Está aqui

França em choque com assassinato do professor que queria ensinar liberdade de expressão

A decapitação de Samuel Paty, o professor que mostrou caricaturas de Maomé para ilustrar o tema da liberdade de expressão, desencadeou uma onda de comoção em França. E relançou também velhos debates sobre laicidade e islamofobia, segurança e liberdade, ou o papel das redes sociais.
Manifestação de homenagem a Samuel Paty. Outubro de 2020, Paris. Foto de Mathieu Delmestre/Parti Socialiste/Flickr
Manifestação de homenagem a Samuel Paty. Outubro de 2020, Paris. Foto de Mathieu Delmestre/Parti Socialiste/Flickr

Samuel Paty, professor de História e Geografia de 47 anos, foi decapitado em plena via pública, na passada sexta-feira em Conflans-Sainte-Honorine, um subúrbio da região parisiense, por ter mostrado na sala de aula caricaturas de Maomé. No início do mês, as imagens tinham servido para ilustrar o seu curso sobre liberdade de expressão.

No dia seguinte, mais de um milhar de alunos, colegas e vizinhos saíram às ruas para homenagear um professor considerado pelos alunos como “gentil e engraçado”, “apaixonado pela sua profissão”. E no domingo, na Praça da República em Paris, vários milhares de pessoas manifestaram-se em sua homenagem. Os professores vieram em peso e o governo e oposição de esquerda também marcaram presença.

Um sentimento que contrasta com o clima anterior ao brutal assassinato, devido a uma campanha de difamação. Os problemas começaram logo com uma queixa contra estas aulas. Do inquérito resultou a conclusão que o docente tinha agido de forma apropriada e a polémica na escola foi considerada apaziguada. Mas tinha-se já estendido às redes sociais através do pai de uma aluna, que gravou vídeos em que lhe chamava “bandido” e apelava à mobilização para o travar.

Estes vídeos, ou outros semelhantes, terão chegado aos olhos do autor do assassinato, Abdoullakh Abouyezidvitch Anzorovu, um russo de origem tchetchena com 18 anos, que não era seu aluno. O jovem reivindicou o atentado na sua conta de Twitter, dirigindo-se ao presidente francês, “o dirigente dos infiéis”, dizendo-lhe que tinha executado “um dos teus cães do inferno que ousou rebaixar Maomé”. Anzorovu foi depois abatido num confronto com a polícia.

Esta conta de Twitter era recente, iniciada a oito de junho, e tinha tido na descrição de perfil uma menção à exclusão de contactos com mulheres. Já tinha sido denunciada pela Liga Internacional contra o Racismo e o Antisemitismo a 27 de julho devido a uma mensagem de caráter anti-semita e depois sinalizada por outro utilizador à Pharos, a plataforma de sinalização de conteúdos e comportamentos ilícitos na internet, por “apologia da violência, incitação ao ódio, homofobia e racismo”. Outros se seguiram, segundo informações recolhidas pelo jornal francês Mediapart. Para além das mensagens, Anzorovu publicou a imagem de uma decapitação, tendo apagado esse tweet posteriormente. Aliás, quinze dias antes do assassinato, tinha apagado quase todos os 711 publicados menos dois.

A resposta do país político: repressão, instrumentalização, islamofobia…

O presidente francês Emmanuel Macron reagiu imediatamente ao crime para dizer que “o obscurantismo não ganhará” e prometeu combate ao “terrorismo islâmico”. No sábado, o primeiro-ministro Jean Castex reuniu com os ministros da Educação, do Interior e da Justiça para delinear “uma estratégia de resposta ainda mais firme, mais rápida e mais eficaz quando um professor sofre ameaças”, planear o endurecimento do seu projeto de lei contra o “separatismo islamita” e desencadear um “plano de ação” contra “estruturas, associações ou pessoas próximas dos meios radicalizados”.

Um dos visados é o Comité Contra a Islamofobia em França. Gérald Darmanin, ministro do Interior, afirmou à imprensa que aquela organização estava “manifestamente implicada” no caso, “porque o pai que lançou uma fatwa contra este professor fazia claramente referência a ela”. O governante considerou-a um “inimigo da República” e, mais tarde, através do Twitter, anunciou que iria propor “a dissolução do CCIF e da BarakaCity”, outra associação acusada de “separatismo islâmico”.

O CCIF é uma conhecida associação que defende vítimas de discriminação com base na sua religião, dando-lhes apoio jurídico, e recebe até fundos da União Europeia. Em comunicado, condenou o “horror” do atentado e manifestou-se “transtornada”, afirmando que não participou na campanha de ódio contra o professor e que se encontrava numa “etapa de verificação de informações” sobre o caso. Informou igualmente que tinha recomendado ao pai da aluna que o publicitou “suprimir o vídeo” para permitir que tudo fosse “tratado serenamente”.

O Conselho Francês do Culto Muçulmano também reagiu publicamente para condenar o sucedido: “face aos que buscam uma razão para este crime ignóbil evocando as caricaturas do profeta do Islão, reafirmamos que nada, absolutamente nada, poderia justificar o assassinato de um homem.”

E a Assembleia dos Tchetchenos na Europa emitiu um comunicado a dizer que a sua comunidade “está horrorizada como todos os franceses por este incidente”, sublinhando que “nenhuma comunidade pode ser tida como responsável por todos os atos isolados dos seus membros”.

Desde o início da semana está no terreno uma operação policial contra dezenas de indivíduos que foram alvo de “visitas domiciliárias” e o controlo de 51 associações. Fontes do Ministério do Interior assumem perante a imprensa que o seu objetivo é “assediar e desestabilizar este meio” e não investigar o homicídio.

Para além disso, cerca de uma centena de pessoas foram já alvo de queixas judiciais por se terem regozijado nas redes sociais com o atentado.

Preocupações à esquerda

Com a extrema-direita a pretender instrumentalizar a indignação suscitada pelo assassinato, a esquerda participa nas mobilizações de homenagem a Paty e preocupa-se com o crescimento da islamofobia e do racismo.

Ao Mediapart, o deputado Alexis Corbière, da França Insubmissa, refere que se está a construir um clima de divisão “entre os que dizem que o problema é a imigração e o Islão e os que dizem que o problema é a República”. Portanto, a sua posição “por uma República laica e fraterna” não é uma posição “fácil neste momento”.

A deputada do Partido Comunista Francês Elsa Faucillon também espera momentos difíceis de instrumentalização das emoções populares e de “invetivas que dividem o país”. “É como se não tivéssemos aprendido nada desde 2015”, ano dos atentados no Bataclan e no Charlie Hebdo, lamenta.

O pessimismo é igualmente o tom de Benoît Hamon, ex-candidato presidencial do Partido Socialista que considera que o terrorismo está a ganhar porque “não apenas os professores estão traumatizados, mas as leis serão cada vez mais restritivas das liberdades públicas…”

Termos relacionados Internacional
(...)