Memória

Luta de classes e violência política no declínio da República: A Legião Vermelha

12 de abril 2025 - 3:31

A Legião Vermelha foi uma pequena, mas muito activa organização, que nunca terá chegado a ter uma centena de membros, obscura nas suas origens.  Para os anarquistas era uma criação dos comunistas e para os comunistas, só podia ser anarquista.

porJoão Madeira

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Símbolo da Legião Vermelha
Símbolo da Legião Vermelha

Os jornais de 28 de Maio de 1924 noticiavam a morte de três jovens e um polícia nos Olivais, à época um subúrbio de Lisboa. Por denúncia, uma brigada da polícia flagrara quatro jovens, que acusava de pertencerem à Legião Vermelha. Do confronto resultaram essas mortes. Lesta, a polícia identifica-os. Eram todos acusados de acções bombistas e atentados pessoais. Na versão oficial, de que a imprensa fizera imediatamente eco, o grupo preparava um atentado contra um grande industrial da panificação.

Dias depois, o diário “A Batalha”, órgão da CGT, a Confederação Geral do Trabalho, contrapunha outra versão, recolhida no local. Não era por ali o trajecto do industrial e os jovens não estavam à espreita de ninguém, mas escondidos da polícia, que de há muito os perseguia. Surpreendidos, fugiram. Um conseguiu escapar e outro, sob mira de uma arma, ripostou, fulminando um agente. Seria depois alvejado pelos restantes policiais. Outros dois, que se haviam refugiado numa fábrica, seriam presos e, depois, sumariamente fuzilados.

Fernando Rosas
Fernando Rosas

Celebrar, fazendo a República hoje

06 de outubro 2010

A Legião Vermelha havia assumido pela primeira vez a autoria de um atentado em Setembro de  1922, contra Sérgio Príncipe, então dirigente da Confederação Patronal e chefe da sua milícia. Dois jovens apunhalam-no em plena rua e deixam um papel em que se lia “Sérgio Príncipe, ex-militante sindicalista, ferroviário, que outrora, incitava os seus camaradas à revolta, pregando a luta pela bomba, pelo revólver e pelo punhal, era agora a alma negra da Confederação Patronal, sinistra associação de bandidos e malfeitores que têm acumulado fortunas fabulosas, explorando a miséria de todo um povo que eles, na impunidade da lei, assassinaram lentamente pela fome. Como justo prémio da vil traição e para que um triste fim sirva de salutar exemplo a todos os outros exploradores do Povo, Sérgio Príncipe foi condenado à morte pela Legião Vermelha”.

A sua existência remontaria a 1919. Nos anos que se seguiram à primeira guerra mundial, a degradação das condições de vida dos trabalhadores, diante de taxas elevadíssimas de inflação e da falta de bens de primeira necessidade, provocou a radicalização do movimento operário e popular. Foram anos de verdadeira ofensiva operária, com sucessivas greves particularmente aguerridas e prolongadas, mas também assaltos a armazéns e depósitos de víveres. 1920 foi o ano de apogeu desta ofensiva. A greve dos ferroviários, entre Setembro e Dezembro constitui um marco neste período. Além das greves, destacava-se a acção directa de entre as formas de luta das correntes anarquistas e anarco-sindicalistas.

Ao mesmo tempo os governos intensificam a repressão, com prisões e deportações em larga escala, assalto às sedes sindicais, investidas contra a imprensa operária. Reorganizam-se as polícias e em 1920 é criado um tribunal especial, o Tribunal de Defesa Social, para julgar sumariamente quem fosse acusado de atentar contra a “segurança do estado”.

Neste contexto de acirrada luta de classes, a partir de 1921, o movimento social começa a dar sinais de fragilidade, algumas lutas, apesar da combatividade, não se traduzem em vitórias. Assiste-se a uma tendência de inversão para um quadro de refluxo. Adquire significado o debate que se trava sobre as dificuldades e a impotência do movimento. A ideia de que a luta social precisa de escorar-se numa alternativa política é recusada pelos anarco-sindicalistas, intrinsecamente “apolíticos”. Do cruzamento dessa necessidade com o impacto da revolução bolchevique de 1917 nasce em 1921 o Partido Comunista, gorada a antecedente Federação Maximalista Portuguesa.

O Partido Comunista funda-se com militantes oriundos das diferentes correntes do movimento operário, sobretudo sindicalistas de tendências anarquistas. Esse veio manteve-se como persistente viscosidade, transportando para o seu seio a pulsão pela acção directa.  Nos anos de 1919-20, aderentes da Federação Maximalista participam, ou pelo menos são acusados, de envolvimento no atentado contra Alfredo da Silva, o patrão da CUF, em Julho de 1919, ou contra os juízes do Tribunal de Defesa Social, logo após a sua constituição.

No verão de 1922, quando se dá o atentado a Sérgio Príncipe,  o governo, em nome do combate ao défice orçamental, decidira acabar com o “pão político”, isto é com o subsídio às importações de trigo, provocando o aumento do preço do pão e criando duas qualidades, um de primeira e outro mais barato, mas intragável. Levantou-se um clamor de indignação popular. A União dos Sindicatos Operários proclamou greve geral em Lisboa, incitando “o povo a vir para a rua, (…) arrombar as portas dos açambarcadores e (…) pendurar nos cadeeiros os ladrões e os políticos sem vergonha”. A repressão é violenta, é decretado o estado de sítio e feitas muitas prisões. A sede da CGT é encerrada e o jornal «A Batalha» apreendido. Em resposta, há padarias e moagens assaltadas, polícias atacados a tiro por grupos armados, eléctricos apedrejados.

Livro de Sérgio Príncipe
Sérgio Príncipe sobreviveu ao atentado, abandonou o cargo na associação patronal e no ano seguinte escreveu este livro onde anunciou a sua partida para África. Viria a morrer em 1971 em Angola.

A greve fora extensa, mas não conseguira ser geral nem vitoriosa. Traduz já a inversão de tendência para uma fase de refluxo. Recrudescem, em contrapartida, as acções violentas por parte dos sectores mais radicalizados do movimento operário. Estão activos vários grupos. É o caso dos Comités de Defesa Social, criados pelas juventudes sindicalistas, organizados clandestinamente em cada sindicato “com a finalidade de coordenar a acção revolucionária da Juventude (…) usando todas as armas possíveis para fazer face à força do Poder em vista da implantação de um novo sistema de vida social”. Foram estes Comités que secundaram algumas das greves com atentados bombistas, como a dos manipuladores de pão ou da CARRIS de Lisboa.

À margem dos sindicatos existia uma Federação dos Comités Revolucionários Vermelhos de Portugal, cujo manifesto proclama: “Se a polícia ou a guarda te fizer frente, nada de recuar que os revolucionários vermelhos lá estarão também armados! Às espingardas responderemos com pistolas! Às metralhadoras com bombas! À artilharia com o incêndio máximo!”.

Era também o caso da Legião Vermelha. A partir do atentado a Sérgio Príncipe, sucedem-se na imprensa referências a esta organização. Só entre Janeiro de 1923 e Julho de 1924, são-lhe atribuídos 135 atentados. No parlamento há um coro praticamente uníssono de condenação. A pressão para que os governos adoptem fortes medidas repressivas é enorme. Afinam-se os aparelhos repressivos com a concentração de diferentes polícias, como a PSE, Polícia de Segurança do Estado, sob a dependência de uma Polícia Cívica, vinculada ao Governo Civil de Lisboa, cujo comando é entregue ao coronel Ferreira do Amaral, dotado de amplos poderes.

Mas o que foi efectivamente a Legião Vermelha? Uma pequena, mas muito activa organização, que nunca terá chegado a ter uma centena de membros, obscura nas suas origens.  Para os anarquistas era uma criação dos comunistas e para os comunistas, só podia ser anarquista.

Daquilo que é hoje possível apurar, José de Melo de Aguiar, um dos dirigentes e principais operacionais da Legião Vermelha pertencera à primeira Junta Nacional das Juventudes Comunistas, que se forma em 1921, a partir de uma cisão das Juventudes Sindicalistas. Aguiar é acusado pelos serviços de informação da polícia, de ter participado nos atentados contra Sérgio Príncipe, contra os juízes do Tribunal de Defesa Social, contra agentes policiais, de fabrico de engenhos explosivos e sua colocação em padarias, igrejas, residências. Afinal, as mesmas acusações dos três jovens sumariamente mortos pela polícia nos Olivais.

Fotografia no cadastro policial de José de Melo Aguiar
Fotografia no cadastro policial de José de Melo Aguiar

Outros elementos apontados pela PSE também pertenceram às Juventudes Comunistas e alguns ao PCP. Ezequiel Seigo “O Gravoche”, jovem operário morto nos Olivais, quando preso em Julho de 1923, reconhece ter sido nas Juventudes secretário da subcomissão de propaganda e educação. Esta situação terá justificado que em 1925 o Socorro Vermelho Internacional atribua uma contribuição de solidariedade à sua mãe, de quem era o único sustento.

O símbolo da Legião Vermelha,  a foice e o martelo combinado com o triângulo de conotação maçónica e carbonária, juntava a inspiração comunista ao património das organizações secretas do republicanismo. Não era uma organização propriamente comunista. Alimentava-se da radicalidade de muitos jovens comunistas, de simpatizantes e, provavelmente, também de dissidências anarco-sindicalistas,  associada a uma forte pulsão para a acção directa.

Cartão de filiado nas Juventudes Comunistas
Cartão de filiado nas Juventudes Comunistas.

No que se refere aos jovens comunistas que a integraram, acresce à situação o desfecho da primeira grave crise interna ocorrida no PCP, em 1923. Os delegados que participam em Moscovo no IV Congresso da Internacional Comunista, regressam empenhados na bolchevização do partido e pretendem levar a cabo uma profunda depuração nas suas fileiras. Opõe-se-lhes um grupo maioritário, encabeçado por Carlos Rates, que defende prioritariamente o reforço da participação nos sindicatos e entendimentos com o Partido Socialista e com a esquerda republicana. Jules Humbert Droz, delegado da Internacional Comunista a Lisboa, toma partido por Rates. A minoria é expulsa e as Juventudes Comunistas dissolvidas. Parte destes jovens expulsos já pertenciam ou terão engrossado a Legião Vermelha. O PCP, com o apoio da IC, nunca quis admitir qualquer relação com aquela organização e tratou de censurar asperamente os seus meios violentos de acção.

Cartaz do Secretariado de Propaganda Nacional, ca. 1940
Década e meia após a sua extinção, a Legião Vermelha ainda era usada na propaganda da ditadura. Cartaz do Secretariado de Propaganda Nacional, ca. 1940, Arq. Biblioteca Nacional.

A fortíssima repressão que se abateu sobre essa organização, minada por infiltrações policiais, com a prisão e morte de muitos dos seus membros, como sucedeu nos Olivais em 1924, desmembrou-a. Terão, em 1925, atentado ainda contra o Coronel Ferreira do Amaral, que sobrevive e da cama do hospital lança o assalto final à organização. Os seus remanescentes, em deriva, já haviam enveredado por acções desgarradas de delito comum, como falsificação de cédulas-moeda ou assaltos a clubes de diversão nocturna para angariação de fundos.

O seu isolamento foi total. Os principais dirigentes começam a ser deportados sem julgamento para as colónias de África e Timor ainda antes do golpe militar de 28 de Maio de 1926. A sua existência marca bem  a crise e o declínio do período republicano e constitui expressão dolorosa da impotência e desespero de sectores mais radicalizados do movimento operário num acentuado quadro de refluxo, onde não se vislumbraram perspectivas claras de acumulação de forças no sentido de inverter a situação.

João Madeira
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João Madeira

Historiador
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