Num texto publicado em 2009 escrevia o professor alemão Michael Brie, o seguinte: “Maiorias de Esquerda não existem - Maiorias de esquerda têm que ser criadas”1. É talvez um bom princípio para definir a posição actual do Bloco de Esquerda, tal como essa posição resultou das eleições de Junho passado. Digamos, em síntese, que a saída da situação em que o País se encontra só pode ser concretizada por uma maioria de esquerda, que ainda não existe, uma maioria que ainda tem que ser criada. Que papel poderá ter o Bloco de Esquerda na criação dessa maioria?
Desde logo, talvez não seja a melhor atitude exigir de um partido nascido há apenas 12 anos mais do que aquilo que ele efectivamente pode dar. A este propósito, e voltando ao texto de M. Brie, o autor lembra que o SPD alemão - com cuja cuja dimensão e história o Bloco de Esquerda não se pode comparar - precisou de quase vinte anos, depois da II Guerra Mundial, para construir na República Federal da Alemanha um projecto que ao mesmo tempo fosse capaz de ser hegemónico e se pudesse concretizar politicamente.
Uma maioria de esquerda implica, como M. Brie escreve, uma remodelação solidária da sociedade. Para tal é necessária uma constelação política viável, suportada pelos seus próprios partidários e reconhecida como legítima pela população. Não manobras tácticas, mas sim mudanças estratégicas. Segundo M. Brie, os passos mais importantes para uma remodelação solidária da sociedade consistem na luta por uma modificação social mais ampla, ao longo das seguintes orientações: (1) Uma nova direcção do desenvolvimento social, no sentido de uma transformação socio-ecológica do conjunto da produção e da forma de vida nas próximas duas décadas. (2) Uma nova forma de Segurança Social e de integração, com fundamento numa protecção de base, que seja resistente à pobreza e orientada segundo as necessidades, e a renovação do sector público, bem como a construção de um sector social, na educação, saúde, ciência e investigação, desporto, serviço e assistência sociais, bem com a protecção da natureza. (3) Novas relações de poder, de propriedade e de disposição patrimonial, através da socialização da função-investimento (primado da política nas decisões económicas relevantes e decisivas para a determinação das direcções a seguir), e democratização da economia e do Estado. (4) Uma nova solidariedade internacional através de contributos mais fortes para o desenvolvimento comum em paz e segurança.
Ora, é evidente que nenhum destes objectivos é desconhecido dos partidos de esquerda em Portugal. E também todos estes objectivos, de forma mais ou menos explícita, se encontram consagrados na moção que reuniu o maior número de consensos apresentada à VII Convenção do Bloco. O que é que falta então? Falta, possivelmente, um ponto essencial, que aliás M. Brie também salienta referindo-se ao Die Linke alemão, mas que se pode perfeitamente aplicar ao Bloco de Esquerda: neste momento a população reconhece ao Bloco de Esquerda ainda apenas uma pequena competência para dar a forma ao futuro.
Não se trata, portanto, da questão de não se reconhecer a validade das posições críticas do Bloco. A questão será, sim, que uma parte da população não vê como é que saindo das posições críticas de desmontagem do neoliberalismo o Bloco parte para a construção de uma sociedade nova e qual será essa sociedade.
É certo que o Bloco fez, e faz, as propostas que tinha e tem que fazer, sobre como reagir à situação actual. Assim como procurou sempre demonstrar que toda a armadilha financeira, que foi montada à volta do país, não é algo de forçoso, muito menos de inevitável, e que há alternativas.
Mas falta a ligação entre a crítica ao sistema político-económico vigente e a visão do futuro. Dito de outra forma, o que as pessoas precisam não é apenas que lhes demonstrem que o que se faz politicamente hoje em dia está errado. Isso muitas, cada uma à sua maneira, já o sabem. O que as pessoas precisam é que a política lhes diga, caso aceitem sair do sistema actual, onde, e como é que elas e os seus filhos e netos vão viver amanhã. Essa tarefa, para uma grande parte da população não está feita - basta pensar não apenas nos eleitores perdidos pelo Bloco, mas também em todos aqueles que pela via da abstenção já voltaram as costas à política. E enquanto essa tarefa não for feita, só muito poucos continuarão a atribuir ao Bloco de Esquerda competências em relação ao futuro.
Há uma caracterização muita expressiva desta situação, feita por Sartre, quando escreveu: “(...) é necessário inverter aqui a opinião geral e pormo-nos de acordo em que não é a duração de uma situação ou os sofrimentos que ela impõe que são motivos para que se conceba um outro estado de coisas, em que todos estariam melhor: pelo contrário, é a partir do dia em que se pode conceber um outro estado de coisas que uma luz nova cai sobre os nossos esforços e os nossos sofrimentos e que nós decidimos que eles são insuportáveis”.2
Ninguém terá dúvidas de que uma grande parte da população portuguesa vive hoje em dia situações insuportáveis. Por exemplo, e como se refere na moção aprovada na VII Convenção, os desempregados e os empregados a recibo verde, a prazo e temporários, que são quase metade dos trabalhadores do país e boa parte deles jovens e qualificados. Ora, todos estes trabalhadores não vivem situações “difíceis” ou sequer “injustas”. Objectivamente, vivem situações insuportáveis. Simplesmente ainda não decidiram que é, de facto, assim, e não decidirão até que, como Sartre escreve, sobre a sua situação caia uma outra luz, nascida da visão de um outro estado de coisas, em que todos estariam melhor. Até chegar o momento em que essa possibilidade se lhes torne evidente, continuarão a dizer que tudo é “difícil”, que é “injusto”, mas aceitarão, sob protesto e com grande revolta interior, mas aceitarão, todas as injustiças adicionais que ainda lhes fizerem, e nunca dirão que tudo isto é insuportável, porque para tal lhes faltará a visão de um futuro melhor.
Talvez seja isso que o Bloco de Esquerda precise de fazer: dar a visão de um futuro melhor. E então, e talvez só então, perante a visão de uma sociedade nova, de uma sociedade do futuro, muitos compreendam que a sua situação e a sociedade em que vivem lhes é, de facto, insuportável, que uma outra será melhor para todos, e atribuam aos partidos que a quiserem realizar as competências necessárias para criarem o futuro. E então sim, então estarão reunidas as condições necessárias para uma maioria de esquerda.
João Alexandrino Fernandes
1 Michael Brie, Linke Mehrheiten gibt es nicht ? linke Mehrheiten müssen geschaffen werden!Beitrag für die Zeitschrift Neue Gesellschaft/Frankfurter Hefte, Heft Oktober 2009, disponível online em http://www.rosalux.de/publication/35870/linke-mehrheiten-gibt-es-nicht-linke-mehrheiten-muessen-geschaffen-werden.html. Michael Brie é o director do Institut für Gesellschaftsanalyse da Rosa Luxemburg-Stiftung, em Berlim, que é a fundação do Die Linke para a investigação e formação política.
2 “Car il faut ici inverser l’opinion générale et convenir de ce que ce n’est pas la dureté d’une situation ou les souffrances qu’elle impose qui sont motifs pour qu’on conçoive un autre état de choses où il en irait mieux pour tout le monde; au contraire, c’est a partir du jour où l’on peut concevoir un autre état de choses qu’une lumière neuve tombe sur nos peines et nos souffrances et nous décidons qu’elles sont insupportables”: Jean-Paul Sartre, L’Être et le Néant, Gallimard, 52. Ed., Paris, 1957, p. 510.