Marisa Matias e José Manuel Boavida conversam sobre respostas para diabéticos durante pandemia

14 de novembro 2020 - 11:23
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José Manuel Boavida: Saiu um artigo no The Lancet em que se diz que as doenças não transmissíveis continuam a ser o parente pobre da saúde. Embora sejam os grandes responsáveis pela morbilidade e pela mortalidade nos países desenvolvidos, como Portugal. Temos mais de 85% da mortalidade provocada pela diabetes. Diabetes, cardiovasculares e depois cancro e doenças respiratórias são as quatro grandes patologias. Depois há a quinta, do ponto de vista da morbilidade, que é a saúde mental. E estas cinco grandes patologias são absolutamente prioritárias e necessitam de uma abordagem específica e nova. Houve avanços, como a declaração do Parlamento Europeu sobre a diabetes, o aparecimento das doenças crónicas nos objetivos do milénio e agora nos objetivos sustentáveis. Mas tem sido um processo em que andamos pezinho a pezinho, nada se vê ainda de concreto. Estamos muito presos por estruturas pesadas, rígidas, que não perceberam que os modelos de saúde têm que mudar.

Marisa Matias: E depois, quando temos serviços de saúde, ou sistemas de saúde, muito sobrecarregados e pouco financiados, e com falta de recursos humanos, a tendência é sempre mobilizá-los para situações de emergência, ou, neste caso, para as doenças transmissíveis, e não para aquilo que, na realidade, é o indicador básico da saúde de uma população. Se olharmos para a mortalidade, de facto, as doenças não transmissíveis são as principais causas de morte e não têm metade da atenção.

José Manuel Boavida: E há indicadores que são extremamente perigosos, como a produtividade. São os indicadores transmitidos pela indústria como se a saúde fosse uma máquina de montagem de carros, como se quiséssemos montar mais gente. Portanto, vamos ver a redução do tempo, redução da disponibilidade, e a canalização para aquilo que é mais valorizado. Há um aspeto que me parece muito relevante na pandemia, que é a necessidade da valorização das verdadeiras profissões. E de percebermos que há um leque enorme de profissões que pode estar de quarentena e que não foi propriamente sentida diretamente na sua situação. Aqui é exatamente a mesma coisa. Estamos com uma hipervalorização de uma série de atos, quando outros atos, nomeadamente de educação, de acompanhamento, de suporte, de apoio, que podem fazer completamente a diferença, principalmente nestas populações mais envelhecidas, são muito menosprezadas nas grandes intervenções.

Marisa Matias: Sim, a linha geral dos cuidados, no sentido mais amplo do termo.

Em muitos países da União Europeia, onde falharam os medicamentos, foi precisamente em relação às doenças não transmissíveis, não foi apenas da diabetes, mas foi também da hipertensão. Até mesmo doença oncológica. Houve problemas sérios nessa área.

José Manuel Boavida: As indicações que Associação deu, e fizemos essa comunicação alargadamente, foi que as pessoas deviam ter medicação para um a dois meses em casa. Isso chega, não precisam de ter medicamentos para seis meses em casa, não há necessidade nenhuma disso, e poderia ser perigoso, no sentido de haver problemas de stock. Rapidamente o balão esvaziou e a situação decorreu de forma normalíssima. A partir de abril nunca mais houve nenhum caso relacionado com esses boatos, com essas situações de receio de que alguma diminuição houvesse.

O mesmo não podemos dizer do acesso aos serviços de saúde. Aí, a situação foi diferente. Vários estudos mostraram que, quer por receio das pessoas, quer por falta de disponibilidade na altura em que as pessoas precisam, houve uma diminuição no acesso à saúde. Embora as mensagens por telefone, as tele-consultas possam em parte minorar a situação, é absolutamente insuficiente, e há pessoas que não se sentem minimamente satisfeitas com esse tipo de consultas. Há quem goste, e pessoas mais diferenciadas. As pessoas que estão habituadas a este tipo de trabalho e de comunicação recebem bem essa proposta. Quem está sozinho, quem está isolado, nos primeiros dias achou fantástico, maravilhoso, mas depois... A Associação montou um serviço, como dois terços do pessoal estava em casa, faziam chamadas para casa das pessoas que vieram nos últimos cinco anos à Associação, no sentido de perguntar como estavam, se precisavam de alguma coisa, se precisavam de medicamentos. E marcavam consultas quando não faziam as consultas. E esse tipo de telefonemas foi extremamente bem recebido. Depois funcionaram também as consultas, principalmente online, e bem. Mas a partir de certa altura começámos a aperceber que as pessoas diziam "então e eu não posso ir aí? Eu sei proteger-me…"

Marisa Matias: Dá outra segurança…

José Manuel Boavida: E é preciso o contacto cara a cara, é preciso olhar nos olhos, é preciso sentir o calor humano. Tudo isso é claramente transmitido. Neste momento estamos em cerca de metade das pessoas presencial, metade online, mas com a indicação de que pelo menos uma vez por ano as pessoas possam vir. Isto é fácil para as doenças de continuidade, e é essa a grande vantagem da doença crónica. Temos tempo, temos possibilidades de remediar aquilo que foi mal feito. Podemos remarcar as pessoas sempre que houver alguma dificuldade, alguma urgência. Quando eram problemas do pé, quando eram problemas dos olhos, aí as pessoas tiveram que vir sempre, e mantivemos sempre. Ao nível do país, as situações são diferentes. Os cuidados primários estão muito sobrecarregados com os telefonemas para casa, e há aí uma inércia enorme na inovação deste tipo de coisas. A maior parte dessas chamadas, não precisam de ser feitas por um médico. Há um acomodar dessa situação. Os enfermeiros dizem sempre "Ah, não temos mais médicos! Ah, não há mais médicos em Portugal", mas os enfermeiros podem e devem colaborar nesse trabalho, e podem fazer muito desse trabalho.

Marisa Matias: Numa situação de acompanhamento já o fazem.

José Manuel Boavida: Já o fazem e, portanto, podem assumir isso. É preciso priorizar as atividades dos médicos e, para isso, as pessoas têm que se organizar localmente com os recursos que têm. E têm que ter autonomia para isso. E as estruturas do Ministério da Saúde, mais uma vez, são muito rígidas, muito formais. É necessário, claramente, ter coragem de inovar, de descentralizar, de permitir a cada unidade que encontre as suas formas de se articular e os meios para isso. Muitas vezes, a Junta de Freguesia, a Proteção Civil podem fazer algum desse trabalho.

É preciso perceber que a estrutura de saúde tem de enquadrar-se não na cabeça dos gestores da saúde e das autoridades de saúde, mas na cabeça das pessoas. Temos de estar ao serviço das pessoas, perceber de que é que as pessoas necessitam, como é que reagem, porque são reações absolutamente naturais. As pessoas isolaram-se, fugiram para a província, encontraram o seu próprio espaço. E essa análise e essa variedade deveria ainda hoje ser extremamente útil para percebermos como é que podemos devolver a confiança às pessoas, devemos reintegrar as pessoas nos sistemas de proteção de saúde e claramente as doenças crónicas não transmissíveis são aquelas que são absolutamente mais marcantes.

Marisa Matias: E onde precisamos de trabalhar melhor, sem dúvida.