feita por profissionais ou dentro das instituições em que só alguns podem estar. A imagem do Bloco como um partido dentro desta lógica, reforçada pela imagem de uma organização cada vez mais tacticista (as presidenciais e a moção de censura, combinadas, reforçaram a ideia de que as nossas escolhas são sobredeterminadas pelo cálculo da táctica e custaram-nos muita simpatia e votos) faz caminho.

E, no entanto, a ideia de que podemos fazer outra política de outra forma continua a ser uma das mais fortes que temos. Porque um partido é o que assegura a continuidade nas lutas e na memória do movimento emancipatório, porque num partido se fazem as sínteses e interligações entre as várias lutas, porque num partido elabora-se programa e articulam-se razões, é num partido que ganha sentido um projecto estratégico e a intervenção no tempo específico da política. Como criar, então, uma cultura política militante que seja transformadora, que atraia gente e que aproveite o melhor de cada pessoa?

Começar pelos princípios: o Bloco e as suas marcas genéticas

Passada mais de uma década, vale a pena voltar aos textos fundadores do Bloco, porque eles iluminam os motivos e a natureza do surgimento desta força política. Lembrar as razões fundadoras talvez evite que neste processo de debate se caia em duas armadilhas.

O primeiro risco seria, no rescaldo do desaire eleitoral, entender a vontade de que o Bloco contribua para mudanças concretas como um pretexto para transformar o Bloco num parceiro subordinado para um Governo contraditório com o nosso programa. A ideia de que, em nome de “contribuir para uma solução”, deveríamos ter como objectivo participar num Governo com o PS em que a nossa capacidade de influência seria sempre muitíssimo reduzida é uma ilusão e uma armadilha. Alguns sectores da sociedade portuguesa, nomeadamente sectores do PS, alimentam com simpatia esse sonho de que a missão do Bloco seria fazer pelo PS o que os militantes do PS nunca conseguiram. Mas basta ouvir o debate interno do PS para perceber que essa hipótese não existe. Na verdade, ninguém no Bloco propôs nunca essa solução. O Bloco tem de ser, na esquerda, uma alternativa ao PS e à sua direcção. Participar num Governo que não seja de ruptura com a troika e o capitalismo realmente existente faria com que passássemos a ser parte do problema e não da solução. Não existe hoje uma maioria política anti-liberal capaz de formar um Governo de esquerda e por mais que a urgência nos deva animar, a paciência impaciente do processo político concreto e da acumulação de forças é uma característica importante para os dias que correm. Devemos contribuir para soluções a partir de um programa próprio, no confronto com a política da troika e com quem a sustenta, criando maiorias sociais em torno de causas concretas que mudam a vida. Nestas, precisamos de toda a articulação e abrangência e de todas as pontes.

O segundo risco é, no contexto do balanço da pesada derrota que sofremos, rever o princípio fundador do Bloco como uma força aberta, popular e plural. Ou seja, aproveitar este debate para empurrar algumas pessoas para fora do Bloco, “purificar” a militância, seja defendendo um Bloco subordinado ao PCP, seja através da criação de fantasmas contra quem “não quer um Bloco vermelho”, seja na retórica timidamente sectária da “clarificação interna”. O Bloco nasceu para juntar forças a partir de um programa concreto de intervenção para os dias de hoje. É em torno desse programa, e não de rótulos, de fantasmas ou de chavões “revolucionários”, que se faz a delimitação do nosso campo político. No Bloco e na sua direcção têm de caber hoje cada uma das forças que o fundaram e ainda muito mais gente que foi chegando entretanto. A chave do Bloco foi a capacidade de, em lugar de incendiar antagonismos, desenvolver sínteses políticas aglutinadoras. Isso é válido para o passado e para o futuro. Seremos capazes?

De regresso às causas?

No início o Bloco ficou conhecido como um partido de causas. Isso distinguia-o, na esquerda, quer do PS quer do PCP. Do PS pelo que as causas revelavam acerca do nosso programa e matriz anti-capitalista e anti-patriarcal, não em chavões de propaganda, mas em propostas concretas. Do PCP pela capacidade de, em nome de conseguir mudanças palpáveis, querermos fazer diálogos políticos, movimento social aberto, plataformas de entendimento, mais democracia. Ao contrário do PCP, o Bloco queria mesmo “fazer parte da solução”, não através de negociações de governo, mas de batalhas concretas. Foi assim com a violência doméstica, com a despenalização do consumo das drogas leves, com a reforma fiscal, com o aborto, com o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Foi assim, até, na escolha de batalhas que pudessem agudizar as contradições no seio das outras forças políticas e fazer do Bloco um pólo de propostas alternativas. Aconteceu no Parlamento com medidas na área da saúde que hoje são lei, na área dos direitos lgbt e nalgumas questões de transparência fiscal, por exemplo.

Que avaliação fazemos destas experiências? Como avaliamos a diferença entre as que se sustentaram em movimentos e as que resultaram mais da relação de forças na Assembleia? Como desenvolver propostas que possam atrair outros sectores (activistas, abstencionistas desiludidos, sectores do PS) e criar, em torno de questões concretas, relações de confiança e cumplicidade? Qual o impacto que as nossas recentes decisões tácticas (Alegre, moção de censura, reunião com PCP, troika) tiveram nos diálogos construídos?

Na última resolução da Mesa Nacional decidimos que era preciso nesta fase, entre outras coisas, alargar a agenda do nosso combate político e recuperar algumas das questões de costumes para o debate. É uma boa ideia, sobretudo se soubermos que regressar às causas não pode ser encontrar dois ou três temas “fracturantes”, dar entrada no Parlamento do respectivo projecto de lei e ter a sensação de missão cumprida. Para ser a valer, tem de ter um outro alcance. É escolher as causas que podem gerar debate e clivagens na sociedade portuguesa (as drogas, a precariedade, a morte assistida, a parentalidade de gays e lésbicas, a auditoria à dívida pública, a privatização de serviços essenciais, um novo imposto sobre o património...) e pensar como transformá-las simultaneamente numa proposta concreta, numa área de trabalho militante e activista interno, numa campanha política para fora e num movimento social.

Para isso, precisamos de reinventar as nossas práticas. Dar mais responsabilidade a mais pessoas. Escolhermos ter a nossa agenda própria, para além da resposta à agenda política mediática e parlamentar. Criar grupos de trabalho temático sobre essas causas. Criar formas de pensar, sem tutela, como queremos dar força ao movimento social existente ou a existir. Multiplicar as formas de comunicação e puxar pela imaginação – sobre qualquer um destes temas, uma campanha pode incluir ao mesmo tempo, por exemplo, a edição de um livro, a distribuição de um panfleto, sessões públicas, peças de teatro, intervenção no espaço público, edição de postais, intervenção cultural, etc. Isto é válido para as causas nacionais como para as causas locais.

O papel dos movimentos sociais

O Bloco teve um papel importantíssimo em criar uma nova cultura de participação nos movimentos sociais. Em duas áreas particulares (não enuncio aqui as causas locais), podemos mesmo dizer que o Bloco teve uma acção determinante e exemplar: na questão do aborto e na questão da precariedade.

Contudo, nos últimos anos, o Bloco tem sido sobretudo um megafone (nomeadamente parlamentar) da agenda de alguns movimentos sociais e menos um elemento animador e densificador desses mesmos movimentos. Muitas vezes, temos uma relação instrumental com os movimentos: damos-lhe relevo quando as suas causas estão no centro do debate político e parlamentar, mas não investimos na continuidade da intervenção nem criamos espaços para uma reflexão entre os nossos activistas dos caminhos desses movimentos. Essa deficiência existiu e existe, por exemplo, no movimento dos professores, no movimento dos enfermeiros e da saúde, no movimento lgbt. Uma relação instrumental e passageira ou a geração artificial de movimentos “a partir de cima”, que não ganham corpo nem autonomia, não contribuem para uma relação de confiança com o Bloco nem para a construção de colectivos militantes em cada uma destas áreas que dêem continuidade à intervenção.

Noutros casos, falta-nos capacidade de estruturar uma acção de massas. Acontece essa debilidade no movimento estudantil e, provavelmente, no movimento sindical, onde o Bloco poderia certamente ter mais influência se criasse uma cultura que incentivasse mais os seus militantes (nomeadamente os mais jovens) a assumirem essas tarefas como centrais do ponto de vista da nossa acção.

Por outro lado, há um conjunto de experiências de construção de espaços alternativos, de formas participadas de auto-organização com hierarquia reduzida ao mínimo, de modalidades de acção directa e concreta com as quais devíamos aprender mais. O movimento da es.col.a, por exemplo, é uma experiência desse tipo. Não poderia haver mais? E não queremos nós ser também motores de coisas deste tipo?

Devemos ainda aproveitar o debate para pensar bem qual a nossa relação com fenómenos como a manifestação de 12 de Março ou o movimento das acampadas. O Bloco deve valorizar estes movimentos e o processo de politização que eles criam. Só participando activamente podemos, a partir de dentro da sua dinâmica, combater o discurso anti-partidos que vai fazendo caminho, porque ele é normalmente despolitizado, populista, hostil à própria ideia de organização colectiva de interesses e de opiniões e, por isso, da democracia como conflito de propostas. É não só a disputa das ideias mas também a nossa prática democrática que deve mostrar o absurdo desse discurso.

Por último, que movimentos e que respostas para este novo ciclo político? Se a questão dos credores e da dívida vai estar no centro do debate político, que argumentário deve ter uma campanha em torno da dívida? Que empenho queremos colocar num movimento de auditoria cidadã? Como vamos criar corrente de opinião em volta da questão da renegociação? Que papel podemos ter na articulação internacional da resistência, nomeadamente com os nossos camaradas gregos ou irlandeses? E que outras causas podem confluir numa dinâmica deste tipo?

A questão das correntes

O problema das correntes não é nem a sua existência nem a sua legitimidade. No Bloco as pessoas associam-se voluntariamente como entendem e isso faz parte da nossa democracia. A discussão sobre as correntes é apenas sobre o seu papel no contexto do acordo dentro da maioria. Sabemos como foram essenciais para a construção do Bloco e as vantagens que têm. Sabemos também os problemas que criam. Neste contexto, o problema pode ser posto assim. As correntes são um contributo positivo para o funcionamento do espaço da maioria sempre que promovem a discussão e a formação, quando permitem construir sínteses políticas, quando são espaço de integração e de manutenção de identidades que devem existir dentro mas para além do Bloco. As correntes dão um contributo negativo ao espaço da maioria sempre que a sua articulação significa que se diminuem os espaços de discussão da maioria e do próprio Bloco, sempre que privilegiam a articulação a três (e não a articulação entre todas as pessoas da maioria) para construir as decisões (o que tem tido um efeito nocivo de exclusão) e sempre que, na escolha de funcionários, dos órgãos de direcção ou de representação, os candidatos são escolhidos porque a corrente os escolheu e não porque o Bloco (ou o conjunto das pessoas da maioria) os tenha escolhido para os representar.

A questão não é, para nenhum militante do Bloco, que se deva decretar artificialmente o fim das correntes. A questão é que a maioria dos militantes do Bloco, que não tem corrente, quer ter uma palavra nas principais decisões. Quer sentir que a decisão depende deles. É o reconhecimento deste problema que leva uma pessoa como o Fernando Rosas, que não pertence a nenhuma corrente, a chamar a atenção para que as correntes “não esgotam o Bloco” e a vir propor que elas “se apaguem” para que se abram mais espaços de debate e democracia dentro da maioria e do partido.

A proposta de criação de um espaço mais permanente de discussão entre a Moção A é uma primeira resposta a alguns destes problemas. Ele pode contribuir para que as correntes “se apaguem” (na expressão do Fernando Rosas) em decisões que não lhes competem (nomeadamente a escolha de dirigentes, candidatos e funcionários) e se concentrem no que de positivo podem trazer ao Bloco. Para isso, tem de ser um espaço de democracia e de síntese política e não pode ser tutelado por ninguém, mas construído desde a raiz de forma horizontal entre os bloquistas que têm feito parte da maioria, de baixo para cima. Ele tem de assentar em relações de confiança e não em disputas surdas e contagem de espingardas. Por outro lado, este espaço será positivo se contribuir para mais debate no Bloco, mais diversidade e mais espessura na democracia interna; será negativo se contribuir para afunilar o debate, limitar a sua expressão ou esvaziar os espaços do Bloco no seu todo. Depende de nós.

Renovação: o tempo de uma cultura de trabalho em comum

A questão da renovação do Bloco não vem de agora. E a pior forma de fazer o debate é a partir de uma proposta de “decapitar” a direcção ou de fulanizar a discussão no nosso coordenador. Um partido de esquerda não é, como alguém disse, um partido de abutres, mas pelo contrário de responsabilidade e direcção colectivas.

A renovação coloca, por isso, desafios mais vastos e profundos do que o simples refrescamento das caras. Por exemplo, é impossível criar novos protagonismos e novos quadros bloquistas sem a existência de espaços fortes de debate político dentro do Bloco. Renovar significa, então, que haja mais densidade nos vários níveis de discussão e de direcção. Por outro lado, a lógica da renovação dirá também se o Bloco valoriza mais a experiência de quem arrisca fazer activismo e se constrói no confronto com a diferença que está lá fora e na aprendizagem do movimento ou se dá primazia à militância de corrente. A afirmação de novos dirigentes exige o tempo das pessoas ganharem respeito no conjunto do Bloco pelo seu trabalho e pela sua capacidade dirigente e exige a criação de uma cultura de trabalho comum. Sem esses dois elementos, corremos o risco de ter uma renovação etária em que cada corrente indicará os seus, mas não teremos certamente uma nova direcção forte para o Bloco de Esquerda, construída e decidida pelos seus activistas. Essa é também uma questão essencial para o futuro.

José Soeiro

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