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Índia: "confinamento veio normalizar a violência e ódio contra migrantes e muçulmanos"

Amit Singh, ativista e doutorando em direitos humanos, fala sobre situação vivida na Índia, o terceiro país mais afetado pela pandemia de covid-19. A conversa centrou-se o nacionalismo hindu e o impacto do confinamento nas populações mais vulneráveis.
O BJP está a recorrer aos mecanismos de Gestão de Desastre, em vigor devido ao covid-19, para acusar ou prender jornalistas que escrevem sobre as falhas do Estado na resposta à pandemia.
O BJP está a recorrer aos mecanismos de Gestão de Desastre, em vigor devido ao covid-19, para acusar ou prender jornalistas que escrevem sobre as falhas do Estado na resposta à pandemia. Amit Singh, fotografia cedida pelo próprio.

O esquerda.net esteve à conversa com Amit Singh, ativista e doutorando em direitos humanos na Universidade de Coimbra. A conversa centrou-se na gestão da pandemia de Covid-19 na Índia e a perseguição à população muçulmana no país. Entrevista conduzida por Érica Almeida Postiço.

- Podes começar por nos falar um pouco sobre ti, sobretudo sobre a tua investigação académica e ativismo? 

Sou um investigador indiano e ativista pelos direitos humanos. Resido em Portugal e estou a fazer um doutoramento em direitos humanos no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Também sou investigador do Centro de Estudos em Línguas e Sociedade Indiana, na Índia. Atualmente, estou a desenvolver um trabalho de investigação sobre nacionalismo hindu e direitos humanos na Índia.

- A Índia é neste momento o terceiro país do mundo com maior número de infeções e mortes por covid-19. Como é que o governo indiano está a lidar com a pandemia?

O governo de Narendra Modi deu a 1,38 mil milhões de pessoas apenas quatro horas de antecedência para se prepararem para um confinamento brutal. Como seria de esperar, centenas de trabalhadores migrantes pobres morreram neste caos organizado pelo governo. Agora com 70 mil mortes e milhões de pessoas infetadas pelo covid-19, o primeiro-ministro indiano abandonou por completo a sua responsabilidade para com as vidas dos cidadãos, tal como fez o presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Modi está a fazer o possível para desviar a atenção de seu fracasso levantando outras questões de ordem religiosa. Há uma grande falta de camas hospitalares e de médicos. Além disso, o governo está a esconder várias mortes por covid-19 e números de pessoas infetadas.

O primeiro ministro está a enganar e a mentir abertamente ao povo da Índia ao dizer que o seu governo tem o melhor modelo do mundo para lidar com a pandemia do coronavírus. Sob o pretexto de lidar com a pandemia, o primeiro-ministro Modi recolheu muito dinheiro de pessoas através do PM CARES Fund[1], mas falta transparência. A sua atitude autoritária de quem não tem de prestar contas causou danos irreparáveis ​​à vida das pessoas e ao país.  

- No início da pandemia, membros do Bhartiya Janta Party (BJP), e até o próprio Modi, usaram o termo "corona-jihad". Qual é o impacto das medidas de confinamento na população muçulmana e nas minorias em geral? E nas camadas mais pobres da população e migrantes temporários?

O confinamento na Índia acabou por ser uma ferramenta de opressão, na qual a normalização da violência e do ódio contra trabalhadores migrantes e muçulmanos é o novo normal. Na verdade, o governo de Narendra Modi culpou inicialmente os muçulmanos pela disseminação do coronavírus. Chamavam-lhe “corona-jihad”, numa resposta agressiva dos nacionalistas  hindus contra os muçulmanos. A “corona-jihad”, uma forma de islamofobia, deu força a uma onda de ódio contra os muçulmanos. Os apoiantes de Modi, em conjunto com os media nacionais, não pouparam esforços para demonizar os muçulmanos com o coronavírus como desculpa. Em muitos locais os muçulmanos não receberam assistência do governo e não foram internados nos hospitais.

Os migrantes internos e temporários mais pobres são os mais atingidos pelo confinamento. Estima-se que sejam cem milhões de pessoas. Poucos dias após o anúncio do confinamento começaram a chover relatos angustiantes de migrantes a morrer de fome, cansaço e em acidentes rodoviários enquanto iniciavam as suas longas jornadas de mais de mil quilómetros a pé de regresso às suas aldeias. Muitas mortes de migrantes não foram relatadas pelos principais meios de comunicação (estima-se que tenham morrido cerca de 500 pessoas).

Narendra Modi deve ser responsabilizado por estas mortes, é sua a responsabilidade pelas medidas de confinamento. Escusado será dizer que o confinamento levou a uma crise humanitária de proporções épicas. Reproduziu as desigualdades existentes e a exclusão das populações marginalizadas da sociedade indiana. Muitos estados indianos, como Uttar Pradesh, Madhya Pradesh e Gujarat, fizeram alterações à legislação laboral, aumentando a jornada de trabalho de 8 para 12 horas diárias, privando os trabalhadores de direitos básicos, mas também reduzindo salários. Modi já não fala sobre empregos ou construção de infraestruturas básicas de saúde e de educação. 

- No final do ano passado e no início de 2020, tiveram lugar vários e intensos protestos contra o Projeto de Emenda da à Lei da Cidadania (CAA) e o Registro Nacional de Cidadãos, que culminou na maior onda de violência religiosa em décadas. Qual é a situação atual em termos de protestos? Como é que os ativistas políticos e apoiantes de uma Índia secular estão a protestar em tempos de pandemia?

Usando o covid-19 como pretexto, Modi pôs fim aos protestos contra a CAA. Até estudantes muçulmanas grávidas que participaram em manifestações foram detidas! Muitos académicos, jornalistas e estudantes que participaram nas manifestações foram detidos ou estão a ser alvo de assédio por parte da polícia. O confinamento nacional permitiu a repressão generalizada das manifestações contra a CAA que decorriam no país desde dezembro de 2019. Os locais de protesto foram bloqueados e deu-se início a processos judiciais contra ativistas deste movimento, com centenas de detenções, sobretudo de estudantes muçulmanos, sob a desculpa das leis draconianas da segurança nacional.

O governo de Narendra Modi culpou inicialmente os muçulmanos pela disseminação do coronavírus, chamava-lhe “corona-jihad”

Tal como a detenção de importantes figuras progressistas em prisões sobrelotadas, apesar das preocupações com a pandemia de covid-19, isto é parte da guerra em curso do governo contra a dissidência. O mesmo acontece com o recurso aos mecanismos de Gestão de Desastre para acusar ou prender jornalistas que escrevem sobre as falhas do Estado na resposta à pandemia.

Além disso, sob pretexto de reduzir a carga académica em tempos de Covid-19, foram removidos dos currículos escolares do 9º ao 12º ano capítulos sobre secularismo, cidadania, democracia e lutas e movimentos populares. Uma parte essencial da história da Índia foi removida silenciosamente.

- A polícia de Nova Deli foi acusada de ignorar a violência contra os muçulmanos e de culpar os manifestantes por incitamento aos distúrbios de fevereiro, prendendo vários deles. Houve algum comentário dentro do governo ou da classe política sobre o envolvimento de altos funcionários do BJP no incitamento à violência contra muçulmanos e na detenção de ativistas?

Em janeiro deste ano, líderes do partido no poder instigaram multidões hindu contra os manifestantes contra a CAA (também conhecido como protesto de Shaheen Bagh), o que conduziu aos motins de Deli no qual morreram 53 pessoas, na sua maioria muçulmanos. Agora, o governo de Modi está a apoiar os responsáveis hindu - até a Comissão Nacional de Direitos Humanos está a apoiar o governo de Modi.

Há registos de slogans incendiários do BJP que equiparavam os manifestantes contra a CAA a elementos anti-nacionais e em que pediam o seu fuzilamento. A Comissão das Minorias de Deli acusou vários líderes do BJP, incluindo o Ministro do Interior, Amit Shah, o Ministro-Chefe de Uttar Pradesh, Yogi Adityanath, e Kapil Mishra pelos seus discursos "incendiários". No entanto, na maioria dos casos, a polícia de Deli avançou com queixas formais contra muçulmanos, acusando-os da violência ali ocorrida. O governo de Modi está a usar a polícia e as leis da era colonial contra seus próprios cidadãos. O governo culpou os manifestantes contra a CAA por incitação à violência, chamando-os de anti-nacionais e traidores. Até os graffiti de protesto nas paredes são apagados, e os manifestantes muçulmanos viram alguma da sua propriedade confiscada.

- Qual é a justificação para a perseguição de muçulmanos e outras minorias religiosas?

Os fundamentalistas hindus consideram os muçulmanos invasores estrangeiros, embora os muçulmanos vivam na Índia desde os últimos mil anos. São vistos como selvagens, intolerantes e antipatriotas pela maioria hindu. São responsabilizados pela pobreza, explosão populacional, motins comunais e violência no país. Estas justificações para atormentar os muçulmanos são promovidas pelos media indianos e contam com apoio do governo. O primeiro-ministro indiano Narendra Modi é membro do RSS (Rashtriya Swayamsevak Sangh), partido de supremacia hindu inspirado na ideologia de Hitler. O atual partido no poder, o BJP, é uma ala política do RSS, representado por Modi, que está a implementar a política deste para transformar a Índia numa nação hindu, ao mesmo tempo que expurga os muçulmanos da política dominante e da sociedade indiana em geral. Atualmente, o RSS é a principal força instigante do ódio contra os muçulmanos, a par de outras organizações militantes hindus que desejam que as minorias religiosas sejam cidadãos de segunda classe.

O RSS de Modi é a principal força instigante do ódio contra os muçulmanos

Curiosamente, os líderes hindus raramente falam sobre o seu violento passado histórico. Nunca referem os templos budistas destruídos pelos reis Brahmanpara construir templos hindus. A discriminação de casta, a violência diária contra os dalits, os direitos das mulheres e os dogmas sócio-religiosos hindus dificilmente são destacados pelos líderes nacionalistas hindus. A demonização diária dos muçulmanos e a aceitação desses ataques, ou falta de crítica por parte da maioria hindu, mostra que a maioria dos hindus de classe alta e média desenvolveram uma "consciência nazi" que vê a violência contra os muçulmanos como algo normal.

- Quais as razões e o contexto para a ascensão da extrema direita na política indiana? 

Embora a direita hindu exista desde os últimos cem anos, a globalização intensificou a sua ascensão. As políticas neoliberais na Índia favoreciam os ricos e poderosos, mas impactavam negativamente as massas, o que fez com que as pessoas se sentissem inseguras e mais ansiosas em relação ao seu futuro. As forças populistas aproveitaram esta oportunidade para atrair eleitores a quem prometem um futuro melhor. A tensão comunal pré-existente entre hindus e muçulmanos já serviu de terreno fértil para a direita hindu e impulsionou o chauvinismo cultural hindu.

- Há um ano a Índia removeu a autonomia e o estatuto especial de Caxemira. Podes falar um pouco sobre a situação atual?

Já passou quase um ano desde que o governo nacionalista hindu revogou a autonomia especial do seu único estado de maioria muçulmana, Jammu e Caxemira. Todos os meios de comunicação foram cortados e um ano depois a região continua sem internet de alta velocidade, causando muitas dificuldades para os caxemires comuns. Cerca de 7 mil pessoas foram presas antes e depois de 5 de agosto de 2019, incluindo quase toda a liderança política dominante. O bloqueio da internet é o mais longo registado numa democracia.

O retrato de Caxemira é sufocante. Há ansiedade, medo, preocupação e incerteza. Este é o nível mais básico de pressão psicológica que um caxemira enfrenta hoje. Sem atividade política local visível, as pessoas comuns foram submetidas a políticas brutais impulsionadas por Nova Delhi, que não se deparou com qualquer obstáculo. A revogação do Artigo 370, a bifurcação do estado, mudanças na lei de domicílio, delimitação de constituintes, um período de seis meses de impasse político seguido por um bloqueio pandémico com a maioria dos líderes políticos ea Caxemira presos, todos estes movimentos estão a alimentar as chamas da raiva popular e mais cedo ou mais tarde ela explodirá. Em Caxemira o poder é agora todo do BJP.

- Tens experiência de trabalho político ou ativista na Índia? 

Tenho feito investigação a nível académico e ativismo no apoio aos direitos dos refugiados, minorias religiosas e pela liberdade de expressão, em luta contra o extremismo religioso e o fascismo. Na Índia, trabalho pelos direitos humanos dos dalits e das minorias religiosas em colaboração com organizações não governamentais e centros de investigação. E apoio campanhas políticas contra o fascismo na Índia.

No que diz respeito ao meu trabalho por cá, sendo um dos países pacíficos do mundo, Portugal é mais seguro para um ativista de direitos humanos e jornalista. Além disso, tenho apreço pelo nível de liberdade de expressão em Portugal - em particular nos media e na academia. Outra coisa que me surpreende são os políticos: é fascinante ver que a maioria deles são altamente qualificados. Infelizmente, a ascensão da extrema direita e da xenofobia em Portugal é preocupante.

Além da minha investigação de doutoramento na Universidade de Coimbra, estou a dar o meu melhor para informar os portugueses sobre a atual situação político-social na Índia. Quando, no ano passado, o governo de Modi aprovou a CAA, houve vários protestos estudantis nos EUA, Reino Unido, Canadá e Austrália. No entanto, quase não houve qualquer protesto no campus das universidades portuguesas, exceto em discussões limitadas nas redes sociais. Assim, percebo a importância de sensibilizar os portugueses para as graves questões indianas, para que possam formar uma opinião bem informada e reagir em conformidade. Penso que os intelectuais portugueses podem desempenhar um papel vital ao mostrar solidariedade para com a população indiana oprimida e influenciar as políticas do seu governo relativamente à situação na Índia.


Nota

  1. ^  The Prime Minister's Citizen Assistance and Relief in Emergency Situations Fund (PM CARES Fund) é um fundo criado para lidar com a pandemia de covid-19 na Índia. O governo não revela o valor total arrecadado até ao momento, sendo que as estimativas mais conservadoras falam em 1,4 mil milhões de dólares nos primeiros dois meses.

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