Há dias teve lugar a Marcha das Mulheres nos Estados Unidos. Dezenas de milhares de pessoas manifestaram-se a favor da igualdade de género coincidindo com o primeiro aniversário do governo de Donald Trump.
Um fantasma atravessa o castelhano, uma espiral de “decadência”, uma inclinação para o “absurdo”, uma “aberração” que põe em perigo as línguas românicas. Será o chamar “muffin” aos queques, o “hades ver”, o abismo do “vamos haver” e o “fizestes-me falta”? Nada disso, este é um problema grande e em perigosa expansão: é a linguagem não sexista, ou a linguagem inclusiva. Estas terroristas da linguagem, estas “kamikazes da gramática” nem sequer estão de acordo na sua definição. Estas pessoas obcecadas em subverter o que deve permanecer estável para o bom entendimento da humanidade. Porque, como é sabido, a linguagem é inalterável, não evolui, não quer saber dos usos da sua época.
Desculpem a ironia inicial, porque, na verdade, não queria começar assim. Pretendia escrever um artigo sisudo e racional, ponderado e didático sobre a linguagem inclusiva. Para isso mergulhei não só na carta que provoca esta resposta, mas também no conjunto de artigos e manifestos sobre a questão. E encontrei, há que dizê-lo, aparência de racionalidade, ponderação e didática. Mas no fundo agita-se um medo da mudança, um catastrofismo linguístico que revela mais do que o que dizem as palavras cuidadosamente escolhidas por quem se manifesta, com grande preocupação, contra “o mal que se está a fazer ao nosso idioma”, “o assunto gravíssimo” da duplicação dos plurais ou este caminho de “destruir a linguagem para nada”.
Por linguagem não sexista ou inclusiva, entendemos as práticas linguísticas que procuram visibilizar os diversos géneros. Em espanhol esta prática enfrenta dois desafios centrais: nomear as pessoas no plural sem usar exclusivamente as formas masculinas e questionar o uso do singular masculino como genérico que inclui as mulheres. A partir dos feminismos, há muito tempo que se rejeita a universalidade do masculino, se questiona que este tenha a capacidade de nos nomear a todas e todos e, em consequência, têm-se pensado alternativas nas quais nos sintamos incluídas e representadas.
Sentirem-se incluídas e representadas? O que é isso de manipular a linguagem em função dos vossos sentimentos e perceções? O argumento zero contra a linguagem inclusiva seria que se as mulheres não se sentem de todo representadas ou visibilizadas quando se diz “nossos” ou “cidadãos” isso se deve a uma perceção errónea e ao seu desconhecimento de, ou pior, à sua insubmissão às leis da gramática. Que o masculino plural represente mulheres e homens e o feminino plural só represente as mulheres é uma questão friamente linguística, que o masculino seja neutro e universal e o feminino particular e específico é inquestionável porque assim o dizem os usos comum, a imperialíssima Real Academia Espanhola da Língua (RAE) e diversas gramáticas que podemos livremente consultar para combater a nossa ignorância. Mas a linguagem reflete a realidade e constrói-a, não existe num éter conceptual, em que flutua, livre de leis humanas, sujeita apenas às neutrais e nada sexistas pautas da gramática. Acontece que no mesmo mundo onde o plural ou o universal se conjugam no masculino, o poder político e económico também o fazem, basta ver a presença de mulheres em determinadas áreas. Visibilizar as mulheres e os homens na linguagem responde ao questionamento deste desequilíbrio tão refinadamente naturalizado. Não é uma “moda feminista”.
As academias em pé de guerra
Em outubro de 2017, várias manchetes refletiam uma decisão drástica do governo Macron: proibir a linguagem inclusiva. A decisão seguiu um relatório da Academia da Língua Francesa que defendia que se travasse a “aberração inclusiva” que punha o francês em “perigo mortal”, dificultava a sua aprendizagem como língua estrangeira e até o entendimento entre a comunidade gaulesa. Este manifesto era uma resposta à publicação de um manual escolar que aplicava integralmente as formas duplas e a inclusão de sufixos femininos em todas as palavras. Certamente era muito difícil de ler, talvez por isso essa opção só tenha sido tentada num manual escolar. Isto é, não houve uma epidemia de livros escritos assim. Também em Espanha é difícil encontrar textos sensíveis à linguagem não sexista que recorram ao uso das barras (meninos/as) e das duplas formas até impossibilitar a compreensão: a linguagem inclusiva procura estratégias para visibilizar ambos os géneros e ser comunicacionalmente eficaz. Parece mais significativo que os e as académicas da língua francesa, conhecidos como “imortais”, tenham entrado em semelhante convulsão por causa de um único manual escolar, mostrando uma grande preocupação com a inteligibilidade de uma língua, na qual para dizer noventa e cinco tens de dizer quatro vinte quinze e os verbos irregulares são uma legião.
A francesa não é a única Academia preocupada, a nossa ERA, já em 2012, emitiu um parecer contrário à linguagem não sexista. O mesmo, apoiado por 28 académicos e cinco académicas, recriminava as universidades, sindicatos e câmaras municipais por se terem metido nessa coutada linguística ao elaborarem guias para a linguagem inclusiva. Assim negava autoridade a estas entidades para responderem à exigência social (inscrita em muitas outras exigências do feminismo) de pensar alternativas nas quais mais pessoas se sentissem representadas. O castelhano não necessita disto, não é uma questão política, é gramatical e aqui a Academia com os seus profissionais da língua tem a última palavra, dizia-se. Essa forma de argumentar tão masculina é familiar, envolta na frieza, no saber de especialistas e na razão face às “ocorrências” ou “caprichos” das feministas. A RAE sabe disso, já sentiu necessidade de intervir com urgência em 2004 face à lei contra a violência de género num comunicado em que, desmerecendo todo o trabalho da teoria feminista, afirmou que era artificial usar o termo género em espanhol e instou a utilizar a expressão violência doméstica porque naquele momento se usava mais. Nesta afirmação mostravam o seu desconhecimento absoluto sobre a violência de género. Trinta anos tardaram também para aceitar o termo feminicídio desde que apareceu pela primeira vez, enquanto que num ápice incluíram postureo[1] sem fazer tanto drama.
Quem alerta para o apocalipse inclusivo, esforça-se por deixar claro que compreende as exigências razoáveis do feminismo. Pronunciam-se a favor dos “direitos da mulher”, antes de dizerem o que é aceitável e o que não é. Se bem que seja compreensível que o temor de que a linguagem não sexista torne mais difícil a comunicação seja compreensível, os jornais que usam a linguagem não sexista não se converteram numa charada de barras e arrobas e não há notícia de que alguém tenha tido um ataque apoplético ao tentar dizer em voz alta amigxs. Tão-pouco as animalistas feministas decidiram chamar às abutres abutras, nem aos gorilas gorilos. Em nenhuma assembleia ninguém sucumbiu porque um companheiro disse “nosotras”. E se a esquerda ou os sindicatos têm dificuldades em chegar à gente “normal”, signifique isso o que significar, duvido que o principal problema seja a linguagem inclusiva.
Vertigem perante a mudança?
Como não somos máquinas de fabricar consignas sem nenhuma flexibilidade nem criatividade, mas sim antes pessoas que valorizamos e respeitamos a linguagem, e por isso a queremos mais rica e democrática, procuramos maneiras, experimentamos formas, conjugamos possibilidades. Procuramos evitar a irritação contra a qual muita gente alerta, às vezes com mais sorte que outras. Mas, nesse processo, transformamos a nossa perceção do mundo, mostramos que não há nada neutro, que o género importa. Por isso eu gosto de falar de linguagem inclusiva porque é um processo, um esforço para enriquecer a língua, porque te obriga a pensar no que estás a enunciar, quem estás a incluir e quem estás a excluir. Mesmo que decidas escrever ou falar no masculino plural em muitos âmbitos, estás consciente de que é uma possibilidade, uma escolha e que isso tem as suas implicações.
Cabe então perguntar porque incomoda tanto. O que é que tem a linguagem inclusiva para desencadear respostas tão alarmistas, para induzir este catastrofismo. Faz lembrar outras resistências, como a que ocorre perante as quotas, ou mesmo o conceito de violência de género. Um mundo que resiste em transformar-se e que disfarça de racionalidade e teoria assética o que não é outra coisa se não a resistência à mudança. A linguagem é política, e negar que o é também é político. O desassossego que tantas pessoas sentem, a indignação e os atos de contrição pouco têm a ver com a gramática.
(1) NdT: Postureo é um neologismo acolhido pelo Diccionario de la lengua española, de iniciativa da RAE, que se refere à atitude de adotar certos costumes ou atividades mais pelo ensejo de querer aparentar ou causar boa impressão do que por autêntica convicção [Cf. Wikipedia].
Tradução de Andrea Peniche e Paula Sequeiros. Artigo publicado no site da Rede Anticapitalista.
Originalmente publicado em: http://ctxt.es/es/20180124/Firmas/17476/feminismo-gramatica-machismo-lenguaje-inclusivo.htm