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Manuel Graça: Operário do calçado, soldado na Revolução

No primeiro aniversário da morte do histórico líder sindical do calçado de Aveiro, o Esquerda.net publica integralmente a entrevista de vida publicada em 2008 por Elísio Estanque.
Foto de Paulete Matos.

O sociólogo Elísio Estanque, autor do livro "Entre a Fábrica e a Comunidade - subjetividades e práticas de classe no operariado do calçado" (Afrontamento, 2002) publicou em 2008 uma longa entrevista de vida com Manuel Graça, incluída no livro "As Vozes do Mundo" (Afrontamento, 2008).

À detalhada biografia introduzida por Elísio Estanque, a quem agradecemos, na introdução da entrevista, acrescentamos informação sobre a atividade de Manuel Graça após 1975, nomeadamente a sua atividade como membro do Conselho Nacional da CGTP.

Na luta prolongada e vitoriosa pelas 40 horas semanais no setor, Manuel Graça enfrentou um dos patronatos mais retrógrados do país, chegando a ser internado na sequência de graves agressões cujo autor moral, um industrial da região, acabou por ser condenado em tribunal. Num período marcado pela explosão das falências fraudulentas, em que milhares de trabalhadores eram deixados com salários em atraso e sem descontos pagos à segurança social, dirigiu ocupações e piquetes em empresas, evitando a remoção de equipamentos e matérias-primas no sentido de assegurar o cumprimento dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras. Num setor altamente feminizado, a defesa da condição da mulher e da igualdade salarial foram sempre bandeiras do Sindicato do Calçado.

Membro do Conselho Nacional da CGTP, Manuel Graça foi voz de um sindicalismo crítico e combativo, interveniente nos debates sobre democracia no movimento operário. Em 1995, nas páginas da revista Combate, intervinha na polémica então aberta entre Boaventura de Sousa Santos e Álvaro Cunhal a propósito da renovação e da unidade na luta sindical. Escrevia já então Manuel Graça: "o que está a corroer os sindicatos é a corrupção [a grande fraude da UGT com fundos europeus era ainda recente], a falta de combatividade, a ausência de democracia interna, a falta de autoridade social, o controleirismo partidário e até a luta de cliques. Os sindicatos ou mudam ou morrem, ou representam os trabalhadores em toda sua diversidade ou esgotam-se".

Militante de uma vida inteira, Manuel Graça foi um exemplo de coragem e sensibilidade. Atingido por doença degenerativa, há quase uma década que Manuel Graça se encontrava retirado da intervenção.

INTRODUÇÃO

Manuel Graça é dirigente do Sindicato dos Trabalhadores do Calçado e Afins dos distritos de Aveiro e Coimbra. Conheci o Manuel Graça em 1989, quando iniciei os meus primeiros trabalhos de investigação sobre o sector industrial do calçado em S. João da Madeira. A sua disponibilidade e o interesse que desde o início demonstrou pelo meu trabalho, bem como o facto de ambos termos constatado a existência de diversos pontos em comum, quer no que se refere ao envolvimento político no período revolucionário de 1974/1975, quer quanto à postura de solidariedade com as lutas dos trabalhadores, conduziram ao estabelecimento de uma relação de grande cumplicidade, frontalidade e até amizade, que ainda hoje se mantém. A entrevista que abaixo se apresenta é, de resto, ilustrativa dessa relação de à-vontade que existe entre o entrevistador e o entrevistado.

Se é certo que a nossa condição social é distinta, e apesar de em qualquer dos casos existirem sempre distorções variadas em qualquer situação de interacção e comunicação, o interconhecimento existente entre nós, é sem dúvida um importante factor facilitador do sucesso da entrevista. Por outro lado, a afinidade pessoal existente entre nós foi igualmente um aspecto decisivo na obtenção dos elementos biográficos do nosso entrevistado, que passo a apresentar.

Manuel Graça nasceu em 1953. Os seus pais eram ambos operários na indústria vidreira, em Oliveira de Azeméis, numa das maiores empresas do ramo (o Centro Vidreiro). Com mais sete irmãos, e perante as necessidades económicas e o despedimento do pai, MG seguiu o exemplo dos irmãos mais velhos e começou cedo a sua actividade produtiva, mal tinha completado a quarta classe do ensino primário, com dez anos de idade. Estava-se então nos primeiros anos da guerra colonial e um dos seus irmãos mais velhos foi, pouco depois, mobilizado para Angola (em 1964). 

Centro Vidreiro de Oliveira de Azeméis, via Blogue Azeméis no Passado.
Centro Vidreiro de Oliveira de Azeméis, via Blogue Azeméis no Passado. 

Antes, o pai de MG tinha sido despedido da empresa onde trabalhava supostamente por ter aderido a uma greve e se relacionar com pessoas conotadas com a oposição. A questão colonial tornou-se então um dos temas quentes da política nacional e, apesar da apertada repressão e da censura, era assunto corrente nas conversas de café, principalmente entre os sectores juvenis com maior consciência social. 

MG trabalhou inicialmente na fábrica de calçado «Praça», também sediada em Oliveira de Azeméis. Os patrões da empresa eram conhecidos pelas suas simpatias com os nazis e tinham ligações à Alemanha por via de negócios de ligados à industria de calçado, inclusive tinham na empresa um retrato de Hitler. 

MG recorda que as condições de trabalho eram terríveis. Entrava às 8h da manhã e saía às 19h (e muitas vezes depois disso), a semana inteira, incluindo os sábados. O seu salário era então de 7$50 por semana. Durou cerca de seis anos esta sua primeira fase de experiência laboral, em que sentiu na pele as dificuldades da vida para quem não tinha acesso a outras alternativas. 

A partir dos 15-16 anos começou a frequentar o café com mais assiduidade, tendo então reencontrado alguns dos seus amigos, antigos colegas de escola, que entretanto tinham continuado os estudos já que, ao contrário da sua condição, estes eram na sua maioria filhos de pais de classe média e com instrução elevada, que brevemente dariam entrada na Universidade. Este reencontro foi para ele importante na medida em que suscitou um contacto com opiniões críticas face à guerra colonial e ao próprio regime de Salazar. 

O café que MG frequentava ficava nas proximidades de uma associação local, a ARCA (Associação Recreativa e Cultural de Azeméis), de que faziam parte alguns dos seus amigos e neste período - meados dos anos sessenta tinha-se gerado um ambiente de tertúlia e de discussão, o qual, aliado às várias actividades recreativas, acrescentava-se-Ihes como elemento enriquecedor do entretenimento pós-laboral no dia-a-dia deste futuro dirigente do sindicato do calçado.

Logótipo da Associação Recreativa e Cultural de Azeméis.
Logótipo da Associação Recreativa e Cultural de Azeméis.

Foi neste ambiente que MG começou a tomar consciência das condições de exploração em que se encontrava na empresa, onde auferia menos de dez escudos por semana. Os seus amigos mais instruídos questionavam-no, e ele, por sua vez, passou a questionar mais a sua situação no trabalho. Como já dominava as diferentes operações produtivas no fabrico de calçado - preparação, corte, montagem, acabamentos, etc. -, sentia-se injustiçado. Ponderou alternativas. Mudou-se para outra firma, a fábrica de calçado «FÉMINA», onde passou a ganhar, por dia, tanto como antes recebia semanalmente.

No entanto, os problemas continuaram, ao mesmo tempo que aumentava a sua consciência das injustiças laborais e sociais. Procurou informar-se dos seus direitos junto do sindicato corporativo do sector (como se sabe, enquadrado nas estruturas autoritárias no Estado Novo), mas o resultado disso foi a informação transmitida pelos «bufos» do sindicato (delatores que colaboravam com a polícia política do regime) à entidade patronal sobre as suas atitudes potencialmente «subversivas».

Aos dezassete anos, MG já participava activamente nas actividades culturais da ARCA, dedicando-se em especial à secção de cinema e poesia. Na segunda metade dos anos sessenta, estava já familiarizado com as novas correntes de música rock, que estavam a emergir na Europa e América do Norte, associadas ao movimento hippy, às ideias pacifistas e à rebeldia juvenil dessa época(1). 

Como é sabido, os movimentos sociais de finais dos anos sessenta, ao mesmo tempo que transportavam novos valores e práticas culturais, eram marcados pela irreverência e sentido crítico no plano político. Escritores e poetas conotados com a oposição ao regime, e até alguma literatura proibida - nomeadamente de autores africanos, como Amílcar Cabral - circulavam clandestinamente entre os membros da ARCA. Todas estas influências marcaram bastante a juventude de MG.

Por outro lado, um acontecimento como o assalto ao Banco da Figueira da Foz, liderado por Palma Inácio, foi também tema de reflexão entre os amigos de MG, além do mais porque um dos elementos que participou no assalto (Mortágua) era natural daquela zona. Embora com a consciência política ainda algo difusa, já se considerava porém um antifascista e crítico do regime, pelo que aquele acontecimento mereceu a sua simpatia. Entre os seus contactos incluíam-se activistas do PCP (Partido Comunista Português) e de correntes mais radicais, nomeadamente membros do núcleo fundador da LCI (Liga Comunista Internacionalista) (2). Participou até em iniciativas de formação teórica promovidas por esse grupo, onde se discutiam autores como Marx, Lenine, Trotsky, Mao Tsé Tung, Teoria Económica de Ernest Mandel, entre outros. Chegaram a promover uma discussão sobre a atitude a adoptar perante o recrutamento militar, equacionando-se a hipótese de deserção, mas a posição prevalecente foi a de integrar o exército e no seu seio desenvolver trabalho de consciencialização.

Levando na bagagem esta formação, MG ingressou no serviço militar em Janeiro de 1974, pouco antes do 25 de Abril. A sua consciência antimilitarista e antiguerra colonial, bem como a ampliação dos seus contactos a outras associações de cariz oposicionista favoreceram-lhe as novas relações que veio a desenvolver, já enquanto recruta no quartel de Viseu. Aí desenvolveu alguma actividade clandestina de propaganda contra a guerra das ex-colónias. Mas, terminada a recruta e já com o golpe militar do 25 de Abril de 1974 quase iminente, MG foi colocado em Queluz (3), pois, entretanto havia sido mobilizado para a Guiné, embora nunca tenha chegado a embarcar. Os seus contactos com as organizações partidárias referidas permitiram-lhe aceder a informações acerca do MFA e estava ao corrente quer das movimentações ligadas à tentativa de golpe no 16 de Março (4), quer do próprio 25 de Abril.

Na noite de 24 para 25 de Abril aguardava com ansiedade, ouvidos colados à rádio, a passagem da canção de José Afonso «Grândola Vila Morena», como se sabe, a senha que poucos conheciam, destinada a confirmar o arranque das operações militares. Os seus camaradas de aquartelamento duvidavam das indicações que MG lhes confidenciou a esse respeito, mas no dia seguinte puderam celebrar, como o povo português em geral, a queda do velho regime e a conquista da liberdade.

MG saiu por volta das 6h da manhã num jipe com um grupo de militares para as ruas de Lisboa. Esteve na zona da Estrela e mais tarde participou na ocupação dos estúdios da antiga Emissora Nacional, na Rua de S. Marçal. Os soldados misturaram-se com o povo, que teimou em sair à rua apesar dos constantes apelos em sentido contrário.

Soldados ocupam o telhado das instalações da Emissora Nacional, na Rua do Quelhas. Imagem de A Capital de 25 de abril de 1974, edição das 12 horas.

Na opinião de MG foi essa teimosia do movimento popular que permitiu a vitória das forças democráticas. No quartel de Queluz quiseram demitir o comandante conotado com o regime deposto, tomar conta do quartel e eleger um novo comandante. Mas o velho graduado manifestou nos dias seguintes a sua «adesão» ao movimento, embora na verdade tal atitude fosse para muitos pouco convincente. Mais tarde acabou por ser substituído. 

Emissora Nacional ocupada por soldados no dia 25 de abril de 1974. Via Arquivo Municipal de Lisboa.
Emissora Nacional ocupada por soldados no dia 25 de abril de 1974. Via Arquivo Municipal de Lisboa.

A luta pela democracia nos quartéis tornou-se de imediato parte integrante da intensa actividade política e social que se desencadeou a partir da madrugada do 25 de Abril. Como noutras unidades militares, no quartel de Queluz, o incontrolável desejo de participação conduziu à extinção de espaços distintos para soldados sargentos e oficiais (no que respeita a refeitórios e salas de convívio) passando a existir um mesmo espaço partilhado por todas as patentes. Decisões colectivamente tomadas com votação de braço no ar e com o MG já no desempenho de funções dirigentes enquanto membro da «Comissão de Soldados» do quartel.

Por todo o lado - nas empresas, nas escolas, nos bairros, nas repartições públicas, etc. - as populações e os trabalhadores começaram a organizar-se, e o desejo de participação e a dinâmica revolucionária rapidamente conduziram a formas de «justiça popular», umas espontâneas outras à mercê de manipulações político-partidárias, dando lugar a todo o tipo de excessos, próprios do clima revolucionário da época. Sucederam-se os saneamentos políticos e multiplicaram-se as formas de manipulação e oportunismo político.

Nos meses que se seguiram ao 25 de Abril, as unidades das Forças Armadas e mais tarde o COPCON5 passaram a intervir em diversos campos no sentido de arbitrar conflitos, já que o poder institucional perdera toda a legitimidade e se encontrava paralisado. A legitimidade revolucionária saía porém reforçada se apoiada pelo MFA. 

Manuel Graça chegou a integrar secções de militares destacados para regular alguns desses conflItos, nomeadamente nas empresas. A sua formação ideológica, apesar de inserida no campo do marxismo, já lhe permitia algum distanciamento face ao dogmatismo, em especial o que era veiculado pelo PCP. Numa empresa de Queluz, os trabalhadores reunidos em plenário votaram por maioria que o patrão devia continuar à frente da empresa, contra uma minoria (os representantes daquele partido) que propunha a sua expulsão.

«Lá fui eu, com um oficial miliciano e mais dois companheiros, representando o COPCON (...). Na reunião eu defendi: "é pá eu acho que se vocês discutiram e decidiram por votos, essa decisão é válida, caso contrário é fraude". O que eu defendo é que haja discussão e votação democrática. Depois de se fazer isso não se pode ficar eternamente a teimar. E por isso eu disse: "se formos por aí, amanhã não temos legitimidade nenhuma" (...). 

Mesmo naquele contexto, em que uma parte significativa dos portugueses começava a aderir à ideia de que seria possível construir em Portugal uma sociedade de matriz socialista, MG tinha sérias desconfianças quanto a isso. Segundo revelou, as suas influências ideológicas, levaram-no a reconhecer a necessidade de uma articulação entre democracia participativa e representativa.

Naquele período, MG, apesar de ainda estar vinculado ao exército, participava enquanto cidadão na actividade política, tendo integrado diversos movimentos populares na zona de Lisboa. Fez ainda parte dos SUV (Soldados Unidos Vencerão)(6) e integrou diversas acções e manifestações, como por exemplo na criação de comissões de moradores e no movimento de ocupação de casas devolutas em Lisboa. Acreditava que não fazia sentido a existência de casas desocupadas enquanto havia gente que dormia na rua ou em barracas, sem um mínimo de condições. Às populações dos bairros pobres de Lisboa vieram entretanto juntar-se os milhares de retornados das ex-colónias, alguns deles sem quaisquer meios de vida, e também esses segmentos foram apoiados por comissões onde MG desenvolveu actividade nesse período. 

Em Agosto de 75 foi saneado do quartel de Queluz, com outros companheiros por ser considerado indesejável pelo comandante, tendo a respectiva a guia de marcha sido assinada por Otelo Saraiva de Carvalho. Até ao 25 de Novembro (7) permaneceu em Lisboa, no Quartel General, após o que, aquando das eleições presidenciais, apoiou a candidatura de Otelo Saraiva de Carvalho, na medida em que ele representava as ansiedades dos movimentos populares, sociais e de soldados.


ENTREVISTA

Elísio Estanque - Portanto, depois desse período, voltaste então para aqui: para a zona?(8)

Manuel Graça - Depois vim para cá, no pós-25 de Novembro. Vim para a actividade, voltei ao trabalho na «FÉMINA» (empresa de calçado em Oliveira de Azeméis). Houve aqui uma série de greves, que tinham começado na altura do 25 de Abril, e que eu acompanhei. Já em 1975/76, foi criado um contrato colectivo de trabalho, e portanto, tinha havido várias greves em muitas empresas. Nessa altura havia mais participação e mais organização, as pessoas estavam mais disponíveis para a luta. Foi aí, quando saí do serviço militar, que voltei para a empresa, e fiquei lá uns anos, mesmo quando já tinha sido eleito para delegado e dirigente sindical. Portanto, estive lá, fui eleito para delegado e como era muito activo e participava nas assembleias e plenários de delegados sindicais, depois convidaram-me para fazer parte desse grupo e entretanto participei em várias actividades de apoio à Direcção do sindicato. Criámos estruturas mais amplas, de apoio à Direcção que cá estava. E entretanto candidatei-me, passados dois anos. Algum tempo depois saí e voltei a candidatar-me outra vez. Depois de ingressar na Direcção a primeira vez, tive ainda creio que duas curtas interrupções e voltei novamente em 1987, até agora.

Elísio - Quem é que encontraste quando cá chegaste? Digamos, uma vez que tu tinhas, já nessa altura, uma forte consciência político-ideológica, quais eram as influências ideológicas que prevaleciam na Direcção do sindicato, nesse período?

Manuel- Malta mais próxima do MES, da UDP e da BASE-FUT (9).

Elísio - Então, e não havia gente do PC? Eles não faziam alianças convosco? Ou vocês é que não queriam?

Manuel - Havia, mas não faziam parte da Direcção. Porque eles..., na altura o que acontecia era o seguinte: havia uma conflitualidade muito grande com eles, porque eram um grupo muito sectário. Por exemplo, boicotaram uma série de greves que se fizeram. Portanto, havia assembleias com milhares de pessoas, e eles votavam sempre contra as greves. Houve uma altura em que houve uma greve de quinze dias, que era uma acção muito poderosa decidida numa assembleia, no pavilhão, e eles tentaram boicotar. Nas assembleias, geralmente, votavam sempre contra as greves que havia, portanto...

Elísio - Isso nos princípios dos anos oitenta...

Manuel - Foi já em oitenta e tal. Sempre tiveram essa política: quem não estava com eles estava contra eles, era o inimigo. Quando o Partido não controlava, eles eram sempre contra.

Elísio - Mas apesar do PC aqui nesta região nunca ter tido uma grande implantação em termos eleitorais, apesar de tudo, comparado com os partidos pequenos, ainda tinham uma importância muito maior do que...

Manuel - Não! Tinham mais militantes o MES, a UDP...

Elísio - Tinham mais militantes, mas força eleitoral não... a força eleitoral deles aqui não era comparável ao PC, ou era? Tinham mais força eleitoral do que o PC?

Manuel - Na altura da campanha do Otelo Saraiva de Carvalho, eu era delegado sindical e tinha sido eleito para a união de sindicatos local e convidaram-me para fazer parte da comissão de apoio ao Otelo. O PC apoiava o Octávio Pato. Entretanto, já havia uma série de núcleos da LCI, que eram menos fortes, mas discutiam muito e debatia-se muito mais. O MES e a UDP eram os grupos mais fortes, com mais implantação, depois a BASE-FUT. Nesse período estes partidos tinham aqui mais implantação do que o PCP.

Manuel Graça em 1995. Foto de João Louçã.
Manuel Graça em 1995. Foto de João Louçã. 

Elísio - Com essas forças mais radicais na Direcção do sindicato, se se fosse ponderar entre a importância da estrutura sindical e a importância partidária, o que é que tu sentes? Que as pessoas davam mais importância à estrutura partidária ou à Direcção sindical?

Manuel - Eu achava que isso devia ser combinado. Acho que a estrutura partidária deve participar em organizações sociais, como o movimento ecologista, ou o movimento de moradores, ou de trabalhadores. Portanto, acho que as pessoas, os militantes, devem intervir essencialmente aí.

Elísio - Mas, quer dizer, tu enquanto militante de uma determinada força, e uma vez que discutes os problemas, digamos, estratégias e visão da mudança social e do papel do sindicato, uma vez na Direcção, o que tu vais tentar é fazer valer o máximo possível essas propostas?

Manuel - Tentava fazer valer os meus pontos de vista! Mas, é evidente, muitas vezes, a maioria das vezes, era derrotado aqui na Direcção. Foram para aí quatro direcções em que só duas ou três propostas minhas é que passaram. Mas eu achava isso normal… Porquê?, porque eu não tinha, nem tenho instrumentos de... Portanto, o objectivo de uma proposta é discutir... ! E às vezes as propostas que eu fazia, pensava que estavam correctas... e afinal não estavam. Outras vezes estavam. Portanto, muitas decisões se tomaram, e se fosse a minha proposta aceite era... portanto, eu apenas tentava algum equilíbrio nesse sentido…

Elísio - E da parte das outras forças presentes na Direcção, havia a mesma atitude? Essa atitude era comum a toda a gente, ou não?

Manuel - Não, não! Havia malta que tinha uma formação muito sectária nestas forças políticas. Porque eu já conhecia alguns núcleos, portanto, alguns grupos de sindicalistas de esquerda, quer da França, de Espanha, da Itália, de Inglaterra, e sabia que essa tradição deles era totalmente diferente. Lá, havia mais respeito pelas diferenças de opinião, pelas propostas. Agora aqui a malta estava mais sectarizada desde a altura do pós-25 de Abril... Mas esse foi um período muito interessante do ponto de vista político e social, mas sempre com um pensamento muito sectário em relação às outras organizações da esquerda.

Elísio - Se fizesses agora um balanço, digamos, crítico e autocrítico em relação a esse período, às ingenuidades, às crenças, às convicções, etc., o que é que tu dirias? Enfim, tendo em conta que o vosso papel e o vosso interesse era contribuir para a emancipação social, para uma maior justiça social, para uma maior dignidade para as classes trabalhadoras, maior poder de compra, etc... Se pudesses voltar atrás, digamos, aos anos setenta, voltarias a fazer o mesmo?

Manuel - Embora a história não se repita, tomaria as mesmas posições, nas questões fundamentais, porque acho que aquilo que eu fiz foi com base na minha análise e convicção. É evidente que, quando estamos numa discussão e se apresentam propostas… o que é que acontece? Se há uma discussão e a gente vê que há participação, mesmo que eu perca, não tenho que desistir das minhas posições. E eu nunca desisti, por ter esses princípios sobre a democracia e a dialéctica marxista ... Mesmo a outra malta que tinha uma atitude mais sectária, passado uma semana, na próxima reunião, já não havia nada. Isso diluía-se completamente, portanto, acho que voltaria a fazer o mesmo!

Elísio - Mas, eu, que tive também experiência muito próxima da tua em relação a esse clima, sobretudo na zona de Lisboa, sei que havia todo um entusiasmo, toda uma atitude de radicalismo, de participação, de mudança radical da sociedade... E tu, que já eras daqui, já tinhas cá trabalhado, que tens aqui as tuas raízes, apesar de tudo, depois de teres vivido esse ambiente no contexto de Lisboa e de teres regressado aqui ao contacto com os trabalhadores daqui, não sentiste um desfasamento entre o discurso idealista, de crença no socialismo (vamos ou não vamos para uma sociedade socialista) que se vivia em Lisboa, por exemplo, e as características próprias da classe trabalhadora aqui da zona? Nomeadamente do sector do calçado?

Manuel - Eu sentia e agia em função disso, mais nada! Portanto, quando eu fazia uma proposta, intervinha muito, intervinha tendo em conta essa situação … Portanto, a situação de quem tem experiências desse tipo e em termos do desenvolvimento do movimento operário, houve muitos casos que foi assim, que senti isso. Mas, tinha sempre uma perspectiva de tentar começar as coisas a partir de baixo, apesar de nalguns casos haver muita resistência.

Elísio - Mas apesar de tudo, reconheces que nesse período, considerando que a classe trabalhadora da cintura industrial de Lisboa se mobilizava com uma facilidade incrível, notaste alguma grande discrepância em relação à realidade daqui, do sector do calçado, quando regressaste?

Manuel - Claro! Porque aqui era um movimento operário muito mais frágil, portanto, muito mais recente, e é evidente que essas posições eram e são minoritárias e é claro que isso se acentua…

Elísio - Recolocando a coisa noutros moldes: nesse período, quando começaste a participar na Direcção do sindicato houve, digamos, perspectivas diferentes da tua, que... tenham sido discutidas ou concorrido umas com as outras?

Manuel- Sim. Havia perspectivas sempre diferentes, nomeadamente em relação à democracia sindical consagrada através do direito de tendência, as perspectivas sobre a unidade sindical, sobre a organização da greve (piquetes de greve), etc., portanto, reflectia-se a nível da estratégia em relação à apresentação das propostas. 

Congresso do PSR em 1990, com Miguel Graça em segundo plano. Foto de João Louçã.
Congresso do PSR em 1990, com Manuel Graça em segundo plano. Foto de João Louçã. 

Na altura da greve dos quinze dias fizeram-se piquetes de greve - o PC opunha-se à greve, as outras correntes todas defendiam a greve com piquetes de greve -, depois havia quem defendesse a greve por tempo indeterminado ou uma greve com período marcado. Eu na altura era sempre contra que a greve fosse por tempo indeterminado... Porque eu achava que era muito desgastante e nós estávamos dependentes também da posição dos outros sindicatos que não apoiavam as greves... Mas isto não era a discussão a nível das assembleias, era só a nível da Direcção. E como nós estávamos muito dependentes dos outros sindicatos, a greve podia durar muito mais tempo e nós não conseguirmos impor ao patronato um bom acordo. Mas, nessa altura, a Associação patronal, inclusivamente com a greve por tempo indeterminado, ao fim de duas semanas ou quinze dias aceitou imediatamente as nossas propostas, coisa que eu nunca esperava que fizesse, percebes?

Elísio - Mas esse foi o teu primeiro processo de negociação?

Manuel - Portanto..., eu estava nesse grupo. Havia um grupo de negociação que pertencia à Direcção, mas eram só alguns dos seus membros. E na altura, a opinião que eu tinha era que eles marcaram uma greve por tempo indeterminado e o nosso sindicato, estando isolado, iria enfraquecer-nos ainda mais. E podíamos sair derrotados... No entanto, o facto é que eu entrei e fui para a frente dos piquetes de greve, e a greve teve uma adesão espantosa!

Elísio - Nessa altura, em termos de filiados no sindicato; havia uma implantação já muito grande do sindicato, ou não?

Manuel - Havia. Mas houve um período de des-sindicalização muito grande, porque havia muita manipulação acerca da questão da Unicidade sindical. A CGTP-INIO que queria a unicidade sindical e toda a gente das correntes minoritárias defendia a unicidade sindical, à excepção, acho que da BASE-FUT e da LCI. Eu era contra a Unicidade sindical, porque não era uma decisão democrática dos trabalhadores, mas sim decisão burocrática, e achava que estavam a substituir-se aos trabalhadores. 

A verdadeira unidade constrói-se com passos concretos e em acções concretas... Mas, nessa altura já havia uma repressão muito grande nas empresas e começava-se a generalizar a recessão do movimento sindical, não é? ... Portanto, havia muitos activistas que eram despedidos… Apesar dessa greve ter sido muito participada, e durado quinze dias. Por isso, a seguir veio um ciclo de despedimentos. Foi o período de maior repressão e muita gente que foi despedida, principalmente os mais activistas, os que estavam nos piquetes de greve. Nessa altura nas empresas houve uma repressão muito brutal, portanto, directa. Agora é mais subtil, não é? Foi uma «limpeza», que durou para aí quatro anos, portanto, um período em que se deu um grande recuo...

Elísio - Nessa altura vocês, ao nível da Direcção, discutiam política também? Discutiam a transformação da sociedade?

Manuel - As intervenções na altura passavam sempre por aí. Quase todas as pessoas falavam sempre na necessidade de se mudar a sociedade, de transformar a sociedade, uma sociedade mais justa, mais fraterna, sem fronteiras, pela igualdade, etc.

Houve períodos em que havia muitos plenários aqui no sindicato. Quando havia as greves, havia assembleias mais fortes, é evidente que o discurso acabava sempre com esses pontos de vista e propostas mais politizadas … Mas havia um conjunto de dirigentes, e eu próprio, que éramos mais pragmáticos, não é? Porque o problema é este: se tu começas a falar muito das coisas, acabas por afastar as pessoas. Se tu fizeres muita demagogia sobre isso, isso não funciona. Portanto, as pessoas, os dirigentes, têm que ver o nível dos trabalhadores. Tem que ver que os trabalhadores de um centro de calçado como este, não estão ao mesmo nível de um activista ou de um dirigente sindical. Têm um nível muito baixo, e eu percebo isso.

Muitas vezes até me custa estar a fazer esse tipo de discursos. Prefiro discussões mais concretas. Eu tenho sempre esse princípio, de se tentar formar uma sociedade mais justa, agora, falá-lo de forma sistemática e mais profunda não, porque acho que isso se torna demagógico...

Elísio - Se fizesses balanço desde esse período até agora... portanto, já nessa altura tinhas esse discurso mais avançado que era difícil de chegar até aos trabalhadores, achas que isso tem vindo a melhorar ou se tem vindo a agravar ainda mais?

Manuel - Bom, a situação actual é muito diferente ... é totalmente diferente. Nessa altura, havia muitos trabalhadores para quem a experiência dos países do Leste era uma referência, mesmo socialistas ou independentes, que não tinham nada a ver com o PCP, viam nesses países um modelo de desenvolvimento. Eu não tinha essa referência, mas também não a hostilizava sistematicamente.

Elísio - Os delegados sindicais que apareciam nessa altura, tu notavas que eram influenciados por essa perspectiva ideológica?

Manuel - Exacto. Muita gente tinha essa perspectiva. Havia delegados sindicais ou activistas, por razões políticas e ideológicas. Mas também por razões de influência do colectivo da empresa.

Elísio - Nas assembleias da altura havia debates fortes e clivagens a esse nível?

Manuel - Sim, sim. Quando havia um debate alguns queriam era reforçar posições «já que está tudo embalado, é preciso é passar para cá!». E isto limitava o debate… É evidente, nós não estávamos aqui isolados, porque também participávamos no movimento sindical e nas empresas e os trabalhadores eram chamados para essa discussão, portanto ...

Elísio - Mas a Direcção do sindicato demarcava-se desse modelo, ou não? Preocupavam-se em transmitir aos trabalhadores a ideia de que não eram, digamos, uma Direcção comunista?

Manuel - A Direcção demarcava-se dessas referências porque sabíamos que, mais tarde ou mais cedo, aquela situação iria alterar-se, com a crescente contestação interna. Ao contrário, o PC fazia passar em todo o movimento sindical o modelo ideal dos países do Leste ... Só que os sindicalistas que estavam aqui, da BASE-FUT, MES, UDP, LCI/PSR, não tinham essa referência, e isso era um obstáculo, não só nas relações entre os activistas mas, nas perspectivas políticas. Os militantes do PC eram reformistas e aquilo era uma caricatura do socialismo… Mas isso não impedia que nós em qualquer luta estivéssemos todos unidos com a malta do PC. Mas... toda a gente achava que aquilo era um obstáculo, portanto, ao desenvolvimento da política e de uma luta por uma sociedade socialista, portanto, por uma sociedade mais justa e solidária.

Elísio - Eu estou a perguntar isto, porque naquele período, em 75, aqui em S. João da Madeira houve uma forte resistência contra a hegemonia do PCP na sociedade portuguesa e onde, inclusive, foram queimadas sedes e houve assaltos à sede do PC, não foi?

Manuel - Sim! Mas também fizeram à sede do PRP e do MES. E tentaram atacar várias sedes aqui na região, e até tentaram assaltar a sede do sindicato.

Elísio - Isso foram acções espontâneas, ou não?

Manuel - Não! Isso foi organizado pela direita, pelo ELP (12), pela direita mais retrógrada que havia. Alguns patrões, outros que andavam metidos noutros negócios, a direita militar, a direita da igreja também estava metida. Havia funcionários de pequenas empresas, alguns trabalhadores manipulados, mas não os trabalhadores em massa. Porque nós tínhamos assembleias com muita gente, milhares de pessoas, e essas pessoas nunca fizeram assaltos. Portanto, aquilo eram grupos organizados e pequenos que iam de um lado para o outro.

Elísio - Mas o sindicato era conotado como um sindicato comunista, radical…

Manuel - Sim, sim! Isso... isso sim! Mas bastava alguém afirmar-se como de esquerda para ser visto como comunista. Havia muita gente, até malta ligada aos movimentos católicos - Liga Operária Católica (LOC), cristãos com uma perspectiva sindicalista de trabalho de base que trabalhavam connosco e que eram apelidados de comunistas, porque eram do sindicato. Em quase todas as direcções do sindicato tínhamos gente da LOC.

Elísio - Como é que o sindicato tem conseguido conciliar a necessidade de negociar as entidades patronais e as suas associações com a mobilização colectiva por parte dos trabalhadores? Dá-me a ideia que muitos trabalhadores desta zona, mesmo os filiados no sindicato, nunca mostraram uma presença assídua e um interesse participativo muito grande.

Manuel - Nós estamos a falar de um proletariado recente, muito despolitizado, com pouca experiência política, sindical e de empresa. Portanto, pouco reivindicativo. As pessoas não se identificam à primeira vista com o colectivo, com os interesses colectivos. Portanto, vêm sempre o individual, vêem sempre as coisas na sua perspectiva pessoal! Mas há dez anos nós também tivemos um problema que era o seguinte: como é que conseguíamos fazer a articulação, não havendo essa discussão, como é que fazíamos a articulação a nível da negociação? Quando estávamos a negociar o contrato, tínhamos os sindicatos ligados ao PC com uma postura completamente sectária e muitas vezes estávamos em conflito aberto com eles. Porquê? Porque eles defendiam sempre a posição no interesse desse partido.

Elísio - Não acontecia o mesmo por parte dos pequenos partidos?

Manuel - Não. É totalmente diferente. Nós já sabíamos que a CGTP estava a mobilizar para uma determinada acção, não com o objectivo de melhorar as condições dos trabalhadores, mas para levar os trabalhadores a serem mobilizados por uma determinada causa, que às vezes era nobre, mas servia para encobrir os interesses dos burocratas do aparelho do PC.


Desenho de Jorge Rato.

Elísio - E as posições do sindicato nas estruturas da CGTP, eram ouvidas? Eram tidas em conta? Havia consenso?

Manuel - Houve períodos em que eram ouvidas, havia outros dirigentes que estavam lá, mas noutras alturas havia uma desestabilização muito grande, portanto, em relação às nossas propostas. Porque, muitas vezes as propostas chocavam com estratégias da CGTP, que é maioritariamente ligada ao PC, não é? Eles tinham a sua estratégia montada para uma determinada luta, mas nunca era com o sentido de melhorar os interesses dos trabalhadores. Portanto, serviram-se muitas vezes do movimento sindical para fazer esse tipo de estratégias. E muitas vezes isso impedia o processo negocial. É a táctica deles é fazer isso. É a táctica do quanto pior, melhor! Portanto... mas é a táctica de quanto pior se estiver, melhor é! Isso não funcionou, porque o resultado, hoje, do movimento operário e sindical é o que se está a ver cá em Portugal e na Europa, portanto, num fosso muito grande em que nós estamos! E eu não tenho essa posição.

Eu acho que é necessário aceitar sempre as decisões maioritárias dos trabalhadores. Havia sectores dos trabalhadores que sentiam isso, que eram manipulados, não é? E depois, a explicação que davam era: «Eh pá, tenham calma, porque nós temos os países do Leste, nós haveremos de lá chegar!...». Só que nós estávamos a par da evolução e da luta política através de grupos de dissidentes, sobre os movimentos na Checoslováquia e acerca do Solidariedade na Polónia. Sabíamos o que se passava desde a primeira hora através de circuitos políticos e de outras organizações de esquerda autónomas. É evidente que se sabia muito bem o que se passava lá, não é? Aliás, fiz parte de um comité de apoio à luta dos trabalhadores da Polónia do «Solidarnosc» (Solidariedade), promovíamos debates, projectávamos filmes e boletins, etc…

Elísio - E em relação às experiências de negociação com as associações patronais? Qual foi a tua posição nessa fase?

Manuel - Ora bem, nessa fase, como já disse, nós estávamos em minoria na comissão negociadora, portanto, era o PC que impunha sempre as suas posições. E nós nunca tínhamos hipóteses, nunca eram aceites as nossas propostas, lá no Porto, na sede da Federação e da associação patronal. Eles tanto convocavam uma greve, por tudo e por nada, como desconvocavam a greve. Só em períodos em que houve ruptura na mesa das negociações é que houve essas greves. Porque, quando houve essa greve de quinze dias, e outras greves importantes aqui em S. João da Madeira, entrámos em ruptura com a comissão sindical ligada ao PC.

Elísio - E essas greves tiveram, apesar disso, uma boa adesão? 

Manuel - Foram um sucesso! Houve uma grande adesão, porque havia uma implantação maior! Mas o outro sindicato - o sindicato do calçado da zona do Porto/Felgueiras também tinha uma grande implantação, mas só que não tem tanto trabalho de base. Aqui no nosso sindicato houve sempre a tradição de fazer trabalho nas empresas, de reunir nas empresas, de ver o sindicato não só aqui na sede, mas também nas empresas. E nesses sindicatos não! Portanto, eles têm uma concepção mais burocrática do trabalho sindical.

Elísio - Mas quanto a esse trabalho de base, feito nas empresas, feito junto dos delegados sindicais ou junto dos trabalhadores mais conscientes, ao longo destes anos todos, tu notaste que houve, digamos, um sucesso significativo? Por exemplo, eu tenho a ideia, não só da questão da instrumentalização, que estavas há pouco a falar, que levava os trabalhadores a ficar um pouco de pé atrás em relação às iniciativas dos sindicatos, mas também tenho um bocado a ideia de que começaram, às tantas, a ver com maior desconfiança as iniciativas e as propostas dos sindicatos, quando começaram a perceber que alguns dirigentes ou ex-dirigentes abandonaram a actividade sindical, montaram as suas empresas ou foram promovidos para postos de destaque dentro das empresas onde já trabalhavam. Ora, não é essa atitude, que ainda hoje alguns trabalhadores referem, que leva ao afastamento do sindicato? Que os leva a pensar «eles querem é tacho...»?

Manuel - Sim, isso aconteceu muito, mas não só no sector do calçado... Houve um período em que muitos trabalhadores montaram empresas, outros foram para encarregados e que depois se tornaram nos piores carrascos para os trabalhadores. Portanto, criou-se a ideia do «tacho», que as pessoas querem o «tacho», querem ter um lugar ou de chefia, querem ganhar mais dinheiro, porque o objectivo é ganhar dinheiro. Mas, atenção, isto é uma coisa que é a sociedade que cria. E quem tem o poder é que estimula... não só no sector de calçado, mas em todos os sectores. É a política de divisão e de destruição do movimento sindical. Nós aqui no sector do calçado temos ciclos, para aí quatro ciclos importantes: temos até à data de setenta e oito, que é um ciclo. Essa gente, que era a malta do pós-25 de Abril até ao 25 de Novembro, foi quase toda despedida.

Depois houve um período de travessia do deserto. Houve um período de recessão de cinco anos, quatro ou cinco anos. Depois há um período de progressão, e nos períodos de progressão é onde se formam os activistas e dirigentes sindicais. Nos períodos de recessão em que muitas vezes não se aparece, porque temos que nos organizar para resistir, é um trabalho de toupeira..., neste sistema não existe outra forma... para se construir uma grande força dos trabalhadores.

Elísio - Mas, apesar de tudo, não é um bocado frustrante, para quem acredita que é possível uma intervenção sistemática e contínua para chegar à consciencialização dos trabalhadores, e verificares, ao fim de uma série de anos, que ainda há poucos sinais dessa consciencialização? Quais são os desafios e problemas actuais?

Manuel - Para mim não é frustrante! Eu vou explicar: primeiro por uma questão de concepção que eu tenho de desenvolver o sindicalismo, a luta nos movimentos sociais, enfim a luta política. Quando há decisões de lutas, para avançar ou para recuar, muitas vezes há a decisão de convocar uma luta e ela a seguir nem sequer se realiza, não é? Por motivos diversos, ou porque a empresa se mobilizou e deu mais dinheiro a um grupo e menos a outro, dividir para reinar, não é? Eu entendo isso de uma forma crítica, para que esta mensagem passe para as outras pessoas. Porque as empresas têm as suas estratégias de prémios, de promoção de encarregados, de repressão brutal, de criação de pequenas empresas a beneficiar toda a gente, as pessoas deixam-se convencer a isso. Portanto, isso é normal. E nós estamos num ciclo de recessão política, mas ao mesmo tempo estamos a reiniciar um novo ciclo de debates, de projectos para o movimento operário. Estes problemas são a nível mundial e não de uma região ou sindicato. Nós não vivemos num oásis, estamos a sofrer as consequências desse novo ciclo. Agora, como é que nós havemos de resistir? Esta discussão, para quem participou no período do 25 de Abril, em que houve uma grande acumulação de forças nascentes, uma muito grande participação popular com conquistas sociais importantes. Portanto, isso feriu o leão, mas não matou a fera, não é? Ora, essa malta que viveu esse tempo, que teve essa experiência, tem que resistir, tem que tentar resistir a tudo isto, não é? Há repressão, há despedimentos, há aliciamentos por parte do patronato e do poder. São períodos em que a gente tem que discutir esquemas novos para resistir e se reorganizar…

Elísio - Não te sentes um bocado isolado? Digamos, olhando à volta, não sei quantos membros tem actualmente a Direcção, mas perguntava-te: além de ti, que és uma pessoa com essa experiência marcante nos anos setenta e no pós-25 de Abril, há mais alguém, dos companheiros que nessa altura eram líderes sindicais aqui do calçado, que se mantenham como militantes sindicais activos?

Manuel - Existem algumas pessoas em número minoritário que vêm desse tempo.

Elísio - Manténs relações de amizade com algumas dessas pessoas que estiveram contigo nas direcções durante esse período e que depois se afastaram?

Manuel - Sim, com a maioria das pessoas. Há outras que não tenho relações. Eles tiveram um percurso, mas calçaram as pantufas... deixaram de ter qualquer actividade. Este período de vinte ou vinte e cinco anos foi um período de destruição completa de tudo. Tudo o que é memória, tudo o que é experiências do movimento sindical e operário, da esquerda em geral, e dos sectores católicos, foi tudo completamente destruído. Não foram só os dirigentes mais combativos, mas a malta ligada à LOC (Liga Operária Católica), que foram completamente banidos... e da BASE-FUT...

Elísio - A BASE-FUT ainda existe?

Manuel - Existe. E fazem alguns encontros, debates. Portanto, essa malta também sofreu a repressão. Porquê? Tudo o que seja memória dos trabalhadores, de causas, portanto, o poder tenta destruí-las completamente, através de processos de despedimento, ou através de aliciamento ... Por isso, houve muita gente que abandonou isto. Agora, eu não me sinto sozinho! É evidente que não. Eu acho que isto vai demorar muitos anos, a minha geração e outras, para voltar a ter a relação de forças a nosso favor, tornar a dar uma volta que seja favorável aos trabalhadores. Acho que nem na minha geração, nem dos filhos (se eu tivesse filhos), mas nem daqui por cem anos, não é possível falar em socialismo como uma causa emancipadora, não é?  

Há malta que diz assim: «Eh pá!, não te cansaste disto? Não desististe?» Porque eu nunca estabeleci metas rígidas. Portanto, o socialismo não se faz por encomenda. Uma sociedade mais justa, mais fraterna, é uma coisa que não se constrói, com certeza, na minha vida!... Não sei ... é muito difícil…

Elísio - Mas tens a sensação, ao mesmo tempo, de teres conseguido criar, digamos, segmentos significativos dos operários da indústria de calçado que têm simpatia pelo sindicato, que te identificam com o sindicato..., ou seja, sentes que tens um suporte, um potencial suporte de apoio, por detrás, ou não?

Manuel - Eu não penso nesse sentido. A minha intervenção e reflexão não vai nesse sentido. É evidente que, como eu sou o dirigente do sindicato, sou mais conhecido, sou um dos dirigentes mais activos e isso é reconhecido pelas pessoas, quer pelo ponto de vista negativo, quer pelo ponto de vista positivo. Os patrões sabem quem eu sou…

Elísio - Sabem qual é o teu posicionamento político?

Manuel - Sabem. Eu não escondo o meu posicionamento, nem faço selecção. Para mim um patrão é igual a tantos outros, quer cumpra ou não cumpra os direitos. Se há uns que cumprem os direitos isso é bom. Mas, para mim eles fazem todos parte do mesmo sistema. Neste caso, as pessoas individualmente, a mim dizem-me pouco. Portanto, eu não hostilizo nem crio ódio a ninguém, mas a minha luta não é contra este patrão ou contra aquele, não é? Agora, quando vamos para questões concretas, é evidente que há diferenças…

Elísio - Mas, por exemplo, se tu consegues que numa empresa, em que há, digamos, atrocidades, incumprimentos da lei..., que há não sei o quê, se tu consegues que nessa empresa haja uma reviravolta ou uma participação, uma pressão grande dos trabalhadores, e consegues que o patrão altere a sua postura, tenha um outro tipo de atenção, dê mais regalias aos trabalhadores, mais atenção ao trabalho das mulheres grávidas, mais benefícios sociais, etc., isso é entendido por ti como emancipatório, ou não? Do ponto de vista dos interesses dos trabalhadores?

Manuel - Para os trabalhadores é uma experiência. É uma experiência!, não tenho dúvida nenhuma... Como é que um sistema cria esta injustiça toda?! Porque o objectivo é a acumulação do lucro! É claro que as pessoas se comem umas às outras, se devoram umas às outras! Pequenos e médios patrões e tudo, não é? 

Elísio - Sim, mas se ao mesmo tempo há tanta gente, como há pouco estávamos a falar, até muitos dos trabalhadores que estão obcecados, acima de tudo, em  acumular dinheiro, em ter mais dinheiro, em ter mais prémios…

Manuel - Eles ganham um salário tão baixo! Portanto, com o salário de miséria que se pratica no sector, é evidente que as pessoas têm um tempo para compensar, por um lado, a compra da habitação ou do carro, e, por outro lado, para tentarem sobreviver, porque o dinheiro não dá para mais do que isso. Tentam sobreviver no dia a dia. E como todos os dias as pessoas são bombardeadas com uma política de que é preciso competir, é preciso fazer o melhor, é preciso teres mais prémios!... E os outros que não fazem isso não têm nada... Na verdade, não se pode estar ao mesmo nível de todos. Porque o sistema não permite que todos possam competir ao mesmo nível. Têm esquemas de divisão, portanto, estes são esquemas que criam o egoísmo, o confronto individual entre uns e outros, uma certa ideia de consumo. Vão consumir e depois têm de pagar…

Elísio - Portanto, é a própria lógica hegemónica do sistema, em geral que…

Manuel - Que cria esses esquemas. Mas é que muitos patrões, por exemplo, agora dizem isto: «O que é um trabalhador que nunca foi ver a EXPO'98?!...» [do ponto de vista do patrão seria um ignorante e atrasado...]. E é um homem sério e instruído. E porquê? Porque eles estão na lógica do sistema, deste sistema…

Elísio - Mas então, qual é a tua visão, digamos, em termos de longo prazo, quanto a alternativas ao sistema? O que é que te anima para acreditar que vale a pena continuar a trabalhar, a lutar, a ter paciência, como tu dizias? Como consegues ver, por um lado, uma alternativa ao sistema, e, por outro lado, como é que o teu papel e a actividade desenvolvida pelo sindicato se pode inserir nessa alternativa, nessa estratégia alternativa ao sistema social?

Manuel - Ora bem, não seria a primeira experiência que teríamos ao nível de revoluções. Nada se faz sem haver trabalho permanente de discussão, de organização e de acção, quer ao nível local quer ao nível global, para tentarmos «pôr um pauzinho na engrenagem ... », tentar mudar as coisas. Não estou só a falar a nível sindical, mas a nível político, de ONGs ligadas à ecologia, dos direitos das mulheres, das minorias, dos pobres, dos sem-abrigo, dos sem tecto, dos sem-terra. Portanto, tem que haver uma articulação desses movimentos, que não existe. Porque esses movimentos estão todos destruídos, estão todos desarticulados, quer a nível de Portugal, quer a nível planetário. Quer dizer, nada acontece se não houver um trabalho profundo de mobilização, de organização, de reflexão, para que todos juntos consigamos pôr um «pau na engrenagem», tentar criar movimentos mais fortes e mais poderosos, em Portugal e a nível da Europa e do planeta. Há milhões de pessoas no mundo que estão a agir agora! Estão a agir, como houve agora em França como aquele dirigente dos camponeses (José Bovet), que invadiu o McDonald's. Aquilo não foi banditismo, aquilo é uma acção contra este sistema de normalização, de globalização, que barra toda a gente, despede toda a gente, põe toda a gente no desemprego, e que é a favor dos grandes grupos económicos, da acumulação brutal das grandes fortunas, não é? Aquela acção despertou simpatias em milhões de pessoas, e agora o que é preciso é articular estas forças em todas as áreas.

Elísio - Mas tu acreditas que a partir deste tipo de exemplos é possível a emergência de um movimento anti-capitalista mundial, é isso?

Manuel - Claro! É preciso que se criem alternativas a este sistema. Se levarmos ao extremo as medidas ecologistas, é evidente que o movimento tem de ser anticapitalista, no sentido rigoroso do sistema capitalista, que é só pela acumulação, pois eles não têm em vista servir o ser humano. Porque hoje o ser humano, com o conhecimento das tecnologias, como se sabe, está num nível que não era necessário haver tanta pobreza... Só que este sistema está feito para criar essa pobreza e essa riqueza.

Elísio - Mas, presumo que também não pensas que o sistema está feito por uma, digamos, conspiração maquiavélica…

Manuel - Está, está!

Elísio - Mas achas que há uma acção intencional da parte de capitalistas, políticos...

Manuel - Está feito por pessoas que pensam em perpetuar este sistema capitalista. Têm milhões de pessoas a pensar para eles. Já há muitos anos que se pensa no capitalismo! Há para aí mil anos, se não foi antes! Portanto, se nós pensarmos no socialismo, numa fase transitória para uma sociedade onde será possível..., portanto, superar o capitalismo…

Elísio - Mas, espera aí! ... Deixa-me só esclarecer, clarificar um conceito. Por exemplo, as políticas de intervenção social por parte do Estado, numa perspectiva de Estado-Providência, que regulamentem e que combatam as ilegalidades do patronato, isso para ti não tem nada a ver com socialismo? Ou tem?

Manuel - Não. Isso não é socialismo, mas são medidas que podem ajudar. Eu reivindico segurança social ou saúde e que toda a gente desconte para a Segurança Social para que se possa distribuir a riqueza, impedindo que haja uma escravatura, etc., mas o que acontece é que os trabalhadores pagam todos os impostos e os capitalistas não pagam nada! É um pouco isto que está a acontecer com o neoliberalismo não é? Portanto, eu quando defendo que o Estado intervenha, que tenha políticas sociais - parece contraditório, mas não é! -, eu não posso dizer assim: «Bem!, esperem aí que eu vou buscar o rumo ao socialismo...». Eu não tenho essa concepção! Eu estou a dizer isto porque estou convencido que se lutarmos, se construirmos e discutirmos, o socialismo representa isso..., não são os países do Leste o exemplo do socialismo.

Elísio - Ok. Mas, qual é a via que tu achas possível hoje? É porque eu não te faço a pergunta no contexto de 1975...

Manuel - Não, não!, 1975 não tem nada a ver com a situação de hoje…

Elísio - Pois não. Mas, qual é a via que tu achas que pode, digamos, conduzir a uma sociedade alternativa? 

Manuel- Por essas vias todas! Em todas as áreas! Não é contraditório exigir que os Estados todos acabem com a miséria, com o desemprego, que ponham a educação ao serviço das pessoas. Portanto, há muitos instrumentos importantes para a sobrevivência e para o bem-estar das pessoas. Não é contraditório. Para mim o capitalismo é a sociedade mais perfeita que apareceu até hoje ...

Elísio - Perfeita?

Manuel - Perfeita, enfim... em relação à escravatura! Qual foi a sociedade mais perfeita que existiu até agora? Esta sociedade, apesar de todas as barbáries... Eu reconheço!

Elísio - Mas o problema é... qual é o modelo de socialismo? Há um modelo alternativo?

Manuel - Ah!, isso... isso é... Eu não tenho um modelo, quer dizer, eu estou a dizer em termos de ideias…

Elísio - Mas tu acreditas que a mudança, a acontecer, é uma mudança gradual, na sequência desses movimentos de protesto, globais ou locais, ou é uma revolução total?

Manuel - Pode não ser uma revolução total! Eu não sou a favor de uma revolução que seja guiada pelas armas! Isso não é revolução. Não é esse o sentido da transformação.

Quando eu falo em revolução quero dizer com a participação de milhões e milhões de pessoas, a ampliação da democracia directa, da participação de todos os movimentos sociais e políticos e não só o movimento operário e sindical, ajudam a transformar a sociedade. Portanto, obviamente que... nos países do Leste, por exemplo, houve uma fraude completa; portanto, isso não era para mim socialismo... Agora, eu não tenho receita para o socialismo... Quando eu falo de emancipação a nível das mulheres, a nível dos direitos à liberdade religiosa, o Estado laico, quando defendo a ecologia, o emprego, o ensino…

Elísio - Para ti é viável a emancipação dentro do quadro deste sistema que temos?

Manuel - Eu acho que é possível haver reformas, em muitas áreas... porque repara: quando os conflitos se intensificarem, aí é que tem que haver uma ruptura. Para isso há que construir um grande movimento. Construir movimentos que levem à emancipação das pessoas.

Elísio - Concordas com a ideia de que a classe operária é o motor da história? Ou aceitas que o «proletariado» não foi senão uma invenção do marxismo?

Manuel - Eu não levo à risca, num sentido dogmático (ou religioso) o pensamento de Marx, de Lenine ou de Trotsky. Nada disso. Portanto, para mim o marxismo serve de método de trabalho e mais nada. Eu estou de acordo com o método, com a definição que ele faz do proletariado. Naquela altura a maioria dos trabalhadores eram operários, actualmente não! Há hoje milhões de pessoas que fazem outro tipo de trabalho. Trabalho intelectual, trabalho repetitivo, trabalho domiciliário, etc. Mas a sociedade continua a estar organizada enquanto sistema capitalista, não é? E eu acho que temos de encontrar um sistema diferente, acho que se deve dar oportunidade à auto-organização das pessoas. Agora, o estalinismo foi uma aberração, mas o Marx tinha razão quando disse que a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores. Mas, no caso soviético, quando começou a haver repressão, quando retiraram a liberdade... isso não podia levar ao socialismo. Eu sou a favor que existam outros partidos e que a organização, os partidos, têm que assegurar o máximo de democracia interna e o respeito por todas as tendências ... Portanto, eu não defendo um socialismo com tudo estatizado. Para que as pessoas se emancipem, elas têm que ter direitos individuais, cada vez mais direitos individuais. Só que isso tem que acontecer ao nível global, na maioria do planeta e não só num país ou noutro, porque isso não pode durar... Não há outra hipótese. Eu defendo que haja auto-organização, mas também defendo que haja o mais possível negociação, onde for possível...

Elísio - Mas, por exemplo, o sindicato alguma vez tomou a iniciativa de promover cooperativas para serem os próprios trabalhadores a produzirem o calçado?

Manuel - Nos anos setenta houve muitas cooperativas, mas logo se seguiu um forte ataque às cooperativas e às empresas em autogestão. Neste momento é muito difícil! Com o desemprego a disparar em Portugal e nos países da Europa, poderá levar a que as pessoas se auto-organizem em cooperativas. Na actual situação política de predominância do neoliberalismo, elas não terão grandes condições de sobreviverem... seja em que área for, mas é preciso resistir.

Elísio - E para ti qual deverá ser o papel do Estado? Acreditas nas potencialidades do Estado-Providência?

Manuel - Acho que pode ser útil, que é indispensável defendê-lo, mas acho que não é uma solução. Está provado. Há países, como a Alemanha, onde os trabalhadores têm uma boa formação, ensino, direitos, etc... Mas o problema é que o sistema global cria essas diferenças todas... Eu defendo que haja essas reformas, mas, ao mesmo tempo, defendo que haja medidas, digamos, imediatas, de ajuda aos países do terceiro mundo. Porque senão as coisas podem melhorar em alguns países, mas noutros voltamos a uma quase escravatura... as coisas estão interligadas…

Elísio - Mas, desculpa, em Portugal e concretamente no caso do calçado, há um baixo nível de escolaridade, uma resistência à leitura, um défice de formação e um fraco saber técnico. Não sei se concordas comigo, mas a minha ideia é esta: o trabalhador que tem mais possibilidades de ser reivindicativo, de ser activo, de participar organizadamente e, portanto, de contestar o sistema, se tiver mais formação técnica, mais formação escolar...

Manuel - Não tenho dúvidas sobre isso. Eu defendo isso, mas acho que todos os cidadãos do mundo são pessoas, e se eu vir uma pessoa que está a ser oprimida eu tenho que defender os direitos dela. Apesar de defender que haja medidas indispensáveis aplicadas pelo Estado-Providência, estou convencido que isso não é solução para tudo. Tem que haver uma crescente consciencialização e participação, acho que essas coisas não se podem separar ...

Elísio - Ok, mas imagina que o Estado, com sensibilização das estruturas patronais e com a participação das estruturas sindicais, procurava desenvolver um programa de mudança e de reestruturação do sector do calçado, apostando e dando benefícios às empresas mais modernizadas, baseadas em alta tecnologia e com trabalhadores altamente qualificados, com uma formação intensiva dos trabalhadores e que dispensassem parte do horário de trabalho para frequentarem cursos, etc. O sindicato apoiaria uma iniciativa deste tipo?

Manuel - Claro! Essas são reivindicações nossas.

Elísio - E achas que têm viabilidade?

Manuel - Têm. Agora, há muitas empresas em que muitos trabalhadores resistem a isso. E se eles resistem, é porquê? Por não quererem mudança. Há muitos  trabalhadores que se opõem à formação, mas isso faz parte das nossas reivindicações. Agora, é evidente que é ao Estado que compete fazer isto. Aliás, o Estado tem estado a fazer investimentos grandes em vários sectores, nomeadamente no calçado, e nós apoiamos! É pena que isso só seja num núcleo muito pequeno de empresas. Deixar a empresa a ser ela a controlar a formação e as restruturações sozinha é negativo. E isso nós não apoiamos. O que eu defendo é que sejam os trabalhadores a controlar a aplicação dos dinheiros públicos e da empresa com vista à formação e reestruturação, em todas as empresas.

Portanto, aqui são nichos de trabalho muito particulares com pessoas que tiveram formação universitária à frente das empresas, o que não quer dizer que não hajam conflitos sociais nessas empresas. Na «Ecco Lett», por exemplo, eles têm um sistema diferente de gestão do pessoal que funciona melhor, que é influenciado pelo modelo da Dinamarca, baseado em equipas semi-autónomas, em que os prémios de produtividade são atribuídos ao grupo. E isso traz mais benefícios para o trabalhador e também para a empresa.

Elísio - Então e o sindicato apoia esse tipo de iniciativa?

Manuel - Claro. Tudo o que seja para desalienar e para melhorar as condições de trabalho, nem que seja um milímetro, nós apoiaremos! Agora, quando há processos de reestruturação o que temos defendido é que uma empresa que tem quatrocentos trabalhadores e que queira passar a ter só cento e cinquenta... o que nós defendemos é: reestruturação sim, mas temos que controlar o processo e ver quais as pessoas que vão para o desemprego. Como é que é!? Quem é que são as pessoas e em que condições querem conduzi-las ao desemprego. Por vezes, os patrões dizem «esses trabalhadores não estão preparados para fazer a reestruturação… já estão há muitos anos na empresa, etc...». Isto é tudo conversa fiada, porque nós sabemos que um trabalhador, se lhe derem formação, ele aprende a trabalhar com uma máquina computadorizada. A «Basílius», que é propriedade do antigo presidente da associação patronal, foi a primeira empresa do calçado que fez uma reconversão no sector. E eles não despediram quase ninguém. No início, houve muitos trabalhadores que vieram aqui falar connosco, com uma ansiedade muito grande, com medo de irem para o desemprego. A empresa dizia que não, que não iam para o desemprego, mas eles achavam que iam, porque não tinham capacidade para fazer aquilo. E nós intervimos exigindo que se desse formação a esses trabalhadores, que tinham entre 45 e 60 anos.

Fez-se a reconversão, introduziram-se as novas tecnologias, e só houve um ou dois que foram embora, mas por opção pessoal deles. E com isso a empresa passou a produzir melhor e os trabalhadores também passaram a ter melhores condições. Agora, já aqui vimos outros casos em que os patrões optaram pela decisão de despedir todos os que não eram capazes de fazer uma determinada função... e entrámos em conflito, porque são empresas que impõem um regime muito autoritário, não admitem que os delegados sindicais intervenham, não admitem plenários. Ainda há tempos os patrões de uma empresa fecharam os dirigentes que estavam lá dentro. O lema deles é: «Nós não queremos contratos, não queremos direitos, têm é que cumprir! Nós pagamos para cumprirem ordens!».

Na «Rhode», que também é uma grande empresa, com tecnologias avançadas, mantém-se num sistema mais autoritário. Há uma alienação total dos trabalhadores. Não respeitam os direitos, não param para discutir os processos. Têm uma maior preocupação comercial e um ritmo de produção muito intenso, anda tudo num stress completamente louco! O índice de faltas na Rhode é enorme e há gravíssimos problemas psicológicos. E isto é o que acontece em muitas empresas.

Elísio - Há bocado disseste que para ti um patrão é sempre um patrão. Mas não achas que há uma distinção entre um patrão que promove essa inovação, respeitando direitos sociais, e um patrão que promove um sistema de controlo discricionário e autoritário, como nesses casos?

Manuel - Nesse aspecto, sim. Nessas políticas de pessoal, sim. Agora, não há bons nem maus...

Elísio - Mas, admites que há aspectos em que os interesses de trabalhadores e patrões podem ser comuns?

Manuel - Pode haver casos em que mais produtividade significa mais direitos, mais salário. Mas, para isso é preciso ter pessoas formadas, pessoas capazes de executar o trabalho, haver uma boa qualificação e um bom investimento. Na maioria dos casos não é isso que acontece. Portanto, por princípio, eu acho que não é uma questão de haver patrões bons e maus. É uma questão de políticas... O problema é estrutural, nós estamos dentro desse sistema.


COMENTÁRIO

Logo de início referi que a relação de cumplicidade e amizade que ao longo dos anos estabeleci com o entrevistado foi fundamental para que a entrevista decorresse num ambiente de grande informalidade e de confiança mútua. Efectivamente, este relacionamento tem tido implicações de tal forma profundas que atingem sem dúvida o próprio domínio da investigação sociológica. Prova disso é que, por diversas vezes - antes e depois da realização desta entrevista - já me vi envolvido em situações em que o papel de investigador e de interveniente na acção se sobrepõem. 

Além das muitas vezes em que acompanhei dirigentes e delegados sindicais em acções no terreno, nomeadamente distribuindo informação e contactando os trabalhadores junto à entrada das empresas, já tive ocasião de intervir num plenário de trabalhadores, a pedido de Manuel Graça, enquanto sociólogo que estudou o sector. O facto de os estudos que já efectuei sobre a indústria do calçado se terem sempre centrado nas condições de trabalho e nos modos de vida da classe trabalhadora (em vez de privilegiarem os problemas empresariais e patronais) tende a favorecer uma perspectiva que vai ao encontro das preocupações sindicais. 

No entanto, é sabido que nem sempre os dirigentes sindicais são suficientemente abertos a interpretações heterodoxas acerca da sua actividade ou que questionem os habituais lugares-comuns em que muitas vezes se apoia a sua retórica. Neste caso, as dissonâncias de análise e de perspectiva não só nunca nos afastaram como têm contribuído para solidificar um relacionamento com mais de dez anos de existência. Acresce que, pontualmente, a minha participação em iniciativas sindicais, como por exemplo, num debate no auditório do sindicato onde foram apresentados os resultados preliminares de uma observação participante (por mim realizada numa empresa de calçado) chegou a provocar reacções patronais (no caso, do patrão da empresa onde essa pesquisa teve lugar) que me acusavam de «estar ao serviço do sindicato», o que, voluntariamente ou não, representou um posicionamento político claro, perante actores sociais tão antagónicos.

Quando a pesquisa é conduzida de modo a levar o investigador ao envolvimento profundo com os actores sociais em estudo, quando a sua prática rejeita a postura arrogante de imposição de cima para baixo do saber científico sobre os outros saberes, e quando a investigação procura assumir-se como potenciadora dos conhecimentos alternativos e da acção colectiva, é natural que a clássica relação sujeito-objecto seja posta em causa, como aconteceu neste caso. Estas situações inserem-se, portanto, num processo de permutas recíprocas. E o próprio facto de Manuel Graça ter sido convidado para tomar parte neste projecto - tendo inclusivamente estado presente no encontro internacional realizado em Coimbra em Novembro de 2000 - é ilustrativo da importância da nossa relação.

Como acabei de referir, a situação concreta da entrevista não pode ser desligada do contexto geral onde se move o relacionamento entre o entrevistador e o entrevistado e, portanto, posso dizer que, quer o depoimento aqui apresentado, quer sobretudo a relação que mantenho com este dirigente sindical, fazem já parte de um património comum, em que a experiência do líder e o seu discurso já penetraram os códigos de leitura e a matriz teórica de análise que tenho vindo a desenvolver sobre o operariado do sector do calçado desta região. Por outro lado, estou também convencido que o processo inverso também aconteceu. Os comentários públicos que Manuel Graça já dirigiu aos meus trabalhos (publicações anteriores), assim como os vários convites que me dirigiu para participar em diversas iniciativas ligadas à actividade sindical são bem ilustrativas de que, directa e indirectamente a pesquisa desenvolvida sobre este tema terão tido algum alcance prático no campo do sindicalismo português.


Notas:

1 The Doors, The Rolling Stones, Steppenwolf, Janis Joplin, Creedence Clearwater Revival, Frank Zappa, The Who, Deep Purple, etc., além dos discos de free jazz e da música portuguesa do Zeca Afonso, Adriano Oliveira, José Mário Branco e Sérgio Godinho, são apenas alguns nomes entre as várias centenas de LPs em vinil que MG ainda hoje guarda no seu escritório.

2 Um pequeno agrupamento político de inspiração trotskista, que no pós-25 de Abril de 1974 concorreu a vários actos eleitorais, mas sempre com um reduzidíssimo número de votantes. Mais tarde viria a integrar o PSR Partido Socialista Revolucionário.

3 Povoação localizada na periferia de Lisboa, na linha de Sintra, a seguir à Amadora.

4 Uma primeira tentativa de levantamento militar contra o regime, que no entanto saiu gorada, pois apenas a coluna de militares proveniente do quartel das Caldas da Rainha tentou dirigir-se à capital, tendo porém sido interceptada pelas forças do regime e os seus graduados presos.

5 O Comando Operacional do Continente - COPCON foi a estrutura dirigente do Movimento das Forças Armadas deste período, cuja figura mais influente era o então Major do Exército, Otelo Saralva de Carvalho, figura carismática e Comandante operacional do golpe militar de 25 de Abnl de 1974. Foi candidato às eleições presidenciais de 1976, tendo saído derrotado (com 16% de votos) contra Ramalho Eanes, o primeiro Presidente eleito no pós-25 de Abril. Já nos anos 80, Otelo Saraiva de Carvalho viu-se envolvido num processo judicial, acusado de autor moral de vários atentados bombistas conduzidos pela organização Forças Populares 25 de Abril (conhecida por FPs-25), tendo passado um largo período na prisão.

6 Organização política de militares que surgiu clandestinamente em 1975 no seio das Forças Armadas, integrando algumas correntes ideológicas radicais (nomeadamente trotskistas), mas em geral considerada uma criação do PCP.

7 Como se sabe, o 25 de Novembro de 1975 é a data que simboliza o início da normalização do regime democrático e o momento em que os sectores militares moderados, sob a liderança política do chamado «Grupo dos Nove» (favorável ao modelo de democracia representativa e à integração na Comunidade Europeia) e na sequência de movimentações militares comandadas por Ramalho Eanes, neutralizaram a influência do Partido Comunista e da Esquerda revolucionária no seio das Forças Armadas.

8 A entrevista foi realizada na sede do Sindicato dos Trabalhadores do Calçado em São João da Madeira em 20 de Julho de 2000. A entrevista foi gravada e depois transcrita. Esse trabalho foi particularmente difícil, dadas as fracas condições de sonoridade e também devido à linguagem e tonalidade de voz do entrevistado. Por esses motivos, algumas formulações gramaticais foram sujeitas a arranjos, após o que o entrevistado leu a entrevista e efectuou também ele algumas correcções.

9 O MES-Movimento de Esquerda Socialista, foi um pequeno partido de esquerda radical, com fraca expressão eleitoral, mas que conseguiu grande influência junto das camadas intelectuais de Lisboa e também em Comissões de Trabalhadores, sindicatos e Comissões de Moradores. A UDP-União Democrática Popular (ainda existente), resultou da fusão de diversos grupos de ideologia marxista-Ieninista, inspirados no modelo albanês. A UDP chegou a ter alguma expressão eleitoral, nomeadamente teve um deputado eleito nas eleições para a Assembleia Constituinte (Abril de 1975), e teve também uma influência significativa nos centros industriais e no movimento sindical. A BASE-FUT (Frente Unida dos Trabalhadores), foi, como o próprio nome indica, uma corrente organizada do movimento sindical, dedicada exclusivamente à intervenção sindical, que procurava organizar e formar trabalhadores e quadros revolucionários actuando dentro das estruturas sindicais existentes como corrente minoritária que apelava sobretudo à acção revolucionária a partir das bases.

10 Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses - lntersindical (CGTP-lN). É a estrutura federativa maioritária a nível nacional, ideologicamente conotada com o Partido Comunista Português. A outra central, rival desta e mais próxima do Partido Socialista é a União Geral dos Trabalhadores (UGT). A Lei da Unicidade sindical, aprovada em 1975 (durante os governos de influência comunista) mas revogada pouco depois, estabelecia a obrigatoriedade de uma única Confederação sindical a nível nacional.

11 O PRP Partido Revolucionário do Proletariado, era também um pequeno grupo, de influência trotskista, liderado por Carlos Antunes e Isabel do Carmo. Este grupo foi um dos promotores das Forças Populares 25 de Abril (FPs-25) e os seus dirigentes passaram mais tarde um período na prisão relacionado com o mesmo processo que envolveu Otelo Saraiva de Carvalho.

12 O autodesignado Exército de Libertação Português foi um grupo de extrema direita, criado em 1975, que recorreu à actividade bombista contra as forças e partidos de esquerda, liderado por figuras ligadas ao regime salazarista.

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