O Ribatejo a viu nascer. Corria o outono de 1893, na então vila de Torres Novas. Foi depois em Lisboa que ela se tornou uma figura cimeira do feminismo. E uma destacada resistente à ditadura de Salazar – três vezes presa pela PIDE. Mas não esqueceu as suas raízes. Nem deixou de semear, na sua terra, as causas a que se dedicou.
Jornalista
Na primavera de 1929, Maria Lamas era uma das raras mulheres que em Portugal conseguiam ter uma carreira profissional como jornalista.
Ainda estava longe de assumir a liderança da associação feminista mais em voga à época, o «Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas». A qual acabaria encerrada pela ditadura, em 1947.
Mas foi a partir do seu trabalho como jornalista que Maria Lamas se salientou na defesa da igualdade de género em Portugal. E foi nesse contexto que veio a Torres Novas, proferir uma conferência.
Maria Lamas presa pela PIDE, em dezembro de 1949 [Arquivo PIDE/DGS, Arquivo Nacional da Torre do Tombo].
As mulheres na história
O dia era 10 de Abril de 1929. E, segundo uma testemunha ocular, “muito antes da hora marcada, já a sala se encontrava literalmente cheia, predominando, pela sua grande maioria, o elemento feminino”.[1]
Maria Lamas falou sobre a história da “Mulher – sua evolução através dos séculos e das civilizações”.[2]
Naquele tempo, tratava-se de uma temática inovadora. Pois as mulheres eram sistematicamente menorizadas e apagadas da história.
Afinal, as desigualdades sociais também se refletem nas formas como a história é concebida e contada.
Entre outros tópicos, Maria Lamas “salientou o grande impulso que”, na antiguidade, o cristianismo nascente deu à emancipação da mulher”. E referiu-se “com satisfação da Revolução Francesa, a mãe da democracia”.
Por fim, aludiu “às reivindicações feministas, congratulando-se por ver que em certas nações” já estavam chamando “a mulher a comparticipar da gestão dos estados”. [3]
Norton de Matos
A ditadura de Salazar encenava eleições. Com mais afinco a partir de 1945, depois da derrota dos regimes congéneres (alemão e italiano) na 2ª Guerra Mundial.
Eram umas eleições falseadas em todos os aspetos, desde o recenseamento de quem tinha direito a votar até à contagem dos votos. Mas, durante algumas semanas, a censura abrandava e eram permitidas algumas atividades de campanha eleitoral.
A oposição tentava aproveitar essa abertura relativa, para difundir ideias democráticas. E alimentar a esperança de uma mudança de regime.
Por sua vez, a ditadura aproveitava para identificar opositores, alguns dos quais vinham depois a ser presos. Como aconteceu a Maria Lamas, em 1949.
Em fevereiro desse ano, houve “eleições” para a presidência da República. E a oposição concentrou-se na candidatura de um velho general republicano, Norton de Matos.
O candidato não chegou a ir a votos, em protesto contra a falsificação das eleições. Mas ainda conseguiu suscitar uma assinalável participação popular na sua campanha.
Foi todo um movimento de norte a sul do país. E entre as suas novidades esteve o nível de protagonismo político de mulheres. Uma das mais destacadas foi a torrejana Maria Lamas, com seus discursos em sessões de propaganda por vários distritos, como Évora, Lisboa, e Setúbal.
Liberdade
No dia 24 de janeiro de 1949, Maria Lamas marcou um momento da resistência à ditadura em Torres Novas.
Presidiu ali a um comício da campanha de Norton de Matos. E “foi recebida com indescritível entusiasmo”, sendo “saudada vibrantemente por todos os presentes”. [4]
Aconteceu no antigo Teatro Maria Virgínia. E “entre os convidados que enchiam o Teatro, viam-se senhoras”. Também se contavam representantes das várias aldeias do concelho, e de outras terras “como Tomar, Santarém, Entroncamento, Alcanena, Vila Moreira, etc.”.
Quanto ao cenário, “no palco, sobriamente decorado, via-se o retrato do Candidato da Democracia, sobre uma enorme bandeira portuguesa, dísticos alusivos à sua candidatura e na sala, ornamentada com colchas e flores, destacavam-se cartazes de propaganda”.
A sessão abriu com o hino nacional, cantado “entusiasticamente por toda a assistência e com vivas à Pátria, à Democracia, à República, a Norton de Matos, etc.”
Abrindo a série de discursos, Maria Lamas referiu-se “à magnitude do momento” e chamou “para ele a atenção de todos os bons portugueses democratas e em especial a atenção da mulher”. Afirmando que “tal como o homem, também a mulher sofre com o desaparecimento de liberdade, pelo que a incita a lutar” pela sua conquista.
Falaram alguns outros oradores, como Manuel Ginestal Machado, advogado de Santarém e responsável distrital pela campanha; ou José de Oliveira Reis, médico de Torres Novas que presidia à comissão concelhia da candidatura.
“A sessão terminou com vivas ao sr. general Norton de Matos, à República, à Democracia e à Liberdade”.[5]
No mês em que se assinalam os 40 anos da morte de Maria Lamas, também cabe recordar estas sementes que ela lançou à terra onde nasceu.
Luís Carvalho é investigador.
Texto publicado originalmente no Mais Ribatejo.
Notas:
[1] «A Voz da Justiça», 20/04/1929, p.2
[2] «O Almonda», 13/04/1929, p.2
[3] «A Voz da Justiça», 20/04/1929, p.2
[4] «República», 25/01/1949, p.5
[5] «Primeiro de Janeiro», 27/01/1949, p.5.