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"A maioria absoluta abandonou a maioria do povo"

Leia aqui a intervenção de Catarina Martins no encerramento do debate do Orçamento do Estado para 2022.
Senhor Presidente,
Senhor Primeiro-Ministro,
Senhoras e senhores membros do Governo,
Senhoras e senhores deputados,
A crítica mais dura ao governo anterior de António Costa chegou a este debate pelo atual governo de António Costa. Eu explico: lembram-se do Orçamento que António Costa segurava para as câmaras no último debate eleitoral? Previa um défice de 3,2%. No debate de hoje, o Ministro das Finanças respondeu ao Bloco de Esquerda que o défice que António Costa previa há três meses era uma irresponsabilidade. Uma crítica que também é uma clarificação: a inflação permite um aumento brutal da receita fiscal, mas o governo decidiu não usar essa receita para apoiar quem trabalha e vê o seu salário comido pela inflação, nem mesmo para responder aos enormes problemas dos serviços públicos essenciais. O governo vai usar essa receita suplementar para rever em baixa a meta de défice e ir além das regras europeias que hoje, aliás, estão suspensas.
Desengane-se, porém, quem pensar que esta corrida acelerada ao défice sinaliza uma qualquer mudança política; a compressão de salários e Estado Social é a opção reiterada do PS desde 2019 e foi essa opção que precipitou a crise política. Hoje, com o conforto da maioria absoluta, o PS arrisca finalmente a clareza. Brilhante Dias é o líder certo para esta bancada absoluta; já em 2013 acusava o governo PSD/CDS de não fazer suficiente consolidação orçamental. Quando o povo gritava “que se lixe a troika”, quando o Bloco e alguns deputados do PS se juntaram para ir ao Tribunal Constitucional defender quem trabalha, Brilhante Dias estava do outro lado, a querer mais cortes.
Em 2014, António Costa ganhou o PS fazendo campanha contra essa visão. Dizia na altura: “Se pensarmos como a direita pensa, acabamos a governar como a direita governou.” Hoje, quando volto a ouvir um Ministro das Finanças comparar o Orçamento do Estado com o de uma família e repetir o discurso velho e errado da direita sobre a dívida e o défice, sou forçada a concordar com o António Costa de 2014.
Senhoras e senhores deputados,
O Orçamento do Estado prevê uma inflação de 4% em 2022. Não vou debater o otimismo dessa previsão, face aos dados conhecidos. A questão central é outra: mesmo que o governo acerte as previsões da inflação, o Orçamento falha a resposta.
A generalidade das medidas anunciadas para combater a inflação é tão residual que não entra sequer no Orçamento; têm cabimento nos duodécimos do Orçamento de 2021. A medida de apoio às famílias vulneráveis vale menos de 0,03% do PIB. Nem com uma lupa se encontra.
Este orçamento coloca quem é mais pobre, e não tem margem para acomodar a alta de preços, numa situação impossível. Nem o Indexante dos Apoios Sociais - a referência dos apoios sociais - é atualizado à inflação.
A proposta de atualização dos salários dos trabalhadores do Estado, que serve de referência para o setor privado, também ignora as previsões de inflação do próprio orçamento. Há três meses, o Primeiro-Ministro prometia a professores e enfermeiros que teriam mais rendimento. Agora garante que, com uma inflação de pelo menos 4% e uma atualização salarial de 0,9%, os preços vão subir quatro vezes mais do que os salários.
O Ministro das Finanças dizia hoje que aumentar salários e pensões à inflação seria uma ilusão. Senhor ministro Fernando Medina, criar ilusão é prometer que esta inflação - que é gerada do lado da oferta e não da procura - possa ser contrariada por quebra da procura (através da corrosão dos salários) e não por tabelamento de preços e controlo de margens, do lado da oferta.
Registe-se que nem a despesa com serviços públicos é atualizada pela inflação. Ou seja: com tudo mais caro, os serviços públicos ficam com menos meios. Escolas, Saúde e Justiça em agonia de meios, é o que o governo nos propõe neste orçamento. Até a cultura, e o seu orçamento quase inexistente, encolhe. Deve ser a tal prudência.
Mas o governo “da prudência” não dispensa as mãos largas para alguns. Continua sem cobrar o imposto de selo da EDP, continua a prever 138 milhões adicionais para o Novo Banco em ativos por impostos diferidos, até recuou na intenção de tributar os lucros extraordinários das empresas. Mantém vistos gold, borla fiscal a residentes não habituais e fundos imobiliários, alojamento local desenfreado, alimentando a crise da habitação. E, sob o aplauso de Cavaco Silva, mantém a legislação laboral da troika enquanto os administradores das maiores empresas aumentam as suas remunerações em 90% e distribuem milhões em dividendos.
Senhor Primeiro-Ministro,
Hoje mesmo, o governo trouxe a debate os números do PIB que acabam de ser divulgados, ignorando os da inflação: 7,2% este mês. Ou seja, apesar do crescimento económico, os salários estão mais curtos. Diga-nos o Senhor Primeiro-Ministro, o que acontece quando o PIB aumenta mas os salários não? Ouviu-se o eco de um velho refrão: “o país está muito melhor, as pessoas é que não.”
Ao repetir os velhos mantra da direita, o senhor fala numa língua morta. Ele deixou de usar-se quando, em 2016, ficou provado que o crescimento económico e a consolidação orçamental dependem de uma economia que puxe pelos salários e pensões. Bem sei que a direita fica paralisada quando ouve essa missa em latim, mas calar a direita com o programa da direita é o avesso de um orçamento de esquerda.
Esta legislatura só tem um mês e há já uma evidência: a maioria absoluta abandonou a maioria do povo. O Bloco de Esquerda, pelo contrário, não deixou de acreditar na escola pública para as crianças, no SNS para quem precisa, na habitação como um direito e não um luxo, na ideia de que um jovem não deve viver condenado à escolha entre o desemprego e o contrato precário, numa economia que respeita quem trabalha. É em nome dessa maioria que, sem surpresa, votaremos contra este orçamento. Se em Outubro de 2021 ele já era muito mau, em Abril de 2022 é uma condenação da maioria das pessoas a uma vida pior.
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