Intervenção na apresentação do livro Direitas Velhas, Direitas Novas, de Fernando Rosas, em Coimbra.
Cresci nos anos 1980 e 1990. E cresci e convivi até há bem pouco tempo com a ideia de que a extrema-direita é/era um episódio do passado. Fechado. Não creio que seja crença singular da minha geração, mas antes resultado dos tempos.
Tempos marcados pelo fim da bipolaridade da Guerra Fria, do colapso da União Soviética e da ausência de uma alternativa entendida como viável ao capitalismo. Era o tempo dos fundos europeus possíveis pela integração de Portugal na CEE e do que este projeto político representava, da reunificação alemã, do Tratado de Maastricht, do apogeu da democracia liberal capitalista enquanto "fim da história" de Fukuyama.
Deste lugar histórico, documentários sobre a ascensão do fascismo, eram recebidos com horror e incredulidade. Pensava-se “como foi possível?”, quase que criando uma hierarquia de racionalidade, humanidade, entre nós, o nosso tempo, e a cidadania comum daquele tempo que não viu ou que permitiu - nem que fosse pelo silêncio - que o fascismo (e o nazismo) acontecesse. Convivia-se, então, com duas más notícias. A pior era que o fascismo tinha existido e isso só por si era algo aterrador. A menos má - e que conferia esperança e horizonte - é que o fascismo existia, mas estava arrumado fora da racionalidade política de quem vota e de quem nos representa nas instituições. A par disso, havia também uma desvalorização do intelecto ou moralidade do seu pequeno eleitorado, o que permitia a existência de retóricas que arrumavam a extrema-direita num canto confortável face ao nosso futuro coletivo, sossegando a democracia e quem nela acreditava.
Política
A extrema-direita impõe “uma mundivisão que dobra as pessoas”. Entrevista a Fernando Rosas
Porém, os resultados eleitorais pós-crise de 2008 foram rompendo com esse descrédito que lhes era dado e também com o conforto que lhe era sucedâneo. À crise financeira somou-se uma crise bancária. E para que a população pagasse a fatura dos desmandos da banca, essas crises foram recauchutadas em crises da dívida pública, respondidas com programas de austeridade e com o desmantelamento vertiginoso do Estado Social. A juntar à imensa crise socioeconómica e de desemprego gerada por estas políticas públicas, lá fora, as convulsões às portas da Europa levaram à externalização das mesmas como forma de gerir o aumento dos fluxos de migração vindos do Médio Oriente e do Norte de África, e a teoria da grande substituição e islamização da Europa ganhava novos adeptos.
A extrema-direita de figuras singulares ou excêntricas como Berlusconi e Jean-Marie Le Pen ou John Tyndall renovava-se e dava lugar a movimentos, partidos e líderes populistas como Marine Le Pen, Viktor Orbán, Nigel Farage, Matteo Salvini, Giorgia Meloni, Alice Weidel da AfD, Democratas Suecos, etc, e a uma aceitação do discurso e das propostas. Até porque os seus discursos foram, de certa forma, revestindo-se de maior sofisticação semântica, escondendo a sua origem fascizante e tornando-os mais persuasivos.
Mesmo quando estas figuras da nova e velha guarda não escondiam tão bem a sua orientação fascista, a reação mais automática tendia a ser a de arrumar analiticamente o que eram e representavam em rótulos não necessariamente elogiosos (como extravagantes, franjas, episódicos), mas que de alguma forma continuavam a dar aconchego porque os colocavam num patamar algures entre o anedótico e o distópico.
Esse conforto continuou a existir, mas sempre a esboroar-se cada vez mais. As eleições europeias de 2014 já demonstraram a força do ressurgimento da extrema-direita, mesmo que muitos ainda não antevissem como provável o Brexit, a eleição de Trump ou Bolsonaro, ou mesmo ainda o sucesso que um projeto político como o Chega viria a ter nos anos seguintes.
E, ainda esta semana, tivemos imagens da tomada de posse de Trump em que, numa mesma sala, e com poder de apoiante e também de protagonista, temos J. D. Vance, Mark Zuckerberg (Meta), Tim Cook (Apple), Sundar Pichai (Google), Musk (X), Bezzos (Amazon e Washington Post), Giorgia Meloni, Javier Milei, e afins. As imagens a que pudemos assistir nas TV, imprensa e redes sociais, mostram a afirmação, a rede e o alcance das novas extremas direitas. Temos também nos noticiários nacionais, destaque para a presença de André Ventura nas cerimónias - antes, durante e depois destas.
Enquanto (ainda) estávamos confortáveis, a extrema-direita já tinha chegado. Está a sedimentar-se e a expandir-se. Mesmo com esta evidência, é ainda fácil escorregar para não a levar a sério. Em muitas dimensões, é incompreensível como chegamos aqui e como consegue colher eleitorado. Mas essa incompreensão é também um perigo. Perante o cenário atual, são duas as armadilhas que devemos evitar: a armadilha da negação e a armadilha da patologização. O principal contributo deste livro é precisamente impedir que caiamos nessas duas armadilhas. E, para esse propósito, ele é absolutamente fundamental. Faz-nos encarar o problema de frente. Como nos diz, logo desde o início, o fascismo “não cai do céu aos trambolhões”, “não é uma aberração política misteriosa que se abate inapropriadamente sobre as sociedades europeias”, não é uma “doença rara e conjuntural”, não é “fruto de um distúrbio psíquico” (p. 17) “nem uma expressão doentia de características imanentes de certos povos ou etnias” (p. 18) ou “fenómeno misterioso tombado dos infernos” (p. 208).
Faz-nos, assim, reconhecer que a extrema-direita não é um circo patológico, de produção e esvaziamento espontâneo. Mostra-nos que é real, tem agenda e é politicamente relevante e, por isso, necessária de se combater. Para desmontar estes perigosos e armadilhados lugares-comuns, o livro apresenta a genealogia das ideias de extrema-direita desde “a derrota dos fascismos”, entendidos como “cânone ideológico” (p. 11), e “fonte histórica de tudo o resto” (p.17) até aos dias de hoje em que se apresenta como uma direita “bufónica” e “demagógica” (p. 12). Faz isto olhando de forma complexa para as “relações de força, modelos económicos e de instituições” (p. 17). E, portanto, há uma tónica forte na componente estrutural e material desta evolução e sedimentação.
Com frases densas, ritmadas, com alguma ironia e muita sofisticação, o livro oferece-nos uma viagem sistematizada (mas de todo linear ou simplista) desta genealogia, navegando por três capítulos históricos e que se vertem também em capítulos analíticos: “A época dos fascismos”, “Os trinta anos de ouro” e “O ciclo do capitalismo neoliberal”. Cobrindo as diferenças e especificidades de cada época, o livro mostra-nos como nas três, capitalismo e fascismo andaram sempre de mãos dadas. Quando o capitalismo endureceu, o fascismo robusteceu-se. Quando o capitalismo se suavizou com toques de social-democracia, o fascismo desfaleceu. Quando o capitalismo apontou para uma expressão neoliberal em que o horizonte do lucro e do individualismo não tem limites, o fascismo reforçou-se. Aqui, para quem está a ouvir, pode parecer que a relação é sequencial e unidimensional, mas o que o livro nos mostra é que a ascensão e sustentação do fascismo é tudo menos linear. Há muito mais coisas em jogo. E quem o for ler, irá conhecer. Na verdade, para quem quiser compreender como o fascismo sempre foi uma questão de poder de “poucos sobre muitos”, e como ele conquista, mesmo quem pode sair prejudicado por essa ordem, este é um livro a não perder.
Pessoalmente, o livro deixou-me a pensar em três pontos que aqui partilho. Em primeiro lugar, a relevância da comunicação política. O livro não lhe atribui centralidade, mas fala da importância que os media - como “o cinema, a rádio, o cartaz” (p. 17) - instrumentalizados por máquinas afinadas de propaganda tiveram na validação e mobilização dos primeiros movimentos fascistas e de como voltam a ser, sobretudo, pelas redes sociais, o braço direito da extrema-direita atual. É comum às duas épocas o facto de, perante uma realidade muito material - desemprego, pobreza, estagnação ou retrocesso na pirâmide social - o que permite, em grande medida, ao fascismo existir e mobilizar é a forma como enquadra os problemas e as suas soluções através da comunicação de massas. A sua substância política colhe pelo hype, ou seja, uma mistura de hiperbolização (emocional) e simplificação dos problemas e das soluções. Mas a novidade de hoje é a configuração em que assenta a política económica das redes sociais. Há um provérbio popular que diz que uma mentira voa meio mundo enquanto a verdade calça as botas. E certamente que na última década temos visto ressurgir os debates que acompanham as inovações tecnológicas, sobretudo na área da comunicação, relativas aos perigos de distorção da realidade ou das consequências para a vida pública, e para os regimes políticos e processos que os sustêm, causados pela introdução da web 2.0, das redes sociais ou mais recentemente pela inteligência artificial. Essa é uma discussão muito antiga na área da Comunicação. Mas eu queria relevar que, para além da velocidade com que certas informações circulam, para além de nos esmagar na vertigem do consumo interminável de “notícias”, para além da abrangência e influência que os “novos media” têm no nosso dia-a-dia, há uma coisa que parece evidente: é que a economia política dos novos media (X, Facebook, Instagram, TikTok, etc.) como ela existe hoje, está programada para nos atomizar, para provocar conflito e indignação, para nos distrair ou alienar, para facilitar a manipulação e a dissidência. Por outras palavras, para tentar criar uma sensação de impotência ou incapacidade de ir coletivamente contra a corrente, de organizar e resistir ao que nos é vendido como facto consumado. Como escreveu Mark Fisher: “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.”
Para além disso, há também a estrutura algorítmica que permite num ambiente teoricamente democrático e horizontal, fazer com que determinadas vozes se ouçam mais alto do que outras.
Em segundo lugar, aquilo que Brooke Harrington cunhou como “Broligarchy” ou, em português, “manoligarquia”, e que pretende captar analiticamente a atmosfera quase colegial e de proteção mútua entre machos alfa que lideram instituições políticas e de high-tech. Há, pelo menos, um elemento essencial nesta broligarchy que a distingue, segundo a autora, das oligarquias anteriores. Enquanto os Medici na Itália Renascentista ou os Rockefeller nos EUA do século XIX e XX, por exemplo, estavam focados em enriquecer, mas também se organizavam em lógicas de filantropia em que devolviam algo à comunidade, estas novas oligarquias têm uma agenda política explicitamente antidemocrática, não assumindo qualquer obrigação perante o coletivo. É um cocktail de individualismo, riqueza e meritocracia levada ao extremo. Uma espécie de regresso ao direito divino, que o próprio Yanis Varoufakis tem falado recentemente com outro nome, o de tecno-feudalismo, para relevar a incompatibilidade entre o atual modelo económico e concentração de riqueza e um regime democrático. Há também um outro aspeto desta manoligarquia que é a ligação entre Estado e Indústria. Na Itália de Mussolini de “Tudo no Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado", ou na Alemanha Nazi, havia uma grande ligação com o mundo empresarial, mas não havia dúvidas quem estava no topo desta relação hierárquica. Atualmente, nesta broligarchy, Estado e topo empresarial parecem começar a confundir-se. Ilustrando isto mesmo está, por exemplo, uma entrevista que JD Vance deu em Setembro de 2024, antes mesmo de ser vice-presidente eleito, afirmando que o apoio norte-americano à NATO estaria diretamente dependente da regulamentação do X e do tratamento que a UE desse a Elon Musk.
A terceira tem a ver com questões de género que o livro me despertou. Onde ficam as mulheres? Como lidam elas historicamente com a ascensão do nazi-fascismo? De que forma o corroboram ou obstaculizam? Que organizações combateram ou se aliaram? E hoje, como é que as mulheres e as suas lutas se articulam com tudo isto? A par da regressão de direitos sexuais e reprodutivos, há o regresso do ideal da mulher que é feliz fora da modernidade e que se realiza a ser mãe de família e governanta. E retóricas femonacionalistas. Quando esta apropriação existe, como desmontá-las?
Há um livro de 1983 e que mais recentemente foi adaptado a uma série de televisão - The Handmaid’s Tale - escrita pela canadiana Margaret Atwood que apresenta uma distopia que se desenrola após o que a obra apresenta como a Segunda Guerra Civil Americana e a emergência da Republica de Gilead. Um regime totalitário, opressivo, militarizado de extrema-direita e pautado pelo fanatismo religioso. Suprime direitos humanos e submete, por exemplo, mulheres férteis à escravidão para a procriação. Procuro que a palavra distopia que descreve o enredo em todas as páginas web e críticas literárias me acalme. Tenho, porém, receio que também aqui a República de Gilead chegue quando a armadilha da ideia de ficção ainda nos reconforta. Subscrevo, por isso, a forma como e Fernando Rosas fecha este seu livro: “oxalá não cheguemos tarde” (p. 208).