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A lição do 17 de Abril

Os grevistas de 1969, na sua esmagadora maioria, sentem que o figurino do ritual comemorativo, baseado em valores como o consenso ou mesmo a unanimidade, sacrifica a riqueza e a variedade de uma experiência única na história da contestação estudantil. Por Maria Manuela Cruzeiro.
Foto cedida por Maria Etelvina Sá.

Não é, ao contrário de que muitas vezes pensamos e desejamos, uma lição de história, sabendo nós que, se alguma lição há a tirar da história, é que são inúteis as lições que ela nos dá. Mas existe algo a montante e a juzante da própria história e que, de alguma forma, a excede e a transcende: A memória. Não uma memória passadista ou nostálgica, e muito menos comemorativa. Antes uma memória que, não deixando de ser próxima e calorosa, ou justamente porque o é, não se deixa cristalizar no tempo frio do calendário, nem aprisionar pela lógica devoradora da comemoração. É que todos sabemos que só se comemora o presente. Ou melhor: o que do passado interessa ao presente.

Por isso, os grevistas de 1969, na sua esmagadora maioria, sentem que o figurino do ritual comemorativo, baseado em valores como o consenso ou mesmo a unanimidade, sacrifica a riqueza e a variedade de uma experiência única na história da contestação estudantil. E impõe uma versão hegemónica e fixista daquilo que foi todo o seu contrário: um movimento colectivo, criativo e dinâmico, plural na sua orientação, radical nos seus fundamentos e objectivos. Tão radical que a única celebração que importa é a que recusa tanto o terminus do processo, como as suas soluções possibilistas. Proclamando, ao contrário, com Derrida, que um acontecimento (im)possível é justamente o que constrói as suas próprias possibilidades em ruptura com o que existe. Foi o que fizemos, há 50 anos, (mesmo sem conhecer Derrida!) na multiplicidade das lutas com que escrevemos a nossa pequena epopeia.

Não procurem na história porque, como adverte Eduardo Lourenço, “ela chega sempre tarde para dar sentido à vida dos homens. Só a pode recapitular”. Procurem nesse raro dom do ser humano de se antecipar à própria história e a vergar ao peso do sonho e da utopia. Os que experimentaram, maravilhados e incrédulos, esse imenso poder e estiveram à altura desse momento único das suas vidas, se não sucumbiram à terrível arma do branqueamento ou da amnésia, selaram um compromisso que Derrida chama “dever de memória”.

Dever de memória é, afinal, o estreito rio que corre de 1969 até 2019... Os que preferem esse pequeno fio de água, e não as vagas alterosas dos surfistas da hora presente, sem se arvorarem em santos ou heróis, orgulham-se tão somente de não fugirem ao encontro com a história. Partilham por isso muitas memórias que não hipotecam nem manipulam de acordo com tempos e modos em que se não reconhecem. Partilham também uma dificuldade: a de viver, ou tentar viver, de maneira a fazer do mundo um lugar menos escandaloso. Mas ainda não estão cansados da guerra iniciada há 50 anos, e podem ainda hoje olhar–se nos olhos sem corar. E com alegria!

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