Numa demonstração histórica de força que juntou estudantes, agricultores e cidadãos de toda a Sérvia, mais de 100.000 pessoas invadiram a Praça Slavija, em Belgrado, no domingo dia 22. De acordo com o Arquivo de Reuniões Públicas (Arhiv javnih skupova), esta mobilização ultrapassou as manifestações de 5 de outubro de 2000, que levaram à queda do regime autoritário de Slobodan Milošević.
Uma mobilização nascida de uma tragédia
A tragédia de 1 de novembro – a queda de uma cobertura de betão na estação de Novi Sad [1], que causou a morte de 15 pessoas – desencadeou uma onda de protestos sem precedentes. Esta catástrofe tornou-se um símbolo da decadência institucional num país onde os grandes escândalos ficam muitas vezes impunes.
Os estudantes, que foram os primeiros a mobilizar-se, rapidamente fizeram causa comum com ativistas ambientais e agrícolas, particularmente na sua oposição ao controverso projeto de extração de lítio de Jadar. Esta convergência criou o que os analistas descrevem como uma aliança sem precedentes entre estudantes urbanos e ativistas rurais.
“Ruke su vam krvave” (As vossas mãos estão ensanguentadas) – uma mensagem exibida na fonte da Praça Slavija tornou-se o símbolo do movimento.
Lítio, uma questão europeia e um obstáculo nacional
No centro dos protestos está o controverso projeto de extração de lítio no vale de Jadar, promovido pelo gigante mineiro Rio Tinto. O projeto representa o maior depósito de lítio descoberto na Europa, um mineral essencial para a transição ecológica da Europa e para o fabrico de baterias elétricas.
Inicialmente suspenso em 2022 após protestos massivos, o projeto da Rio Tinto, que representa um investimento de 2,4 mil milhões de euros, foi relançado em 2023 através de um memorando de entendimento secreto entre o Presidente sérvio Aleksandar Vučić e o Vice-Presidente da Comissão Europeia Maroš Šefčovič.
“O que começou como uma luta ambiental local tornou-se uma luta pela nossa soberania face a interesses estrangeiros”, diz Zlatko Kokanović, líder do movimento Ne damo Jadar (Não cedemos Jadar)
Intensificação do envolvimento europeu
O acordo com a Rio Tinto inscreve-se numa estratégia mais alargada da UE para salvaguardar o abastecimento de lítio face à China. O fabricante eslovaco de baterias InoBat assinou recentemente um acordo para construir uma fábrica na cidade sérvia de Cuprija, com o apoio de 419 milhões de euros em subsídios governamentais. Esta convergência de interesses industriais europeus e de uma exploração mineira controversa ilustra as tensões crescentes em torno da transição ecológica.
Universidade e sociedade civil: uma convergência de lutas
As manifestações contestam também os projetos de reforma do ensino superior, que os críticos veem como uma forma de privatização disfarçada. O analista Stefan Aleksić explica:
“Depois de desmantelarmos a nossa indústria desenvolvida para permitir que o capital estrangeiro instale fábricas de miséria, vamos agora desmantelar as nossas instituições educativas. A universidade vai tornar-se uma nova zona franca de investimentos”.
Mais de uma centena de estudantes de doutoramento da Universidade de Belgrado emitiram uma declaração sublinhando o papel histórico da sua instituição na “defesa do conhecimento, do pensamento crítico e da integridade académica”. Afirmam que “o pensamento crítico envolve não só o exame do conhecimento científico mas também a análise da sociedade a que pertencemos”.
A manifestação histórica de domingo 22
A manifestação teve início às 16h00 na Praça Slavija, com os cortejos de estudantes a convergirem a partir de quatro direções principais. Fazendo eco dos protestos anti-nacionalistas de 1996/97 [2], os estudantes carregavam cartazes proclamando “Belgrado é de novo o mundo” – uma rejeição explícita da política isolacionista – juntamente com mensagens como “A corrupção mata” e “O Estado é propriedade das crianças”, esta última em resposta à afirmação de um deputado do partido no poder de que “os menores são propriedade do Estado”.
Um momento particularmente forte ocorreu às 16h30, quando a enorme multidão guardou quinze minutos de silêncio em memória das vítimas de Novi Sad, com os manifestantes a erguerem os telemóveis como velas, naquilo que foi descrito como um “silêncio ensurdecedor”
A aliança entre estudantes e agricultores posta à prova
A tentativa de Zlatko Kokanović, ativista agrícola, de levar um trator para a manifestação – uma reminiscência do bulldozer simbólico de 5 de outubro de 2000 – levou à sua detenção, juntamente com Nebojša Petković, outra figura do movimento Ne damo Jadar. O trator, rebocado pela polícia, tornou-se um novo símbolo da resistência.
“Quando os agricultores manifestaram o seu apoio aos estudantes que bloqueavam as universidades, o governo tentou silenciar-nos com proibições de cinco anos para a agricultura. Mas subestimaram até que ponto o seu ataque à educação e a sua política ambiental uniram a Sérvia urbana e rural”, explicou Nebojša Petković.
Resistência dos media e continuação da mobilização
Enquanto os manifestantes passavam em frente ao edifício da Rádio Televisão Sérvia (RTS) [3], vários empregados publicaram uma carta aberta dissociando-se do silêncio do seu empregador sobre os protestos. Esta dissidência interna assinala uma importante brecha no controlo estatal dos meios de comunicação social.
Perspetivas de futuro
A manifestação de domingo – duas vezes maior do que os recentes protestos ambientais contra a Rio Tinto e do que qualquer manifestação pró-governamental – levanta a questão dos próximos passos. Enquanto alguns apelam a uma aproximação à oposição parlamentar, muitos manifestantes desconfiam tanto da oposição de centro-esquerda como da de centro-direita. Outros apelam a uma greve geral, embora os sindicatos permaneçam notavelmente silenciosos.
Os organizadores estudantis continuam determinados, declarando na sua conta de Instagram “Estudantes em Bloqueio”: “Fiquem connosco – estamos apenas a começar!” Elogiaram os manifestantes pela sua não-violência e solidariedade, acrescentando: “Obrigado por olharem por nós, nós também vamos olhar por vocês!”
Uma coisa é certa: a Sérvia está a enfrentar o seu maior movimento de cidadãos desde 2000, um movimento que tem sido singularmente bem sucedido em fazer a ponte entre as divisões urbano-rurais, desafiando simultaneamente a corrupção interna e as pressões económicas internacionais. Resta saber se isto se traduzirá em mudanças políticas concretas, mas a manifestação de domingo marcou uma clara escalada tanto na amplitude como no alcance social de um movimento que já atingiu proporções históricas.
Por Mark Johson
Dezenas de milhares voltaram às ruas da Sérvia na noite da passagem de ano
Este movimento entretanto não desarma depois da grande manifestação. Na noite de 24 de dezembro, voltou a haver protestos com os estudantes a fazerem uma vigília silenciosa de 15 minutos em Belgrado e a entregarem ao procurador-geral Zagorka Dolovac 1.000 cartas idênticas a protestar contra a lentidão das investigações ao colapso da cobertura da estação de Novi Sad.
Na missiva podia ler-se que “os estudantes exigem que lute pela lei e pela justiça sem quaisquer mal-práticas políticas ou corruptas” e nas manifestações viam-se os cartazes mostrando a mão sangrenta que representam a responsabilidade do Governo pelo sucedido.
Na última noite do ano, dezenas de milhares de manifestantes voltaram a manifestar-se em várias cidades da Sérvia, sempre com forte presença estudantil, sob o lema “não há ano novo – ainda nos devem o velho”. Consideram que “não há nada para celebrar”.
Os cânticos de “queremos justiça” silenciaram-se às 23.52 para se voltar a fazer 15 minutos de silêncio pelas vítimas.
Foi assim, em silêncio, com as luzes dos telemóveis acesas e de cabeças dobradas em sinal de respeito, que entraram em 2025.
E o mesmo aconteceu em Nis, uma cidade universitária do sul. Em Novi Sad, cidade onde aconteceu a tragédia, também houve protestos.
Os manifestantes quiseram assim mostrar que continuam empenhados na sua causa apesar da época festiva e apesar de, na passada segunda-feira, a procuradoria sérvia ter finalmente acusado 13 pessoas, incluindo um ex-ministro, pelo desmoronamento. As críticas apontam que as acusações não incluem a possibilidade de corrupção nos contratos de renovação da estação ferroviária e que integra um negócio mais alargado com empresas chinesas.
Quase todas as universidades do país, de acordo com a agência noticiosa AFP, continuam bloqueadas.
Por Esquerda.net
Primeira parte publicada originalmente no Europe Solidaire. Editada pelo Esquerda.net para incluir os protestos na noite da passagem de ano.
Notas:
[1] Segunda maior cidade da Sérvia, a norte de Belgrado.
[2] Manifestações históricas contra o regime de Milošević que duraram mais de três meses.
[3] Televisão pública sérvia
[4] Nome dos dois únicos soberanos sérvios que renunciaram voluntariamente ao poder.