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Investigação aponta ligações do Movimento Zero ao Chega

Vários dirigentes de sindicatos de polícias estão ligados à história do movimento que nasceu depois do julgamento das agressões na esquadra de Alfragide. André Ventura tentou instrumentalizar as mobilizações dos polícias para impor o seu projeto de extrema-direita.
Membros do Movimento Zero em 2019 a fazer o símbolo do movimento que é associado ao supremacismo branco. Foto de MIGUEL A. LOPES/LUSA.
Membros do Movimento Zero em 2019 a fazer o símbolo do movimento que é associado ao supremacismo branco. Foto de MIGUEL A. LOPES/LUSA.

Uma investigação do Setenta e Quatro, no âmbito do trabalho do Consórcio de Jornalistas de Investigação que descobriu 591 polícias que difundiam discurso de ódio racista, xenófobo e homofóbico no Facebook, manifestando simpatia pela extrema-direita, revelou também a história por detrás do Movimento Zero.

Das agressões na esquadra de Alfragide ao movimento Zero

O caso da esquadra de Alfragide culminou na condenação de oito polícias por agressões a cidadãos negros. Apenas um deles, Joel Machado, cumpriu prisão efetiva porque já tinha sido condenado antes por um crime semelhante. Todos eles voltaram entretanto ao serviço. De acordo com esta investigação, Machado foi ainda promovido a agente principal cinco dias antes de se apresentar no Estabelecimento Prisional de Évora para cumprir a pena a que fora condenado. Outro dos condenados, João Nunes, é um dos 591 polícias agora detetados a partilhar mensagens de ódio no Facebook. Mostrou não se arrepender das agressões e, em novembro de 2019, chamava até as vítimas de “vagabundos, que nada fazem além de vender droga e brincar com armas”.

É a partir da exploração de um sentimento de injustiça a propósito deste caso que começou o Movimento Zero, inicialmente através de um grupo no WhatsApp que envolveu dez agentes da PSP “possivelmente da Esquadra de Odivelas” e que acaba por ter sucesso.

Figura determinante neste processo é Hugo Ernano, deputado municipal independente em Odivelas eleito nas listas do Chega e conhecido por ter sido condenado pela morte de uma criança cigana, quando era agente da GNR.

Outra figura desta história é Ernesto Peixoto Henriques. Na altura do julgamento, era presidente do Sindicato Unificado da Polícia ao qual pertenciam seis dos outros polícias condenados no caso das agressões e candidato às europeias de 2019 nas listas do “Basta”, uma efémera coligação hegemonizada pelo Chega. Em declarações ao Setenta e Quatro, garante que o movimento “surgiu de forma inorgânica e, que eu saiba, nunca esteve associado a qualquer sindicato”. Contudo, desde o primeiro momento mostrou apoio, partilhando o seu primeiro comunicado a 30 de maio de 2019, e acrescentando-lhe a mensagem: “É chegada a altura de todos responderem à chamada, de todos [,] lado a lado lutarem pelos vossos direitos, sem desculpas, sem receios, sem quintas”.

Outros sindicatos de polícia posicionaram-se desde o início ao lado do “movimento inorgânico”. Exemplo disso é o Sindicato Independente dos Agentes da Polícia cujo presidente, Carlos Torres, admite ter aderido ao Zero, alegando que “as medidas e as reivindicações defendidas pelo Movimento Zero são exatamente iguais às que os sindicatos reivindicam”.

Outro exemplo é a Organização Sindical dos Polícias que se ligou mesmo ao movimento. Pedro Carmo, o seu dirigente, explica: “ainda fizemos duas manifestações e pusemos um outdoor”, sendo o objetivo “marcar presença” para “tentar mostrar que somos todos um”. Neste sindicato, em 2020, o conjunto dos 443 sócios pertenciam à direção.

Num setor em que só na PSP há 17 sindicatos, “pois por vezes eram criados simplesmente para os seus aderentes gozarem as folgas mensais a que os dirigentes sindicais têm direito”, escrevem os jornalistas, a maior organização sindical, a ASPP, tem, por sua vez, 63 dirigentes e perto de cinco mil sócios. Paulo Santos, o seu presidente, diz que “a proliferação de sindicatos serviu mais o poder político e a direção nacional da PSP do que propriamente os funcionários e profissionais da PSP” e que isso proporcionou a “instrumentalização daquilo que são as expectativas e anseios dos profissionais”.

Da criação de “alarme social” à instrumentalização aberta por André Ventura

O impulso inicial foi acompanhado por ameaças de greves ilegais ou de greve de zelo às contra-ordenações e por uma torrente de publicações. Houve 1.030 publicações no Facebook desde a sua criação até 16 de junho desse ano. O Setenta e Quatro analisou-as e descobriu que as palavras crime, criminosos, violência, violento, pânico, agressão, agressões, sociedades paralelas, vergonha e vergonhoso aparecem 156 vezes.

Outro braço da comunicação do Zero nas redes sociais era o perfil no Youtube criado em julho de 2019. Até julho de 2022 aí foram publicados perto de 100 vídeos que obtiveram 185 mil visualizações. O mesmo tipo de ideias são aí veiculadas. A análise daquele órgão de informação regista 16 títulos com as palavras crime, criminalidade, violência, sociedades paralelas (ideia aplicada a comunidades racializadas), lobby racial e racismo seletivo.

Hugo Ernano confessa que “a notícia, como sabe, é sempre toldada para criar alarme social”. Na mira do movimento estava a ideia de que Portugal é um país seguro.

Um dos momentos decisivos da história do movimento Zero acontece na manifestação da ASPP e a Associação Profissional da Guarda de novembro de 2019, a maior manifestação das forças policiais em vários anos. A descrição desta investigação sobre ela é que “foi paga pelas associações sindicais, mas tomada de assalto pelo Movimento Zero e por André Ventura, que foi recebido em apoteose pelos manifestantes”.

O Movimento Zero pediu para reunir com as entidades organizadoras para participar nela. Mas ambas consideram ter sido enganadas por este. César Nogueira, presidente da APG, diz que “houve ali um momento de campanha que a organização não preparou mas alguém preparou”. “Sei muito bem quando há estratagemas. Prepararam ali um comício do Chega e do André Ventura”, acrescenta. Paulo Santos, que era presidente da ASPP, vai no mesmo sentido: “houve ali uma agenda de alguém que aproveitou o estado de espírito dos polícias, que era muito agudo contra o poder político”.

O nome de Hugo Ernano volta a entrar na história aqui. Nuno Afonso, então o número dois do Chega, revela que foi este que “fez a ligação entre o gabinete do deputado André Ventura e os manifestantes e a organização do evento”. E o nome de outro dirigente de um sindicato de polícias igualmente. José Dias, ex-vice-presidente do Chega e presidente do Sindicato do Pessoal Técnico da PSP foi quem ofereceu a André Ventura a camisola do Movimento Zero que André Ventura usou na manifestação.

O fim do Zero e o começo de um sindicato de extrema-direita

O movimento conotado com a extrema-direita durou apenas três anos. Apesar de dissolvido a 5 de agosto, mantém-se ainda uma “Associação do Núcleo de Amigos do Movimento Zero” da qual Ernano é presidente.

Em comunicado, afirma-se que apesar da extinção a atividade nas redes sociais é para continuar. E culpam-se os polícias por este desfecho: “o Movimento Zero despede-se hoje (IN)CONFORMADOS dos COVARDES!”. “A culpa da ausência é de todos aqueles que esperam que as conquistas sejam alcançadas sentados no conforto do lar, na praia, no café, enquanto fazem mais um remunerado ou apenas arranjam uma desculpa esfarrapada para justificar a sua falta de comparência.”

O Chega, entretanto, conta com a sua influência nas forças de segurança para lançar um “sindicato” inspirado na extrema-direita espanhola e com o mesmo nome do sindicato do Vox, Solidariedade. André Ventura, quando o anunciou, explicou: “sem dúvida que é no movimento policial e nos movimentos de operariado no Sul do país que o Chega está a fazer um esforço maior de promoção”.

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