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Leituras: Uma bomba a iluminar a noite do Marão, Daniela Costa

A autora reconstitui a memória do assassinato do padre Max e de Maria de Lurdes há 45 anos, um crime de ódio à liberdade e à democracia. Por Almerinda Bento.
Capa do livro Uma bomba a iluminar a noite do Marão.
Capa do livro Uma bomba a iluminar a noite do Marão.

Num tempo em que é preciso lutar contra o esquecimento e a erosão da memória, num tempo em que os fantasmas do passado se erguem impantes e sem-vergonha, ganhando os incautos e os deserdados sem esperança e sem perspetivas, é preciso lembrar casos que aconteceram em Portugal. Daniela Costa traz, através deste romance, a memória do assassinato do padre Max e da estudante Maria de Lurdes, faz agora 45 anos. A partir dum facto verdadeiro criou uma série de personagens – Max é Fred, Maria de Lurdes é Paula – trazendo visões, versões, vozes possíveis, traçando uma reconstituição de um crime de ódio à liberdade e à democracia que visou e ceifou as vidas de Max e Maria de Lurdes, na noite de 2 de Abril de 1976, no preciso dia em que foi votada a Constituição da República Portuguesa.

Vila Real anos 70. O peso do isolamento, da pobreza, da Igreja, dos senhores da terra, da ignorância, do analfabetismo e do alcoolismo. Que futuro tinham aqueles/as jovens? A tropa, a guerra colonial, a emigração, o servir, o trabalho sazonal precário e mal pago nas vinhas do Douro. E quando um dia, um homem que falava do Evangelho, lhes começa pela primeira vez a falar em política, lhes abre pela primeira vez horizontes e lhes faz ver que a pobreza pode e deve ser combatida, que os desperta para o seu potencial e para o papel que podem ter para mudar as suas vidas e o mundo, todo o edifício salazarista e atrasado é abanado e posto em causa.

Se a sua missão ultrapassava em muito o seu papel enquanto padre, como professor e mobilizador dos e das jovens, para que se superassem estudando, ajudando outros nos estudos, organizando eventos culturais, o anúncio de que se ia candidatar pelo círculo eleitoral de Vila Real, como independente nas listas da UDP para as legislativas de Abril de 1976, foi o escândalo maior que as forças poderosas da região não mais podiam tolerar. A maledicência, as invejas, os ódios, o moralismo hipócrita já lá estavam a envenenar o ambiente dos que não aceitavam um padre a agitar as consciências e a ganhar estudantes e pessoas das aldeias isoladas, mas a hipótese de uma alteração no quadro político bafiento e retrógrado era insuportável para quem até então tinha tido o monopólio do poder naquela região. As fortes convicções do padre Fred, que no congresso da UDP no Coliseu do Porto tinham ecoado “Nós temos de servir o povo e não servirmo-nos dele” ou as suas palavras “de nada vale falar do bem se não se fizer o bem”, punham em causa os privilégios dos senhores da Casa do Douro, os contra revolucionários acolitados pelo MDLP que manobrava no estrangeiro, que espalhavam o terror incendiando sedes de partidos de esquerda, os dirigentes do CDS e do PPD e a hierarquia da igreja que lhes dava cobertura.

Ciente do perigo que corria, porque as ameaças de morte eram cada vez mais explícitas e insidiosas, tinha a convicção que a escolha que tinha feito em nada colidia com a sua missão como padre. Avisado por amigos para que saísse daquelas terras, que emigrasse para França para junto dos seus pais, Fred desejava que as suas ideias revolucionárias pudessem ser continuadas por quem lá ficasse e daí ter dito a um amigo “Eu amo este povo e quando morrer gostava que espalhassem as minhas cinzas por estas aldeias fora.”

Sem dó nem piedade, na noite de dia 2 de Abril, no regresso das aulas nocturnas no centro cultural, uma bomba assassina fez explodir o carro em que Fred e Paula se deslocavam. Num processo em que cumplicidades com os mandantes do assassinato, instaladas na polícia local e nas autoridades com competência criminal, tudo fizeram para apagar provas e vestígios que permitissem o apuramento da verdade e a descoberta dos criminosos, só 23 anos mais tarde foi provado o crime com motivações políticas. Provada a responsabilidade do MDLP no assassinato, o colectivo de juízes, sem ter provas que pudessem apontar a responsabilidade individual dos arguidos, determinou absolver os réus, com base no princípio de presunção de inocência in dúbio pro reo.

Justiça tardia e incompleta, que permitiu no entretanto espalhar falsidades e enlamear a memória dos mortos. Práticas e expedientes dos que, a coberto da noite, em Portugal, em Espanha e no Brasil, se afadigaram em obstruir a justiça.

No funeral do padre e da jovem estudante, um lençol com as palavras “Não vos mataram, semearam-vos” foi um grito, é um grito que interpela todos quantos amam a liberdade, a democracia e os valores de solidariedade que nortearam as suas vidas.

22 de Fevereiro de 2021

Sobre o/a autor(a)

Professora aposentada, feminista e sindicalista
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