“A clareza não surge do que se imagina como sendo claro, mas do que se apercebe no obscuro”. (Carl Gustav Jung)
Primeiro episódio da primeira temporada, o primeiro plano para mostrar uma cidade palestina, portanto a sua relação com o Outro, é o ponto de vista de um drone israelita. E não num edifício qualquer: o minarete de uma mesquita. Um objeto voador de rastreio militar verifica um território e o seu povo, a partir dali definido como sendo muçulmano e estando sob vigilância. Estamos na série israelita Fauda, caos em árabe.
Transmitida na Netflix, obteve sucesso internacional, sendo premiada como melhor guião original no FIPA [1] e classificada pelo New York Times como a 8.ª melhor “série internacional” da década. Esta série narra as missões e a vida quotidiana dos soldados israelitas da unidade especial Duvdevan, instalada na Cisjordânia, infiltrados e disfarçados de palestinianos. Na primeira temporada, estes soldados perseguem um líder do Hamas, Abu Ahmad, também chamado de “pantera”. Na sua promoção, os escritores afirmam que a série conseguiu “quebrar os estereótipos dos «bons» e dos «maus»”, sendo capaz de “promover a empatia tanto para um lado como para o outro”.
No entanto, algumas vozes ergueram-se para denunciar o seu racismo estrutural, a glorificação dos crimes de guerra de Israel ou a supressão da História Palestiniana [2] [3] [4]. A PACBI, Campanha Palestina pelo Boicote Académico e Cultural de Israel, apelou à Netflix para se afastar da produção da terceira temporada e interromper a transmissão das duas primeiras temporadas.
As imagens podem ser “campos de batalha” transmitindo clichés destrutivos para aqueles a quem visam nas suas representações. O título Fauda foi escolhido pelos escritores porque é o código usado pelos soldados israelitas quando são apanhados e o seu disfarce desmascarado. Neste artigo, proponho analisar a Fauda da primeira temporada para decifrar a narrativa colonial encenada, apesar das suas pretensões de “complexidade”; argumentos promocionais que na realidade falam do reajuste contínuo da propaganda aos novos critérios da modernidade, onde a caricatura não deve ser flagrante, desumanizante, mas onde a identificação com a subjetividade do dominante, com os seus dramas e vitórias, deve ser total.
Através do uso de ferramentas de análise cinematográfica, estudaremos como a imaginação israelita recodifica a realidade e reafirma a razão de Estado. A censura e o sequestro da violência original, o monopólio do trauma e a heroicização dos crimes de guerra são a espinha dorsal desta ficção estatal. Nesse universo colonial, a representação da masculinidade e paternidade das personagens israelitas e palestinianas é uma questão essencial para gerar identificação e aversão. As personagens femininas em papéis secundários e objetos de instrumentalização merecem um artigo próprio.
Focaremos igualmente o relacionamento estratégico e ambíguo dos soldados com a língua árabe. E sempre numa perspetiva de autodefesa, oporemos os factos ao cenário, re-injetaremos a realidade na ficção.
Fauda, contrapropaganda face a uma ficção de Estado
Os dois escritores, Avi Issacharoff, jornalista do Times of Israel e Lior Raz, escritor e ator principal da série (faz o papel de Doron Kavillio), são ex-soldados do esquadrão Duvdevan que assola os territórios palestinianos ocupados. O pai de Lior Raz é um ex-Shin-Beth (serviço de segurança interna). Lio Raz reivindica esta impregnação e filiação enquanto matéria-prima para a escrita autêntica da série.
Recorde-se que o exército israelita não é um exército profissional: todas e todos os israelitas devem servir um mínimo de dois a três anos no exército e a maioria compõe a reserva militar a título vitalício. Como é costume ouvir-se “não é um Estado que tem um exército, é um exército que tem um Estado” [5]. O governo israelita parece apreciar a série:
“O presidente israelita Reuven Rivlin organizou uma cerimónia que reuniu o elenco de Fauda, oficiais da unidade especial Yamas e centenas de soldados israelitas. Durante esta reunião, a equipa da série expressou a sua gratidão ao Yamas enquanto «fonte de inspiração» para a série e pela sua «proteção da vida». Já Rivlin expressou a sua «gratidão» e «orgulho»”[6].
Este é um apoio que é ambivalente, uma vez que os escritores se tornaram embaixadores do seu sucesso e do heroísmo do exército e do seu corpo de elite diante da AIPAC (lobby americano pró-Israel).[7]

Campanha BDS. “Netflix, chegou a hora de rejeitar as séries que glorificam crimes de guerra”
Esquema n°1 : Censura, sequestro da violência original e confiscação do trauma
Na construção cénica de identificação de personagens, a questão da violência física, a sua representação e uso é crucial. Previamente, numa análise da série americana “Homeland [8], adaptada da série israelita “Hatufim”, o autor destacou as representações ideológicas do uso da violência física:
“O bloco EUA-Israel é altamente tecnológico, moral, justificado, escrupuloso e moderado... civilizado, enquanto que o bloco dos “Outros”, um bloco árabe-persa da Palestina/Iraque/Afeganistão/Paquistão/Irão é sedento de sangue, imoral, bárbaro... terrorista.”
Este eixo trabalha para definir aqueles que fazem parte da Humanidade e aqueles que dela são excluídos e a ameaçam. Uma retórica que permite:
“apresentar-se enquanto Homem, o sujeito com o qual nos devemos identificar, cujas vidas e mortes valem mais. (...) e ter uma plena margem de manobra e de usar o seu poder militar sem limites, controlo ou julgamento.”[9]
Uma primeira pergunta a ser feita diante de uma série que encena dois campos supostamente em guerra seria “quem tem o primeiro gesto violento”, quem inicia o ataque? Os soldados israelitas em Fauda encarnam a razão de Estado, até mesmo a sua irracionalidade, mas de qualquer forma, o Estado. E, evidentemente, os soldados nunca fazem o primeiro movimento violento, nunca disparam o primeiro tiro, e esse tiro nunca será arbitrário. As primeiras mortes mencionadas pelo chefe da unidade, no papel de Mickey Moreno são:
“116 israelitas mortos pelo Pantera (chefe do Hamas). Crianças, mulheres e soldados, eles semeiam a morte, semeiam a morte!!! Trataremos deles!”
Quando são os soldados israelitas que estão a iniciar um ataque, o cenário fará descobrir, por via do flashback, que estes estão apenas a responder a um crime cometido por um palestiniano, causa e responsável pela sua fúria. Nesta ficção, a violência original é palestiniana. A PACBI lembra que
“A série «Fauda» legitima os atos de violência cometidos contra os palestinianos no território palestiniano ocupado pelos esquadrões da morte do exército israelita – aqueles que são chamados de «Mistaravim» (disfarçados de árabes). Os escritores, que eram membros desta unidade, basearam a série em crimes de guerra cometidos por esses esquadrões contra os palestinianos.”[10]
Na série Al Messiah, também transmitida na Netflix, o personagem de Aviram, agente do Shin-Bet, sequestra e tortura uma criança palestiniana até à morte. O cenário estabelece um “herói” atormentado e em breve fornecerá a chave da sua mente; se esse interrogador israelita tortura não é devido ao seu treino ou por ser uma prática comum no exército (institucionalizada pelo Knesset [11]), mas sim por conta do seu trauma. Deriva da famosa PSPT – Perturbação de Stresse Pós-traumático. O seu trauma está ligado ao assassinato da sua mãe... obviamente cometido por um palestiniano. Isto explica e legitima o facto de ter torturado e o por quê de ter a fraqueza (humana? compreensível?!) de vingar o assassinato da sua mãe assassinando o filho – uma criança de dez anos – do assassino da sua mãe.
A violência desproporcional e arbitrária e a tortura desses agentes estatais são sempre representadas ou reveladas a posteriori como uma defesa. Consequências de trauma de profunda perda pessoal. E nunca enquanto métodos partilhados, mundanos, comuns e estruturais do exército israelita. Quanto a estas questões, podemos fazer referência aos vários relatórios das organizações Adameer, PCATI, Breaking the silence, etc..
Monopólio do trauma e a busca pela vingança
Além de possuírem o monopólio da violência legítima, na série Fauda os soldados israelitas têm o monopólio do trauma. Seguindo o célebre ditado proferido entre os israelitas do “eu atiro, eu choro” [12], identificado como um esquema narrativo nas produções audiovisuais israelitas de Eyal Sivan [13], vemos aqui a sua atualização com um “estou traumatizado e é por isso que eu atiro”. Apresentados como uma unidade de elite, parecem-se mais com mercenários, organizados em torno da pulsão de vingança. Para convencer Doron a voltar ao serviço, o seu chefe de unidade, Mickey Moreno, lembra que é para este poder “acertar as contas consigo mesmo”. Uma política de vingança ativada pela cartilha da PSPT.
As consequências psicológicas da humilhação, a destruição de casas, o medo de ser um refugiado, a repressão constante, a prisão em massa e a arbitrariedade na vida quotidiana, vivenciadas pelos palestinianos, nunca são representadas: nem as suas realidades nem os seus custos psicológicos. Mas sobretudo a violência original da “catástrofe”, da Nakba em árabe, que organiza e explica as presentes relações entre o povo palestiniano e o povo israelita, está completamente ausente da narrativa colonial israelita. A criação de Israel em 1948 é sinónimo da espoliação de palestinianos, do roubo de terras, da limpeza étnica e do facto de dois terços dos palestinianos terem sido expulsos das suas casas. A procissão de assassinatos, violações e traumas foi comprovada. No entanto, o seu trauma não pode ser uma Perturbação de Stresse Pós-traumático, porque, como diz a psiquiatra palestiniana Dra. Samah Jabr, “a ameaça ainda existe” [14]. O expansionismo e a política de limpeza étnica ainda existem.
Essa censura da violência original israelita contra os palestinianos torna-se uma norma hegemónica consagrada na narrativa israelita. Yara Hamadi também mostrou como o direito de retorno dos refugiados palestinianos é manipulado na série Al Messiah.[15]
A representação dos postos de controlo em Fauda é uma piada de mau gosto. Encenado por uma espécie de receção – uma mesa e folhas – em frente à qual os palestinianos circulam tranquilamente e chamam os soldados como se de familiares se tratassem “Olá chefe!” (dobragem para a versão francesa), esta representação é um insulto a essa “cerimónia de humilhação”[16], para usar a expressão do sociólogo Abaher el Sakka, pelo medo constante e total que os postos de controlo representam para os palestinianos.
Estando assentes esses fundamentos narrativos, políticos e psicológicos, um segundo esquema pode ser acrescentado.
Esquema n°2 : Heroicização dos crimes de guerra de Israel
A escrita dos diálogos é eloquente quando se trata de difundir as normas da razão de Estado:
- Coloque todos os postos em alerta e pare-os sem aviso, estão autorizados a disparar
– Por que não aplicar o procedimento Hannibal
– Vamos para a casa de Abu Ahmad e sequestramos a puta da mãe dele
– Israel é um estado de direito, não um grupo terrorista
– Não é hora de se falar de direito. Tens de pensar como os árabes
– Chega!
– Se não agires agora, recuperarás o corpo daqui a 10 anos após a libertação de milhares de assassinos
Trechos de Fauda, primeira temporada
O abuso torna-se a norma. O direito está em queda, mas estes comportamentos, aqui definidos enquanto desvios de comportamento são, na realidade, estruturais. A PACBI lembra que:
“A unidade secreta “Yasam” do exército israelita, que inspirou os criadores de Fauda, (...) também é responsável por numerosos assassinatos encomendados, execuções extrajudiciais e pela morte e detenção violenta de manifestantes palestinianos desarmados, incluindo crianças. Além disso, contraria de forma reiterada a inviolabilidade das universidades e hospitais palestinianos. Estes atos também constituem crimes de guerra sob o direito internacional.”[17]
Quanto ao delicioso “não é hora de se falar de direito. Tens de pensar como os árabes”, será um mecanismo inconsciente, mas pelo menos flagrante, de projeção psicológica no sentido psicanalítico?[18]. Uma operação através da qual o sujeito se expulsa de si mesmo e localiza na outra pessoa ou coisa, qualidades, sentimentos, desejos e até objetos que ignora ou recusa nele próprio. Em todo o caso, uma ótima estratégia para fazer as pessoas esquecerem que Israel escarnece o direito internacional há 70 anos e encarna a ineficácia dolorosa das suas instâncias. Ou será, uma vez mais, o fedor dos famosos estereótipos racistas sobre os árabes serem incapazes de viver em democracia!?
O diálogo também é notável, pois inclui o famoso sentimento de emergência permanentemente infundido para construir uma mentalidade, um inconsciente coletivo estruturado na ameaça também ela permanente. Esta negação da violência colonial permite transformar estes soldados em heróis.
Neste relatório bélico, é estabelecida uma dialética entre os dois campos, israelita e palestiniano. Do lado israelita, da omnipotência, sobrevivem, do lado palestino, morrem um a um. Alguns entre-ajudam-se, outros atraiçoam-se e são executados. Inevitavelmente, nesta série os israelitas vencem e os palestinianos perdem. E talvez seja o subterfúgio mais forte, ainda que flagrante e banal, que se pode impregnar na mente das pessoas: os bons vencem e vocês, os palestinianos, são os derrotados.
Esquema n°3 : Quando a resistência palestiniana é amalgamada ao Daesh
“Damos uma face ao nosso adversário” Lior Raz.
Quem tem o poder de nomear quando nomear é um poder?
Quando Abu Ahmed, o Pantera, descobre a morte do seu jovem irmão no seu casamento, em grande plano, acusa fisicamente o golpe – em meio segundo – para depois declarar: “Deus tenha piedade da sua alma, devemos ficar felizes por ele ter morrido como um mártir”. Como se a perda de um ente querido não tivesse valor, não causasse sofrimento a essa personagem, sendo a emoção imediatamente transformada em planeamento de vingança.
Quando o Pantera prepara um ataque com a esposa do seu falecido irmão, os militantes mentem sobre o facto desta poder acionar o detonador, na realidade já está acionado e ela morrerá na explosão. O Pantera e Walid El Abed, seu assistente de campo, não têm piedade, senso moral, inclusive com os seus irmãos e irmãs armados. A mulher do Pantera chega a desejar a sua morte.
Para além da série, é uma maneira de caricaturar, sujar a imagem, a coesão e o sistema de valores morais dos grupos de resistência palestinianos. Obviamente, nenhum argumento é apresentado acerca das razões históricas e políticas da sua luta. Os palestinianos em luta, uma vez mais, estão apenas do lado do ódio, do assassinato... jamais da vulnerabilidade, clemência, ternura ou misericórdia. A única fraqueza é a traição do seu campo com repetidas figuras de colaboradores.
Esta amoralidade encenada também possibilita constatar semelhanças e comparações desonestas com grupos de fascistas islâmicos. No episódio 7, a resistência palestiniana removeu um rim de um homem e colocou uma bomba no seu estômago. “Como a Al Qaeda”, “Abu prepara um ataque à maneira do Daesh”: essas são as expressões usadas pelos Mistaravim para descrevê-los.
Re-injetemos a realidade na ficção: a resistência palestiniana já teve conexões com o Daesh? Nunca! Lembre-se de que não houve qualquer ataque do ISIS aos israelitas, mas vários em Gaza contra grupos palestinianos que são inimigos de Israel. Estudos demonstram que o Daesh é um inimigo da causa palestiniana [19]. Nos nossos dias, o Daesh é o inimigo absoluto do mundo inteiro. Manter a amálgama de palestinianos em luta com o Daesh é a melhor arma para deslegitimar a sua luta. O efeito é duplo ao apresentar os israelitas enquanto vanguarda da luta contra o terrorismo islâmico e ao dar credibilidade aos seus modelos de políticas de segurança.
Estas mensagens são ainda mais eficazes, pois são incorporadas por personagens cuja psicologia, passado, história, físico vantajoso ou não, contradições e humores determinam, quer gostemos ou não, a atribuição da nossa empatia e aversão.
Esquema n°4 : Não são só soldados… São também homens… e pais de família.
Os ingredientes da sedução, sensualidade e erotização também participam da construção de um impulso de identificação e/ou de desejo com os “heróis israelitas feridos”, as vítimas que recordam a violência original dos palestinianos. Em Fauda, a carne exposta, os corpos nus ajudam a criar um vínculo com o espectador que se junta ao espetáculo de jovens corpos musculados e normalizados nos seus sensuais abraços heterossexuais: Boaz e a sua amiga (foi impossível encontrar o seu nome no elenco) incorporam close-ups de abraços eróticos apaixonados entre sorrisos e alegria, o casal perfeito, cuja juventude e inocência foi mais uma vez afetada pela violência palestiniana.
As masculinidades israelitas são definidas pelo seu heroísmo, valores morais, poder de sedução, mas também pela sua paternidade.
“Podemos perdoar os árabes por matarem os nossos filhos, mas não podemos perdoá-los por nos forçar a matar os seus filhos.” Golda Meir, primeira-Ministra de Israel de 1969 a 1974.
Já na série Homeland, o autor analisa como o relacionamento com as crianças em geral e a sua família foi usado como um barómetro de escrúpulos morais [20] para condicionar a empatia dos espectadores.
Em Fauda, as representações das paternidades palestiniana e israelita são obviamente instrumentalizadas para uma vez mais distinguir os israelitas pela sua superioridade moral. Mas a instrumentalização do tema é, neste caso, mais complexa. Desde o início do primeiro episódio, um pai palestiniano sequestrado pela unidade é interrogado pela personagem do capitão Eyov que o chantageia: se colaborar, poderá cuidar da sua filha num hospital israelita equipado com o que ela precisa.
“ – Eu tenho filhos Ali. Cinco, que Deus os proteja, e garanto que, se um deles estivesse na condição de Nadia (sua filha), eu não me afastaria de nada. Nada me impediria, nada. Eu mataria a terra inteira pela minha filha, morreria por ela sem hesitação. Senhor, (grande plano do seu rosto e mostrando o seu desprezo não dissimulado pelo palestiniano), só precisa de me dar um nome. Um nome e nós cuidaremos da sua filha.”
Eyov usa a sensibilidade e a culpa do pai para fazê-lo colaborar enquanto se define como ser moralmente superior. A colaboração para permitir o tratamento da sua filha também será oferecida à mulher do Pantera na primeira temporada. A realidade do sistema israelita é muito mais sórdida: como por exemplo, as crianças de Gaza hospitalizadas em Jerusalém serem impedidas de ser acompanhadas pelos pais. Algumas morrem sozinhas sem poder ver as suas famílias novamente.[21]
Lembre-se também que a idade da maioridade penal foi reduzida para 12 anos para crianças palestinianas (não israelitas). Isto permite infligir-lhes vários anos de prisão por lançarem pedras. São julgadas, tratadas, torturadas como adultos. Nadera Shalhoub-Kevorkian, uma palestiniana de 48 anos de ascendência arménia, mostra como o sistema colonial do “unchilding” pode afetar a primeira infância de crianças palestinianas, meninos e meninas. [22] O advogado Sahar Francis aborda o tratamento dado pelos soldados:
“As detenções acontecem durante a noite com buscas violentas. Quando houve protestos, em Nabi Saleh, muitas crianças foram para a cama totalmente vestidas, com cartões de identidade nas mesas de cabeceira, seguindo as ordens dos seus pais. No momento da detenção, foram espancadas. Durante o interrogatório, as suas mãos estavam amarradas atrás das costas a uma cadeira. São privadas de sono por longas horas. São assediadas sexualmente, ameaçadas de violação, são tocadas. Despem-nas enquanto as forçam a inclinar-se. Examinam-nas nuas, obrigando-as a baixarem-se. De forma a confessarem ou denunciarem outras pessoas, membros da sua família, mãe, pai ou irmãos são presos. Os advogados são geralmente impedidos de comparecer aos interrogatórios.”[23]
Entendemos assim a necessidade do governo usar várias estratégias de comunicação para melhorar a imagem de Israel, a sua relação com as crianças e com os direitos humanos.
Quanto às paternidades israelitas construídas na ficção estatal, seja em Fauda ou em Al Messiah, Doron e Aviram são totalmente responsáveis pela negligência dos seus filhos, porque não estão presentes o suficiente em casa. E por boas razões, não têm escolha a não ser ficar longe das suas famílias porque estão a cumprir a sua missão. Este serviço à nação fá-los sacrificar a sua vida familiar, uma fonte de tensão psicológica. Um comportamento que um bom número de espectadores considerará compreensível, que até reflete as suas próprias obrigações profissionais e mesmo a divisão de género relativa à educação das crianças. A identificação com a paternidade israelita é favorecida, inclusivamente pela negligência involuntária e ressentida do pai, ali encenada.
Esquema n°5 : A Língua árabe: a linguagem do inimigo, alternadamente estigmatizada e apropriada
“Descredibilizar a linguagem do outro é a primeira coisa que aqueles que têm as armas fazem.” Toni Morrison
Em 2018, o Knesset, parlamento israelita, proclamou o hebraico como idioma oficial e o árabe como “idioma com estatuto especial”. O árabe está progressivamente a retornar ao estatuto de idioma estrangeiro[24] e o hebraico destaca-se como língua de ascensão social profissional. Na versão francesa da série Fauda, o idioma árabe não é dobrado, mas legendado. Essa versão incorpora o idioma que continua a ser estrangeiro enquanto que o hebraico e, portanto, os diálogos dos israelitas são dobrados em francês. O que, podemos supor, facilita a identificação do espectador.
O domínio da língua que tem esse esquadrão da morte é uma competência, um orgulho, um utensílio de trabalho e uma segunda pele. A sua relação com a linguagem é, à primeira vista, mais ambígua do que a das instituições. Lior Raz (Doron no ecrã), filho de pais iraquianos e argelinos, diz que
“se lembrou de aprender árabe quando era criança, passando um tempo com os trabalhadores árabes na creche do seu pai, para se sentir parte do grupo deles. “Não sabia o que estava a acontecer, mas tornei-me um soldado Mistaravim aos 10 anos.”[25]
Ao assistir a série, pode-se ser surpreendido com a familiaridade dos soldados israelitas com a língua árabe. Quando Doron retorna à sua unidade, saúda a sua equipa com um “sabah el kheir”, olá em árabe, e é sempre em árabe que se ouvem espontaneamente uns aos outros. É costume ele e os seus colegas formularem “Allah y rahmou” (Deus tenha piedade da sua alma) e isso fora do âmbito das suas missões ou infiltrações. No seio das suas vidas íntimas, nos momentos relaxantes em torno de um churrasco entre colegas, é a língua árabe que é falada, que os une. Como se fosse um traço íntimo do seu disfarce.

No entanto, os produtores da série tiveram uma abordagem completamente diferente. Para os painéis da campanha publicitária, usaram cartazes grandes, escritos em árabe em letras brancas sobre um fundo preto. Com mensagens como “Prepare-se!”, “Estamos prestes a agir!”. Vários municípios israelitas votaram para retirar esses posters do espaço público. “Sejamos honestos, parecem palavras do Daesh”, disse um vereador de Nesher.
“Imperialist gaze” e legítima defesa
Estar ciente da propaganda e observá-la não protege apesar de tudo contra a interiorização inconsciente das representações. Sem mencionar o facto de que alimentamos o “burburinho” sobre ela. Ainda que seja para melhor conhecer o inimigo.
Uma imagem continua a ser mais poderosa do que a sua análise. Mas os esquemas narrativos acima identificados operam para além desta série. Eles estruturam um software ideológico que devemos conhecer e reconhecer em qualquer produção audiovisual e artística de forma a descolonizar a nossa imaginação e desenvolver um outro olhar sobre o que escolhemos ou não ver.
Recorro à teoria feminista para propor outra maneira de contemplar as obras audiovisuais e construir ferramentas de autodefesa. Por exemplo, nos papéis das personagens femininas, o teste de Bechdel[26] propõe que se façam três perguntas ao ver um filme:
“Há pelo menos duas mulheres nomeadas (apelido/nome) na obra? Falam uma com a outra? E falam sobre algo que não seja relacionado com um homem?”
Além disso, o teste do RIZ[27] sobre as personagens depreendidas como muçulmanas convida-nos a questionar:
“Se o filme tem como uma das personagens principais alguém que é identificado como muçulmano (por origem étnica, idioma ou vestuário), a personagem é a vítima ou o autor de um ato terrorista? É apresentada como sendo irracionalmente irascível? É apresentada como sendo supersticiosa, culturalmente atrasada ou anti-moderna? É apresentada como uma ameaça ao modo de vida ocidental?” E muitos outros testes que não dizem se o filme é bom ou não, mas contam algumas coisas sobre o universo proposto pelo filme[28].
A crítica e realizadora Laura Mulvey propôs em 1975 o conceito do “male gaze” (olhar masculino) para falar de um imaginário e uma maneira de filmar corpos e mulheres enquanto objetos. Iris Brey explica isto:
“Nós, espectadores, identificamo-nos com o olhar da câmara, que é a mensagem do olhar do herói que tem prazer em olhar para as mulheres enquanto objetos.”
As imagens estereotipadas entram no inconsciente, mas têm efeitos concretos. Relativamente às pessoas visadas, podemos falar de mecanismos de internalização de opressão, de ódio de si mesmo, do fascínio alienante pelo dominante e predispõem quem não é visado a depreciar até mesmo a agredir as categorias visadas.
Os esquemas narrativos acima decifrados poderiam contribuir para a definição do “imperialist gaze”, o olhar imperialista. Seja americano, israelita ou mesmo francês, deve ser identificado enquanto tal porque produtor de imagens em guerra.
Os boicotes
Israel é o principal exportador de ficção para os Estados Unidos[29]. A Netflix não respondeu ao apelo da PACBI[30] para parar de produzir e transmitir a série. Por outro lado, 50 autoridades de Hollywood apoiaram a plataforma, argumentando que a série oferecia “uma representação diferenciada dos problemas relacionados ao conflito israelo-palestiniano”[31] e que era uma “tentativa flagrante de censura artística”. A resposta da PACBI foi contundente:
“A liberdade de expressão é protegida pela Primeira Emenda da Constituição dos EUA. Mas essa proteção não se aplica à justificação ou incitação a “ações ilegais iminentes”[32], que incluem a violência racial israelita e as suas graves violações dos direitos humanos dos palestinianos.”
Fazem igualmente referência aos precedentes de falta de ética das plataformas de streaming na produção ou difusão de séries:
“A Netflix desenvolveu um padrão de responsabilidade social ao ter terminado a sua colaboração com Kevin Spacey (acusado de várias agressões sexuais) e Louis C.K. (acusado de assédio sexual). Esse padrão deve agora incluir a rejeição de séries que legitimam e incentivam a violência racista e os crimes de guerra.”
Estas questões vão para além da questão palestiniana e participam da necessária renovação de padrões éticos na indústria audiovisual. A terceira temporada de Fauda chega em abril à Netflix, o quinto maior canal da França. Participará o público desse boicote?
O apelo feminista ao boicote ao último filme de Polanski, a vê-lo e a celebrá-lo com um César, inscreve-se para mim na mesma lógica; não porque seria boicotar um artista judeu (explicação necessária dar para as mentes mais distorcidas) ou comparar a responsabilidade de um homem com a de um Estado, mas simplesmente porque o tempo em que dissociamos o artista da obra, a obra das suas condições de produção e dos crimes que ela pretende branquear – acabou.
É tempo de obrigar a ficção estatal a prestar contas.
Texto publicado na revista Contretemps. Tradução de Karim Quintino para o Esquerda.net.
Notas
[1] Festival international des programmes audiovisuels.
[2] Ver : https://www.aljazeera.com/indepth/opinion/israel-propaganda-war-waged-tv-shows-200211150859809.html
[5] Uri Avnery, Chronique d’un pacifiste israélien pendant l’Intifada, Paris, L’Harmattan, 2004, p.137.
[7] Ver : https://www.youtube.com/watch?v=HN8CP5jS5l4
[9] Ibid.
[11] Ver : https://www.youtube.com/watch?v=vLOK6u8O4uM
[12] “O sétimo dia”, uma coleção de testemunhos de soldados dos kibutzims que expressaram o seu sofrimento emocional depois de assistirem a lutas durante a Guerra dos Seis Dias. É um texto muito direto na maneira como retrata Israel enquanto uma sociedade de pessoas que “disparam e choram”.
[13] Expressão comummente usada em hebraico, muitas vezes de forma irónica, para resumir o mecanismo da boa consciência israelita: matamos pessoas, mas é porque precisamos, e isso faz-nos chorar, de facto as vítimas reais somos nós. O cineasta israelita Eyal Sivan decifra-o muito bem neste pequeno vídeo.
[14] Documentário “Por detrás das frentes: resistência e resiliência na Palestina” realizado por Alexandra Dols – http://derrierelesfrontslefilm.fr/
[16] Ver : https://www.monde-diplomatique.fr/2015/09/EL_SAKKA/53684
[18] LAPLANCHE et PONTALIS
[19] Por exemplo o artigo “La cause palestinienne dans l’idéologie jihadiste : entre réalités et fantasmes” da Dra. Samah Jabr.
[20] Ver : “Homeland, réinjecter du réel dans la fiction”
[22] Shalhoub-Kevorkian, N. (2019). Copyright page. In Incarcerated Childhood and the Politics of Unchilding (p. Iv). Cambridge: Cambridge University Press.
[23] 22 http://m.lamarseillaise.fr/analyses-de-la-redaction/decryptage/33386-titre-par-defaut
[24] O paradoxo é que mais e mais israelitas estão a aprender árabe porque acreditam que esse idioma pode ser usado nos seus contatos com países vizinhos moderados. http://www.slate.fr/story/165353/israel-langue-arabe-hebreu
[26] O teste de Bechdel https://en.wikipedia.org/wiki/Bechdel_test
[27] O teste de Riz https://www.riztest.com/. Para completá-lo, pode-se imaginar a sua extensão nas representações de mulheres vistas como muçulmanas, especialmente porque o dinamismo não é o mesmo, dependendo se a personagem feminina usa véu ou não. Estes testes não dizem se o filme é bom ou não, mas assinalam a ancoragem em estruturas narrativas obsoletas para categorias dominantes da população.
[28] Ver : http://theangryblackwoman.com/2009/09/01/the-bechdel-test-and-race-in-popular-fiction/
[29] Ver : https://www.franceinter.fr/les-series-israeliennes-championnes-du-rapport-qualite-prix
[31] Ver : https://variety.com/2018/tv/news/top-entertainment-industry-executives-support-netflix-1202743142/