Internacional

A Europa precisa de gastar mais em defesa?

20 de março 2025 - 14:33

Rufam os tambores da guerra e os dirigentes europeus pedem mais despesa para armas, mas será que a Europa não está já refém de grandes gastos em defesa?

por

Daniel Moura Borges e Madalena Figueira

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Bandeira UE
Fotografia de Pixabay/CC

“A Europa deve reduzir o seu Estado-Social para construir um Estado-Guerra”. É essa a proposta de Janan Ganesh para a economia europeia defendida num artigo do Financial Times, e que tem estado no centro da discussão sobre o aumento da despesa na indústria militar europeia.

Desde que Donald Trump assumiu a presidência estadunidense que os líderes europeus assumem vigorosamente a necessidade de gastar mais dinheiro em defesa. O secretário-geral da NATO, Mark Rutte, ameaçou os países europeus dizendo: “ou decidem agora gastar mais, ou começam a aprender a falar russo”.

Rutte defende assertivamente que 2% do PIB dos países da União Europeia não são suficientes. Diz que “não chegam, nem de perto nem de longe, para nos defendermos e continuarmos seguros”. Mas de onde vem esse dinheiro? O próprio Rutte já tinha apelado a que os cidadãos aceitassem “sacrifícios”, como cortes nas pensões, saúde ou na segurança social. Ganesh vai mais longe e diz mesmo que o Estado-Social é “um produto de estranhas circunstâncias históricas” e que está na altura de abdicarmos das políticas sociais e redirecionar esse dinheiro para a indústria militar.

A União Europeia anuiu ao apresentar o plano Rearmar a Europa, no qual o “grande esforço” é completamente suportado pelos países, acabando por lhes impor esta visão de pauperização do Estado Social. São concedidos empréstimos (e não garantias ou subvenções) através de emissão de dívida conjunta, são desviados fundos de coesão para a defesa (o que penaliza especialmente países periféricos) e cria-se a excecionalidade dos gastos para a defesa estarem isentos dos limites impostos pelas regras orçamentais.

Das três medidas, a última é particularmente importante. O ano passado foram revistas estas regras, depois de estarem suspensas durante a pandemia e ter sido comprovado o seu fracasso. O resultado foi altamente criticado pela Esquerda, sindicatos e organizações ambientais, precisamente por não permitir espaço de manobra aos países para investirem na transição energética e na garantia de serviços públicos. A única exceção a estas regras ser a despesa militarista é exemplo máximo das prioridades perversas da UE.

Mas será que essa despesa é mesmo necessária? Os dados da própria União Europeia indicam que os 27 países gastaram em conjunto, só no ano passado, 326 mil milhões de euros em defesa. É um aumento de 47 mil milhões de euros face a 2023 e de 86 mil milhões face a 2022. Isso significa que a União Europeia gasta mais em defesa do que a China – que em 2024 gastou 246 mil milhões de euros – e apenas atrás dos Estados Unidos da América – que em 2024 gastaram 839 mil milhões de euros – em termos de despesa militar. Isto de acordo com os dados do Instituto Internacional de Investigação sobre Paz de Estocolmo (SIPRI).

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O relatório de despesa militar da NATO para 2024 dá conta de um aumento de 17,9% nos gastos em defesa na Europa e no Canadá (estes dados aparecem sempre agregados) nesse ano face ao anterior. E já em 2023 dava conta de um aumento de 9,3% em despesa militar face a 2022. Na verdade, os aumentos de despesa nesta área têm aumentado consistentemente desde 2015, com grandes saltos em 2023 e 2024.

O investimento proposto também não será necessário, como se tem apontado, para colmatar deficiências na indústria armamentista europeia, altamente concentrada. Os dados do SIPRI entre 2020 e 2024 apontam que entre os 9 países que mais exportam armas no mundo, quatro pertencem à União Europeia (França, Alemanha, Itália e Espanha) e cinco pertencem aos países europeus que fazem parte da NATO (aos quatro anteriores soma-se o Reino Unido).

Para além disso, nas principais categorias de produção de equipamento militar apontadas, a indústria europeia não possui lacunas. Ou seja, não há grandes áreas onde a indústria europeia esteja em falta. A França, a Itália e o Reino Unido são casa de empresas que produzem e exportam aviões de combate, e a França e Itália fazem o mesmo com helicópteros de combate. Para grandes navios de guerra, são mesmo os cinco países europeus, e todos menos o Reino Unido exportam veículos blindados. Na Alemanha e na Itália exportam-se tanques de guerra, na França e na Alemanha artilharia. Mesmo os mais complexos mísseis terra-ar (sistemas SAM) são exportados pela Alemanha e pelo Reino Unido.

A par de uma indústria militar robusta para exportações, os países europeus têm aumentado consideravelmente a despesa em equipamento militar nos últimos anos. E isto não inclui só a compra, mas também o investimento em projetos de investigação e desenvolvimento. É isso que indica o relatório da NATO. Em 2024, houve um aumento de despesa em armamento nos países da Europa e no Canadá de 36,9%, e em 2023 já se tinha registado um aumento de 16,4%. Novamente, os países europeus e o Canadá têm apresentado aumentos consistentes de despesa em equipamento militar desde 2015, com picos em 2017, 2021, 2023 e 2024.

Na Albânia, na Chéquia, na Finlândia, na Hungria, na Letónia, no Luxemburgo, na Polónia e no Reino Unido, a maior parte do orçamento militar já é direcionado para o equipamento militar, oscilando entre os 36,9% na Letónia e os 51,1% na Polónia. Entre 2014 e 2024, foram 27 os países europeus que aumentaram a percentagem do orçamento de defesa para o equipamento. São todos os países europeus pertencentes à NATO (no qual se inclui a Turquia) menos a Suécia. Ainda mais, em 17 desses países, o aumento da percentagem do orçamento de defesa gasto em equipamento subiu mais ou menos constantemente e em todos eles há uma tendência de aceleração do aumento nos últimos dois anos.

O complexo militar-industrial transatlântico 

O aumento na despesa militar tem aumentado e a percentagem desses orçamentos que vai para o equipamento e armamento tem aumentado também. Então, porque é que os líderes europeus querem aumentar ainda mais a despesa militar e o que é que está em causa?

No seu discurso de despedida, em 1961, Dwight D. Eisenhower, ex-general e presidente dos Estados Unidos da América pelo Partido Republicano, deixou um aviso à sua nação: “Nos conselhos de governo, temos de nos precaver contra a aquisição de uma influência injustificada, procurada ou não, por parte do complexo militar-industrial”.

“Esta conjunção de um imenso complexo militar e de uma grande indústria de armamento é nova na experiência americana. A influência total - económica, política e até espiritual - é sentida em todas as cidades, em todos os estados, em todos os gabinetes do governo federal”, disse.

Não obstante, segundo os dados do World Bank, a despesa militar aumentou de 47,3 mil milhões de dólares para 876 mil milhões de dólares (cerca de 839 mil milhões de euros, como apontado em cima). Mesmo ajustado à inflação, estamos a falar de um aumento real de cerca de 332 mil milhões de dólares em sessenta anos.

As empresas de equipamento militar nos Estados Unidos da América ganharam um dimensão e uma capacidade de influenciar a esfera política e social grande, como previa Eisenhower. E essa influência chega à Europa.

Uma investigação da Investigate Europe demonstrou que a estratégia de financiamento do Programa Europeu de Desenvolvimento Industrial no domínio da Defesa é dominada por cinco empresas: a Airbus, a Leonardo, a Thales, a Dassault Aviation e a Indra Sistemas. Estas empresas são detidas em parte por Estados europeus, mas também em parte por fundos estadunidenses que são acionistas nas empresas militares dos Estados Unidos da América.

Na prática, isso significa que as grandes empresas de armamento europeias e as grandes empresas de armamento americanas são detidas pelos mesmos fundos, o que significaria um processo de concentração horizontal de propriedade no mercado. Os mesmos fundos que detêm interesses nessas cinco empresas, também detêm interesses na Boeing, Lockheed Martin, Raytheon Technologies, General Dynamics and Northrop Grumman. O complexo militar-industrial de que Einsenhower falava atravessou o oceano Atlântico.

Um dos grupos com presença mais visível é a BlackRock, que detém participações na Airbus, Leonardo, Thales, Indra Sistemas, Dassault na Europa, e na Boeing, Lockheed Martin, Raytheon, Northrop e General Dynamics nos Estados Unidos da América.

Ainda mais, estas empresas têm vários representantes no Grupo de Personalidades de Investigação de Defesa (GoP), um grupo criado pela Comissão Europeia em 2015 (ano em que o investimento militar começou a aumentar consistentemente) para direcionar a política de segurança e defesa na Europa.

Prova disso é o aumento da despesa em lóbi junto das instituições europeias pelas 10 maiores empresas do setor da defesa dos países da EU nos últimos anos. Entre 2022 e 2023, os dados públicos registam um aumento de 40%.

Quem beneficia do genocídio na Palestina e da guerra na Ucrânia está a preparar terreno para também beneficiar dos cortes ao Estado-Social na Europa, aumentando a sua taxa de lucro.

Portugal em números

Neste cenário, Portugal ainda se situa abaixo dos 2% do PIB destinados à defesa que a NATO prevê, mas também tem aumentado consistentemente. Em 2024, Portugal ultrapassou pela primeira vez os 1,5% do PIB e gastou quatro mil milhões de euros em defesa. É o dobro do que gastava em 2014, quando alocava cerca de dois mil milhões de euros (em valores atualizados à inflação).

Desde 2014, o país apresenta aumentos anuais na despesa militar mais ou menos consistentes, com quedas em 2016, 2020 e 2021, mas picos em 2018 e 2021, na ordem dos 11% de aumento real.

As forças militares portuguesas gastam a maior parte do seu orçamento em despesas com pessoal, cerca de 58,6%, sendo o segundo país na Europa que maior percentagem do seu orçamento gasta em pessoal, atrás da Itália. 15,6% do orçamento é destinado a operações e manutenção, 3,9% a infraestruturas, e os restantes 21,9% a equipamento. 

Vítor Franco
Vítor Franco

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Portugal, como a generalidade dos países europeus, tem aumentado consistentemente a percentagem do seu orçamento que disponibiliza para equipamento. Se em 2014 alocava 8,43% para essa área, em 2018 já era 15,48% e em 2024 chegou aos 21,9%.

Num país mergulhado em crises na habitação, na saúde e no custo de vida, a despesa com a defesa foi das que mais subiram. Segundo o Jornal de Negócios, a despesa pública com defesa subiu 34,6% em 2024 e superou a meta do ano passado, com Luís Montenegro a anunciar que queria alocar financiamentos do Plano de Recuperação e Resiliência para a defesa. A despesa em defesa foi a terceira que mais subiu em termos relativos no ano passado, atrás do Ambiente e das Finanças. Entre as que menos subiram estão a Saúde e o Trabalho e Segurança Social.

A mesma excecionalidade de tratamento é verificada na execução do orçamentado. No início deste mês, a publicação de estudo da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) revelou que a Defesa foi o setor com a maior taxa de execução do investimento público orçamentado – 99,6%. Este desempenho contrasta bem com a subexecução global do investimento público, que ficou pelos 69% do total orçamentado, e que permitiu o “brilharete orçamental” de Portugal.As escolhas políticas do executivo de Montenegro ficam assim bem claras. Na última sessão de plenário do parlamento, voltou a frisar a importância do setor da defesa e juntou-se à linha europeia de esta ser a única despesa que não contabilizada para as regras do défice.

A teoria de Janan Ganesh já começou então a entrar em prática de forma intensa nos últimos anos. Resta saber se os dirigentes europeus, e portugueses em particular, querem afundar-se ainda mais na tese da austeridade militar, quando a União Europeia já gasta mais em Defesa que todos os países do mundo à exceção dos Estados Unidos da América.

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