Hoje em dia, esta situação que presenciamos no Mundo Árabe em que uma revolução é seguida por uma contra-revolução, pode ser caracterizada como desesperante? Diante disto, tu consideras-te otimista, apesar das tragédias e dos retrocessos que aconteceram nos últimos anos?
Enquanto houver esperança, nunca devemos desesperar. Como ateus, não acreditamos em milagres, nem em intervenções divinas. Assim, o que nos resta é fazermos uma análise sobre o potencial de mudança. No que diz respeito ao Mundo Árabe, é claro que houve derrotas, mas não o aniquilamento dos movimentos de massa e das forças políticas progressistas que estiveram à frente das revoltas de 2011, como, por exemplo, aconteceu com o movimento trabalhista alemão, depois de os nazis chegarem ao poder. Inclusivamente no caso da Síria, onde a situação é muito mais trágica, não assistimos a um esmagamento direto e sistemático de homens e mulheres jovens, democráticos, progressistas e laicos, que representavam o coração da revolta de 2011. Poucos deles estiveram envolvidos na guerra civil, e muitos foram para o exílio, onde mantiveram a chama revolucionária. Por outro lado, a minha opinião apoia-se também na consciência de que este processo revolucionário (que foi desencadeado em 2011) é caracterizado pode ser de longa duração, e que não poderia ter prosseguido numa linha reta ascendente; já que as condições objetivas não estavam reunidas. O retorno do pêndulo era inevitável. No entanto, a ebulição atual em certos países, em particular em Marrocos, na Tunísia e inclusive no Sudão, mostra claramente que o potencial explosivo ancorado nas crises sócio-económica e estrutural conhecidas pela região, persistirá durante bastante tempo. Não se trata de ser otimista. De um modo geral, eu recuso esta dicotomia em torno de otimismo/pessimismo. A esperança funda-se no potencial, na possibilidade objetiva do longo prazo, que dependerá, por sua vez, do fator subjetivo e das circunstâncias. Ela não representa absolutamente uma crença na inevitabilidade de um futuro feliz.
Em relação à Síria, o caso mais trágico como dizes: consideras que Assad ganhou definitivamente a guerra, ou é possível que haja outro fim para este conflito?
Esta foi uma vitória difícil. Bashar al-Assad pode ser considerado o vencedor, porque mantém-se em pé e, inclusive, pelo fato de existir um consenso internacional para mantê-lo no poder. O último que lhe prestou apoio foi Emmanuel Macron. Desde este ponto de vista, Assad ganhou, mas permanece no poder com muitas aspas, já que se encontra totalmente dependente do Irão e da Rússia e, inclusivamente, dos sírios que fazem parte do seu campo político, pois uma boa parte das regiões que se encontram supostamente sob controlo do regime estão, de fato, submetidas ao poder de milícias incontroláveis, que são oficialmente pró-regime, embora as mesmas estejam relacionadas, de um modo geral, com a bandidagem. Para um renascimento do movimento revolucionário na Síria, seria preciso um compromisso que pusesse fim à guerra em condições que permitam a volta das pessoas refugiadas e a renovação da ação política. A única possibilidade, hoje, seria um acordo internacional, que estabelecesse a implantação no país de uma força internacional de manutenção da paz, que poderia dar confiança a quem não confia nem no regime nem nos grupos armados de oposição.
O que sobrou das condições objetivas que prevaleceram no momento da explosão revolucionária de 2011? Por que razão dizes que as condições subjetivas não estavam presentes em 2011?
A Tunísia é um bom exemplo disso tudo. Em comparação com os demais países da região, as condições subjetivas ali eram e continuam sendo de longe as melhores. Por quê? Porque é o único país da região em que existe um movimento operário organizado com uma real autonomia na base, inclusivamente nos escalões intermediários, já que somente a cúpula deste movimento estava submetida ao poder durante o período da ditadura de Zine El Abidine Ben Ali (7 de novembro de 1987 até 14 de janeiro de 2011). Esta situação singular é que faz com que a Tunísia seja considerada o elo mais fraco da cadeia dos Estados da região, e isto estava determinado tanto pela existência de condições subjetivas, bem como pelo peso da crise objetiva comum de toda a região. Não é por acaso que a onda regional de revoltas começou na Tunísia, e que esse foi o primeiro país da região onde o movimento popular conseguiu depor um ditador. O movimento operário foi a ponta de lança, a verdadeira direção do levantamento de dezembro de 2010 – janeiro de 2011 na Tunísia. Este facto não foi, de todo, uma espécie de revolução pelo facebook, como disseram muitos meios de comunicação ocidentais sobre a Primavera Árabe. Existia uma poderosa organização que pôde dirigir o levantamento tunisiano. Sendo que, este só pode transformar-se num levantamento nacional devido às ações da central sindical Union Générale Tunisienne du Travail (UGTT) [União Geral Tunisiana do Trabalho] e, em particular, dos sindicatos mais combativos, como o dos professores, que desempenharam um papel chave fundamental tanto na divulgação, como na extensão do levantamento.
Não é por acaso que dos seis países árabes que conheceram uma grande revolta, a Tunísia seja o único em que as conquistas democráticas tenham sido preservadas até hoje. Isto também representa o produto de uma correlação de forças onde o movimento operário é determinante. O movimento operário é o principal componente do fator subjetivo na Tunísia, porém encontra-se limitado à perspectiva da mudança política democrática. Seria necessário que o mesmo se radicalizasse, para avançar cada vez mais, porque a saída desta crise passa por uma mudança radical da ordem política e sócio-económica; dito de outra maneira, é preciso uma mudança da natureza de classe do poder.
Então, isto leva-nos à discussão sobre a questão do partido revolucionário e das forças revolucionárias no Mundo Árabe. Lendo o teu último livro, fiquei chocado com a tua avaliação sobre os erros da esquerda regional. Tu desenhas um quadro muito crítico dela.
Sim. É exatamente nisso que consiste, em primeiro lugar, a debilidade das condições subjetivas na região: a mudança revolucionária que se encontra na ordem do dia objetivamente não tem correspondente entre as forças políticas presentes. Isso quer dizer que, continua a não existir uma força política capaz de dirigir esta mudança. Há evidentemente gente de extrema-esquerda que luta por uma mudança radical, mas por regra geral são demasiadamente fracos. O que se vê em marcha são conglomerados de sensibilidades políticas diversas que vão desde a esquerda radical até aos liberais-progressistas (referindo-se ao liberalismo político), que estiveram alinhados a um ou outro dos dois campos contra-revolucionários, que seriam as forças dos antigos regimes e as oposições fundamentalistas islâmicas. Num primeiro momento, encontramos algo visível em praticamente todos os países, que seriam as alianças com os grupos fundamentalistas islâmicos, já que o levantamento foi desencadeado contra os antigos regimes. E num segundo momento, inclusive mesmo antes no primeiro momento em alguns lugares (como foi o caso da Síria), viu-se que havia grupos que desenvolviam uma atitude mais do que ambígua em relação às forças do antigo regime, em nome da oposição aos fundamentalistas islâmicos.
No Egito, temos visto esses grupos passarem da aliança com os fundamentalistas islâmicos contra o regime, à aliança aberta e declarada com o exército (portanto com o antigo regime) contra os fundamentalistas islâmicos. Na Síria, ao contrário da Tunísia ou do Egito, não havia uma rede organizada devido à natureza ultra-repressiva do regime. A oposição foi dizimada pela repressão ao longo dos anos. A revolta foi direcionada desde o início por uma rede de comitês de coordenação que se formou espontaneamente, através do uso intensivo de veículos de comunicação na internet. Após isto, foi formado um auto-proclamado Conselho Nacional Sírio, que se instalou em Istambul sob a tutela turco-Catariana, sendo dominado, por sua vez, pela Irmandade Muçulmana. Uma parte importante da esquerda síria participou desta aventura condenada ao fracasso.
Em nenhum lugar apareceu uma direção minimamente credível que defendesse uma linha de independência política em relação aos dois pólos da contra-revolução. Estes dois pólos estão, por outro lado, ancorados nos bastiões da reação em escala regional, que são as monarquias do Golfo Pérsico, com o Qatar demonstrando todo o apoio aos fundamentalistas islâmicos e os sauditas apoiando os antigos regimes.
No teu livro, apresentaste um paradoxo em relação à Tunísia. Naquele país, a Frente Popular e a UGTT queriam aliar-se com o Nidaa Tounes [um partido político tunisiano], que reagrupa os homens do antigo regime, contra o perigo do surgimento de uma ditadura islâmica dirigida pelo Movimento Ennahda [outro partido político tunisiano], mas este episódio foi concluído com um compromisso entre os homens do antigo regime e os fundamentalistas islâmicos. Assim, a Frente Popular está afastada deste compromisso… e vê-se condenada ao isolamento político em relação às outras forças. O que seria, então, uma boa notícia para ti.
Sim, condenada seria a palavra apropriada. Uma parte da esquerda tunisiana aliou-se ao Movimento Ennahda em 2011, quer dizer, logo depois da chegada deste partido ao poder. Porém, após as eleições, a esquerda colocou-se em oposição ao mesmo. Isto levou-os a estabelecer uma aliança com os remanescentes do antigo regime, reagrupados em torno do Nidda Tounes, contra o Movimento Ennahda. Quase o mesmo roteiro foi seguido, de certa forma, no Egito: neste país houve, em 30 de junho de 2013, manifestações imensas contra o governo da Irmandade Muçulmana que precederam o golpe militar de 3 de julho, enquanto na Tunísia, a 6 de agosto de 2013, uma enorme mobilização obrigou o Movimento Ennahda a abandonar o poder.
A única diferença seria que, na Tunísia, não houve um golpe de Estado, porque o exército naquele país não possui o mesmo peso e a mesma influência como no Egito. No momento da formação do governo do partido Nidda Tounes [após a eleição de Beji Caid Essebsi, em dezembro de 2014], uma parte da esquerda tunisiana estava completamente disposta a participar no mesmo. O que impediu isto de acontecer foi a decisão do Nidda Tounes de cooptar mais o Movimento Ennahda do que a esquerda, e como a esquerda havia declarado que este partido era o seu inimigo absoluto, não foi possível participar do governo de coligação. Por causa disso, a esquerda acabou condenada ao isolamento político. Mas, pensando bem, isto é o melhor que poderia ter acontecido a ela.
No entanto, tampouco a esquerda tunisiana se encontra ao nível de radicalidade exigido por esta situação. Esta situação é totalmente explosiva. O nível de desemprego da juventude é avassalador, e as condições socio-económicas tendem a degradar-se cada vez mais. Isto requer uma atitude mais radical que esta, que até agora tem sido adotada pela Frente Popular. Ao invés de empurrar o movimento operário pela via política rumo a um poder de classe, a esquerda apega-se ao mito do sindicalismo que deve permanecer fora da política, contrariamente ao que foi feito historicamente pela UGTT. Esta falta de radicalidade da esquerda é uma das chaves (mas não a única) que explicam a razão pela qual a radicalidade do fundamentalismo do Estado Islâmico (EI) tem atraído tantos jovens tunisianos. A Tunísia é o país que possui a maior percentagem de jovens que aderiram ao Estado Islâmico, em proporção com a sua população. As outras chaves são o desemprego dessa mesma juventude, e a sua imensa frustração diante dos acontecimentos de 2011 (que para ela poderiam ter representado uma mudança). Além disto, existe o problema da renovação dos quadros políticos. Problema este que de certa forma também atinge, de uma maneira geral, os jovens, já que a Tunísia possui um dos três chefes de Estado mais idosos do mundo.
Os partidários do fundamentalismo islâmico, através da Irmandade Muçulmana, chegaram ao poder no Egito e na Tunísia. No que é que eles se converteram após experimentarem o poder? No Ocidente, há uma opinião que se tem tornado, nos últimos anos, hegemónica, segundo a qual as revoluções árabes representaram um fenómeno mal-entendido, já que estiveram condenadas, desde o princípio a estarem dominadas por forças reacionárias fundamentalistas. No entanto, tu dizes no teu livro que o fundamentalismo islâmico era “a ideologia contra-hegemónica dominante” no Mundo Árabe desde o começo dos anos 1980. Então, qual é a situação atual do mesmo? E como pode a esquerda revolucionária romper o grilhão formado pelas duas grandes forças contra-revolucionárias da região?
Em 2011, a visão orientalista segundo a qual a cultura e a religião dessas populações as condenaria à reação, de certa forma, retrocedeu durante um momento. Assim, constatava-se com certa ingenuidade: “Olha! Esses árabes desejam o mesmo que nós…”. Com o avanço da reação, não durou muito para o velho discurso voltar com força: “Mais vale a pena ter uns ditadores nesses países do que fundamentalistas islâmicos, já que aqueles são a única alternativa possível”. Isto ficou evidente quando o primeiro ministro francês Jacques Chirac justificava as ações do ditador tunisiano Ben Ali, que governava o seu país com mão de ferro. Sendo que, esta última visão é depreciativa. Dito isto, sabia-se, de antemão, que a Irmandade Muçulmana desempenharia um papel crucial naquele cenário. Era uma questão de correlação de forças. A derrota do nacionalismo de esquerda que dominava a região nos anos 1960, sobretudo simbolizada pela derrota árabe frente a Israel em junho de 1967, abriu uma via para a ascensão dos dois pólos opostos: uma nova esquerda radical e as forças fundamentalistas islâmicas. Estas últimas eram apoiadas pelos Estados Unidos e as monarquias do Golfo Pérsico, como antídoto ao nacionalismo de esquerda. Nos anos 1970, foram patrocinadas pelos governos contra a esquerda radical em todas as partes do Mundo Árabe, inclusive na Tunísia e na Argélia, onde serão reprimidas mais tarde quando se tornaram perigosas para os poderes.
No entanto, em nível regional, a Irmandade Muçulmana, assim como os salafistas foram apoiados financeiramente por meio da TV e pelas monarquias do Golfo Pérsico. A partir de meados dos anos 1990, o Qatar converteu-se no patrocinador da Irmandade Muçulmana e lançou a emissora de televisão Al Jazeera, que foi colocada à disposição daquela organização. Assim, quando se iniciaram as revoltas, essas forças, gozavam de meios financeiros e mediáticos, inclusivamente onde haviam sido duramente reprimidas. Portanto era evidente que iriam desempenhar um papel fundamental naquele cenário. O Qatar funcionou como uma opção contra-revolucionária para os países ocidentais dirigidos pelos Estados Unidos de Barack Obama. Este país representava a opção de canalizar o movimento no sentido reacionário, quer dizer, a favor das forças fundamentalistas islâmicas. Por outro lado, existia outra opção contra-revolucionária de enfrentamento às revoltas árabes, que era apoiada pelos sauditas. Tanto o Qatar como a Arábia Saudita intervieram diretamente no Bahrein. E embora ambos desejassem, de um modo geral, que todas as revoltas árabes fossem esmagadas no seu nascimento: as correlações de forças tornaram-se muito diferentes de país para país, impedindo uma repressão frontal. Então, a opção reacionária seduziu a administração Obama.
Naquele momento, os Estados Unidos estavam no ponto mais fraco da sua hegemonia na região desde a primeira guerra contra o Iraque em 1991. Em 2011, abandonaram o Iraque com uma enorme derrota: não somente este país escapou ao seu controlo, mas também passou a ser controlado por um de seus inimigos históricos: o Irão. A administração Obama adotou, assim, a opção promovida pelo Qatar. No Egito e na Tunísia, os governos ocidentais fazem pressão para que as forças fundamentalistas possam ascender ao poder. Em Marrocos, a monarquia adianta-se e coopta no governo o equivalente local da Irmandade Muçulmana, a fim de o obrigar a enfrentar os problemas sócio-económicos. Sendo que, agindo desta forma, a monarquia marroquina pôde fazer com que a Irmandade Muçulmana perdesse a sua credibilidade, uma vez que acabou por neutralizar também o potencial para o protesto por parte daquela organização. Isto não durou muito. O antigo regime passou a reagir. A Síria é a peça que não caiu do efeito dominó desencadeado pela Tunísia, graças, sobretudo, ao apoio do Irão que intervém de forma maciça no país desde 2013. Este é o sinal de uma reviravolta global da situação, que continuou em seguida no Egito com o golpe de Estado, na Tunísia com a chegada ao poder do partido Nidda Tounes e, posteriormente, com as guerras civis na Líbia e no Iémen.
Assim, em todas as partes há o confronto entre os dois campos contra-revolucionários. O antigo regime encontra-se em plena contra-ofensiva: inclusive na Líbia onde o mesmo tinha sido desmantelado de forma radical, já que o general Khalifa Belqasim Haftar reagrupou os seus partidários contra as forças fundamentalistas islâmicas. É exatamente o choque entre estas duas opções contra-revolucionárias que explica em grande parte a crise atual entre o Qatar, por um lado, e a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, pelo outro.
Como podemos caracterizar a experiência dos fundamentalistas islâmicos no poder? Muitos analistas ocidentais foram surpreendidos pela política da Irmandade Muçulmana no Egito e na Tunísia, ao perceberem até que ponto esta organização estava disposta a levar a cabo uma política neoliberal e, ao mesmo tempo, de forma absoluta, anti-ocidental. Poderás falar um pouco mais sobre a crise atual entre o Qatar, a Arábia Saudita e os seus aliados?
Os Estados Unidos sabiam muito bem que era preciso respeitar as posições da Irmandade Muçulmana. Nos tempos em que havia uma corrente importante da esquerda no Mundo Árabe, os Estados Unidos colaboraram com a Irmandade Muçulmana, e com o regime saudita, que representava o terceiro elemento desta tríade. Houve desavenças (entre os dois primeiros elementos) após a intervenção militar massiva dos Estados Unidos contra o Iraque no começo dos anos 1990. Era uma intervenção muito impopular, e a Irmandade Muçulmana opôs-se a ela. Em seguida, no entanto, produziu-se de novo uma aproximação entre a Irmandade Muçulmana e Washington. Isto verificou-se, sobretudo, após o 11 de setembro de 2001, quando os Estados Unidos apareceram de novo não somente como um aliado contra a esquerda, mas também como um aliado moderado contra a Al Qaeda e os chamados jihadistas, que se tornaram, então, um problema importante para o governo dos EUA. Portanto, havia ocorrido uma mudança de atitude sob a administração de George W. Bush: com a mediação do Qatar, Washington retomou as conversações com a Irmandade Muçulmana. Em 2011, os Estados Unidos estavam muito satisfeitos de ter a Irmandade Muçulmana como opção de poder países como o Egito, já que a mesma poderia impedir a evolução dos acontecimentos em direção a um caminho contrário aos seus interesses. De fato, naquele momento, o governo de Mohamed Morsi no Egito não representava apenas a ascensão do neoliberalismo.
Ninguém que não fosse verdadeiramente ingénuo considerava os fundamentalistas como uma força de esquerda no plano sócio-económico. Eles são partidários decididos da ideologia neoliberal, inclusive no que se refere a sua concepção própria do social que remete à ideia de caridade, que é muito bem trabalhada pelas instituições religiosas, já que não é considerada pelas mesmas como um direito cidadão ou uma obrigação do Estado. Não foi apenas neste terreno que a Irmandade Muçulmana se aproximou dos Estados Unidos, já que o mesmo aconteceu também no que se refere à política exterior. Morsi, por sua vez, não questionou as relações do Egito com os Estados Unidos. Isto ficou ainda mais evidente quando o governante egípcio desempenhou o papel de mediador no conflito de Gaza, no lugar de apoiar de forma intransigente o Hamas (o ramo palestiniano da Irmandade Muçulmana). O Egito foi felicitado pela administração Obama por esta decisão. Portanto, a opção pela Irmandade Muçulmana pode ser considerada como completamente racional por parte dos Estados Unidos. Sendo que, isto foi demonstrado claramente no momento do golpe militar que aconteceu no Egito em 2013 (que destituiu o presidente Mohamed Morsi), quando Barack Obama não ocultou o seu descontentamento em relação ao ocorrido. Por outro lado, acredito que eles próprios se equivocaram sobre isto, porque a alternativa haveria sido uma radicalização do movimento social, cuja possibilidade existia com força no Egito em 2013. A Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, pelo contrário, apoiaram com entusiasmo a tomada do poder pelo general Abdul Fatah Al-Sisi no Egito. O golpe de Estado egípcio constituiu uma dura derrota para o Qatar.
No entanto, sobretudo, após a mudança do seu monarca, os sauditas obcecados pela ameaça iraniana e constatando que, em países como a Síria e o Iémen, encontravam-se no mesmo campo que a Irmandade Muçulmana, acabaram privilegiando, num primeiro momento, a formação de uma frente sunita, que englobava esta última e o Qatar. Isto funcionou até a chegada de Donald Trump ao poder. Através de Trump, foi instalado um poder islamofóbico em Washington, que contrastava fortemente com a política da administração Obama. Os conselheiros de extrema-direita de Trump costumam classificar a Irmandade Muçulmana como uma organização terrorista. Neste ponto, possuem uma afinidade com a posição dos Emirados Árabes Unidos, opositores ferozes da Irmandade Muçulmana. Os Emirados são aliados fiéis do Egito, com quem intervieram na Líbia para apoiar Haftar, que acaba de recuperar a cidade de Bengasi (a segunda maior cidade da Líbia). Diante destes acontecimentos, conjuntamente, os sauditas são levados a endurecerem a sua posição sobre esta questão. A visita de Trump à Arábia Saudita representou a ocasião para concluir os acordos neste sentido. A partir daí nasceu esta forte pressão sobre o Qatar, ou seja, para que este país deixe de apoiar a Irmandade Muçulmana. O que acontece hoje seria exatamente isto que acabei de mencionar.
Assim, assistimos a um conflito entre, por um lado, o Qatar apoiado pela Turquia (com o Irão beneficiando da situação, mas com o Qatar procurando não comprometer-se integralmente em relação a esta questão, já que desagradaria a Washington, e com a Turquia podendo agir livremente, sem preocupações, já que é membro da NATO e consequentemente grande aliado dos Estados Unidos) e, por outro lado, o eixo Arábia Saudita/Emirados Árabes Unidos/Egito. A administração dos EUA está dividida em relação a este conflito. Trump e os seus conselheiros de extrema-direita islamofóbicos estão do lado do Egito e dos Emirados Árabes Unidos, enquanto, por outro lado, o Departamento de Estado e o Pentágono encontram-se do lado do Qatar, sobretudo, pelo facto deste país abrigar a maior base militar dos EUA e o United States Central Command (CENTCOM) [Comando Central (militar) dos Estados Unidos] para toda a região, com os gastos para a manutenção dos mesmos sendo feitos diretamente pelo próprio emir qatariano. O Pentágono e o Departamento de Estado veem com maus olhos este conflito. Diante de tudo isto, a administração Trump aparece como particularmente fragmentada, ou seja, sem uma posição única definida…
Pensas que o episódio da ascensão dos fundamentalistas ao poder e sua consequente queda no Egito, bem como o seu retrocesso na Tunísia, debilitam o fundamentalismo islâmico como ideologia numa parte do Mundo Árabe, e que isto pode abrir uma possibilidade real de intervenção para a esquerda revolucionária?
Este roteiro não se dará de forma automática. O general Al-Sisi no Egito não abrirá possibilidades melhores de atuação para a esquerda revolucionária do que Mohamed Morsi (Irmandade Muçulmana). Num determinado sentido é exatamente o contrário: quando Morsi se encontrava no poder, era mais eficaz para a esquerda desacreditar a Irmandade Muçulmana. Por outro lado, estes golpes de Estado são reacionários, contra-revolucionários vitoriosos, enquanto que Morsi no poder, não comprometia o potencial revolucionário; ao contrário, a situação não deixava de se radicalizar. A chegada do exército ao poder pôs fim a esta radicalização. Não há qualquer comunicação entre a Irmandade Muçulmana e a esquerda revolucionária. Este conflito não se constitui numa oposição binária, e sim num jogo triangular. Portanto, a derrota da Irmandade Muçulmana, que dá lugar a uma restauração violenta (com o reforço do antigo regime), não melhorará, nem de longe, as condições para a esquerda revolucionária. De um modo geral, esta situação ficou muito complicada.
O que fica, uma vez mais, do potencial real para a esquerda, é a crise sócio-económica. No Egito, Al-Sisi implantou a terapia de choque proposta pelo FMI. No entanto, esta agenda está condenada ao fracasso: não haverá um grande impacto dos investimentos privados no contexto dos países árabes. O que vai permanecer seria o choque sem a terapia, como se dizia nos anos 1990, no caso da Rússia. Neste caso, a insatisfação popular cresce e chega ao final o período de popularidade de Al-Sisi. Assim permanece o problema da capacidade das forças da esquerda para se organizarem como alternativa em relação tanto ao antigo regime, bem como aos fundamentalistas islâmicos. É preciso construir essa esquerda. As condições para a sua construção são bastante melhores hoje do que eram antes em 2011. O Mundo Árabe tem vivido sob o despotismo durante décadas, e pela primeira vez, em 2011, viram-se movimentos populares derrubando ditadores. Esta experiência é a fonte de esperança para o futuro. Assim, entramos num processo de longa duração que persistirá por longos anos, décadas inclusivamente.
Artigo original publicado em francês em Revue L’Anticapitaliste nº 90 (septembre 2017): https://npa2009.org/idees/international/entretien-avec-gilbert-achcar-une-experience-source-despoir-pour-lavenir
Publicada em espanhol pela Revista Viento Sur: http://vientosur.info/spip.php?article13022